2/19/2004

Matriz de Acontecimentos (19 de Fevereiro)


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2/18/2004

HISTÓRIAS DO QUOTIDIANO

Naquele fim de dia, haviam chegado ambos à mesma hora a casa: ela a pôr o carro na garagem, ele atrás. Mera coincidência. Depois do habitual beijo distraído e já vazio de significado ao fim de vinte e tal anos de casamento, subiram da garagem os dois no mesmo elevador. E porque às vezes acontecem coisas inverosímeis, justamente nesse dia, justamente no momento em que ambos o ocupavam, o elevador avariou. E foi assim que passaram ambos cinquenta minutos, só os dois, fechados em menos de dois metros cúbicos.

Depois de tocada a campainha de alarme, ambos em silêncio, ele começou a avaliar a situação, pensando como a poderia resolver tecnicamente. Testando a memória, chamou à liça as inúmeras reuniões profissionais que já tivera com empresas de elevadores. Onde seria mesmo a localização do tal comando de desencravamento? Esticou-se, mexeu, procurou. Sem resultado. Entretanto, do lado de fora alguém havia ouvido o alarme e tentava desbloquear o elevador. Eficientemente, o senhor engenheiro deu algumas indicações para fora sobre o modo como deveriam actuar, e, em silêncio, esperou. Na sua cabeça continuaram a perpassar esquemas eléctricos de comando de elevadores.

Depois de tocada a campainha de alarme, ambos em silêncio, ela deu por si a relembrar as muitas anedotas que já ouvira passadas naquelas circunstâncias: um homem e uma mulher juntos pelo acaso num elevador avariado. Só que… nas anedotas nenhum dos pares era marido e mulher! Por isso é que as anedotas funcionavam, pensou ela com um sorriso amargo. Daí a pensar no seu próprio casamento foi um pulo: deu consigo a rever os muitos anos de vida em comum, no rumo que as suas vidas tinham tomado. E, como sempre, não conseguia compreender como um casamento feito com tanto amor, tanto envolvimento, havia chegado àquele marasmo. Pensou como lhe apetecia tê-lo tentado para um longo beijo, ali mesmo, como isso teria sido excitante e diferente da rotina. Pensou há quanto tempo não faziam amor fora da velha cama comum. Meus Deus, aconteceria a todos os casais? “E se eu…? Será que se for subtil, de mansinho…” Nem pensar! Apostava a sua própria cabeça em como ele reagiria cheio de compostura, e lhe diria “Aqui?! estás parva?!”. Um frio percorreu-lhe a espinha. Não o friozinho que ela gostava de ter sentido, mas um frio cortante de lembrança de outras situações semelhantes que haviam acabado com aquela mesma interrogação.
Bem comportada como convinha, poisou o saco no chão da cabine do elevador, sentou-se, pernas esticadas até ao limite que o espaço permitia, abriu o livro, e recomeçou tranquilamente a leitura da “Esmeralda Partida” no ponto em que havia ficado à hora de almoço. ”Melhor com o Fernando de Campos, pensou. O prazer é de outra ordem, mas ao menos não me diz “Aqui?! estás parva?!”…
Seria mesmo verdade que D. Leonor envenenara ou ajudara a envenenar o marido?! Custava a acreditar. Uma rainha tão boa, fundara as misericórdias, fizera tanto bem, e envenenara o marido?

Ele, em pé, continuando a accionar os neurónios e a experimentar patilhas acessíveis do interior, acabou por conseguir abrir a porta, o que, não permitindo a saída, ao menos ventilava o espaço. De vez em quando dava umas indicações para o exterior, mas a falta de uma chave de socorro, diziam-lhe, tornava indispensável a vinda da assistência da THYSSEN.

Nesse dia, ela tinha ido ao cabeleireiro. Ondulação, shampoo especial, massagem, amaciador, brushing, corte, enfim, uma pipa de massa. Mas tinha valido a pena, a cabeleireira esmerara-se. Pensando melhor: teria mesmo valido a pena? Fechados durante cinquenta minutos no mesmo espaço exíguo, o seu próprio marido nem havia reparado: só tinha tido olhos para os desencravamentos da THYSSEN. Que raiva!

Já em casa, enquanto preparava o jantar, ela pensava com tristeza que o rapaz alegre e atento com quem casara um dia perdera o sentido de humor, e, imperdoavelmente, acabava de deixar escapar a oportunidade de viverem a sua própria anedota de elevadores…
E de olhos chorosos da cebola que picava para o refogado, ela compreendia finalmente o que acabara de ler. A História dizia que tinha sido por interesses sucessórios. Mas, naquele dia, ela iria jurar que el rei D. João não prestava grande atenção ao penteado de D. Leonor…

2/14/2004

O Verso e o Anverso (1)

Liberdade implica responsabilidade. Implica saber distinguir o bem do mal e depois actuar. Implica um sistema regulador, que permita agir. Liberdade não é fazer o que se quer --isso seria como que um instinto, o que não é por si escolha. A virtude só existe pela escolha consciente do bem na presença do mal, o que obviamente implica liberdade de escolha.
Ora, o que o humano faz com mais regularidade, talvez movido por um instinto natural de preservação, é desculpabilizar-se por algo que tenha feito de errado. Há, de facto, sempre a possibilidade de descobrir uma razão justificativa, oposta à do bem, mas que parecerá igualmente bem.








PRESIDENTE


-- É incrível, senhor Presidente, que o senhor e a sua Câmara tenham consentido que fosse construído um edifício tão alto como aquele. Aquilo é um verdadeiro aborto!

-- O seu ponto de vista não é o meu. Muito pelo contrário, a ocupação de terreno para tanta gente que mora ali naquele prédio é ínfima; como o terreno é ouro -- não é isso que o senhor ouve apregoar os senhores das comissões de defesa do ambiente? -- fez-se a mínima ocupação possível de terreno, construindo-se portanto em altura. Assim permite-se que cá em baixo existam aqueles canteiros de relva; de outra forma, nada disso existiria. Imagine só o que seria, em área, aquele edifício deitado! Antes de falar em "aborto", pense primeiro nas coisas. É o que eu faço, e é se calhar por isso que sou Presidente da Câmara.




VISTA DEMOCRÁTICA


-- Nem quero crer que vão deixar fazer loteamentos ao longo da falésia! Ficamos sem vista nenhuma. É como que uma cortina à nossa frente! Vocês, construtores, deviam ter mais educação.

-- Cortina é o que querem pôr em frente dos olhos da gente! Estamos a atrair mais pessoas para este lados, a desenvolver o turismo. E estamos a dar a possibilidade a pessoas de terem uma casa junto ao mar. Julga que isso é só para os ricos? Quem conseguiu, à custa de muito trabalho, poupar uns dinheiritos, há-de comprar uma casa daquelas que vão ser ali construídas e fica com uma vista que é uma maravilha. Isso era dantes que terrenos daqueles eram só para uns senhores com influência junto do Governo e que depois construíam lá as suas moradias, isoladas! Agora estamos em democracia. Se uns têm, porque não poderão os outros ter também?



I M P O S T O re S



-- É pá, não acho bem que, ganhando o que ganhas, pagues tão poucos impostos. Tramas os outros, é o que é, os que não podem fugir por terem de assinar recibos.

-- Se fosse por ti e por outros como tu até não me importava de pagar mais qualquer coisita. Mas com aquela camarilha no Governo, que é que tu queres? Só não me safo mais se não puder! Sabe-se lá o que eles fazem ao nosso dinheiro! Se calhar desviam-no para os seus belos carros, para umas casas, umas viagens. Com tanta trafulhice que vejo, não é o teu amigo que vai declarar tudo! Nem pensar! Deus disse-nos para sermos bons, mas não nos mandou ser parvos!



HIPERMERCADO EDUCACIONAL



-- Ó senhor director, não acha que já está a admitir alunos a mais para a escola? Lá por ser particular e superior não é também caso para admitir tanta gente! Depois as turmas são muito grandes, os alunos aprendem pouco.

-- Você, como professor, só pensa no trabalho que os alunos lhe dão. Tem alguma razão, mas já pensou o que sucede a estes rapazes e raparigas se não os vamos admitir? Imagine que era um filho seu! Um ano desocupado, uma boa-vida de deitar tarde e levantar tarde durante um ano inteiro, uma escola de vício. A escola também tem uma função social. É nosso dever ajudar a sociedade, auxiliar as famílias. Você ainda um dia há-de entender. Os pais e mães que me pedem para que deixe entrar o filho ou a filha sabem bem do que falo.





EU CALIPTO, TU CALIPTAS



-- Não me diga, tio Manuel, que você vai vender esses terrenos aos homens da celulose para eles plantarem eucaliptos! Os eucaliptos dão cabo de tudo. Não há água que lhes chegue, e ela aqui já não é muita. Isto já não tem nada a ver com o nosso velho Portugal: transformou-se em Eucaliptugal.

-- Também você a vir com essa. Acho-lhe uma graça! Pela primeira vez na vida vou ver dinheiro em quantidade. A gente moureja e moureja aqui nestas terras e não se vê nada. Já está decidido. Vou viver para a cidade. Compro um andar lá para a Reboleira, onde vou viver com a minha patroa, e acho que não me vou lembrar muito dos eucaliptos. Isto é mas é um totobola para mim. Se você tivesse uns terrenos e lhe oferecessem este dinheirinho, sempre queria ver se você vendia se não. E olhe que o terreno não é vendido. É alugado à companhia. Portanto, cale o bico!



2/12/2004

Matriz de Acontecimentos (12 de Fevereiro)


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2/10/2004

GlobOILização

Lê-se no "Público" de hoje que "as Forças Armadas norte-americanas vão iniciar este mês manobras em São Tomé e Príncipe, incluindo o lançamento de "rockets" na zona económica exclusiva, rica em petróleo". E ainda: "A Administração Bush estuda a possibilidade de instalar no arquipélago um porto de abrigo para a sua armada." Se mais provas fossem necessárias, entender-se-ia facilmente por que razão os Estados Unidos, juntamente com a URSS, foram há uns quarenta anos os grandes promotores da "libertação dos povos de África".

"Diz-me onde há petróleo, dir-te-ei onde está a América."

2/08/2004

Uma outra história simples


Nota prévia:
Ignoro se “uma história simples” editada pelo Peter Pan é verídica ou se trata de ficção. Ao trazer agora estoutra, sugerida pela leitura daquela, quero desde logo salvaguardar a primeira hipótese: se verídica, peço as minhas desculpas pela utilização abusiva das personagens neste meu contexto de pura ficção.



A D. Ernestina (odiava que lhe chamassem D. Ernestina!) dormia descansadamente. Antes de adormecer fizera a sua habitual oração a S. Cristóvão, se é que oração se podia chamar ao quase tu-cá, tu-lá com que se habituara a fazer confidências àquele santo, que, por ser santo e ser uma escultura, tinha a certeza nunca trairia a sua confiança. Passados anos sobre a oferta feita pelos empregados ao marido daquele descabido S. Cristóvão todo em ouro, continuava a achar que era uma estranha prenda para se oferecer a um patrão pouco mais que ateu. Mas, enfim, a entrada daquele S. Cristóvão no seu quarto também lhe trazia recordações de tempos de mudança na sua vida.

Esse ano do seu quadragésimo segundo aniversário começara de forma dolorosa para ela, como, de resto, havia acabado o anterior. Perguntava-se então a si mesma se valeria a pena a sua vida, tão desprovida de interesse, tão fria de afectos, tão vazia das crianças que nunca havia conseguido ter com o António. É certo que o marido mostrava consideração e respeito por ela, não se esquecia dos aniversários que passavam, pouco discutiam, mas a rotina instalara-se definitivamente entre eles. E os homens, sobretudo os homens da geração de António, haviam sido educados a crer que o casamento, quando o amor é autêntico, não precisa ser alimentado e o enamoramento é forçosamente efémero.
Longe iam os tempos em que, ainda estudantes, faziam passeios pela marginal até à Boca do Inferno, com várias paragens pelo caminho, no rádio do carro uns exóticos cantando “she loves you, yeah, yeah,…”, o sol da Linha tão bonito sobre o mar, a mão do Tó já tão familiar na sua perna. E os beijos do Tó, ah, os beijos do Tó, pedacinhos prometedores de paraíso!
O pai do Tó morreu subitamente, e ele, filho único, teve naturalmente que assumir a condução do negócio da alfaiataria, iniciado muitos anos antes por seu bisavô Jacinto, que entrara no ramo como aprendiz do Sr. Cristiano Keil e se havia lançado mais tarde em negócio próprio. Ainda se ouviam lá em casa histórias das provas a el Rei D. Luís e aos infantes. Alfaiataria de pergaminhos, com boa fama e melhor clientela, o António nem teve grande pena de interromper o seu segundo ano de Direito, nem haveria de a sentir pela vida fora, consolidadas a sua fama de bom negociante e a vida próspera que o negócio lhe proporcionava.
Concluídos os exames do sétimo ano do liceu, Nené, como ele ainda hoje a tratava (excepto em ocasiões de tensão, em que voltava a ser a Maria Ernestina a que ficara vinculada, tão a seu contragosto, na pia baptismal), abandonara os estudos. Nos seus horizontes estava uma licenciatura em Historico- Filosóficas, mas o António, a mãe do António e até a sua própria mãe se recusaram a aceitar a ida para a universidade: que necessidade tinha ela de estudar, com uma vida tão estável que a esperava?! E como poderia ela tratar do marido e educar capazmente os filhos que viessem?
Os sonhos de Historico-Filosóficas e de uma carreira docente ruíram com o casamento, feito sobriamente após a morte do sogro, o luto ainda recente, para que António entrasse no mundo dos negócios com a requerida estabilidade emocional e a respeitabilidade de chefe de família. Na altura Nené não sentiu essa desistência como perda: um marido tão bonito e sedutor e ainda por cima carinhoso, atento, enfim, tão bom partido, faziam-na motivo de inveja entre as amigas.
Duas décadas passadas, o António continuava um bom marido, sempre lhe proporcionara bem-estar económico, mas o carinho perdera-se na usura do tempo, a sedução do António esvaziara-se na rotina dos anos; há muito que se não sentia preenchida com aquele amor, muito embora houvesse uma acomodada e fácil cumplicidade entre os dois e continuasse a mulher dócil e dedicada que sempre fora.

Pouco tempo antes daquele S. Cristóvão ter entrado lá em casa, Maria Ernestina decidira-se, finalmente, a lutar contra o tédio e a falta de sentido da sua vida. Cortou o cabelo, modernizou um pouco o seu guarda-roupa, procurou amigos que tinham ficado para trás, matriculou-se num curso de História de Arte. Resolvera obrigar-se a sair de casa, descobrir novos interesses, conhecer gente com quem conversar, que era coisa que lá em casa praticamente já não fazia. O facto de António, naquele verão, ter que se ausentar mais do que o costume veio a calhar: tinha os dias totalmente para si, podia almoçar quando e onde lhe apetecesse, sem preocupações de dona de casa. Sentiu-se tão contente quando o marido lhe comunicou que ia ter um verão particularmente trabalhoso, que nem mesmo se quis deter no modo atabalhoado e excessivo com que ele justificara antecipadamente as repetidas ausências estivais: ia ser senhora do seu tempo, era tudo quanto queria.
É que, já por essa altura, Maria Ernestina não era indiferente ao delicioso sorriso do João Carlos, professor de Antropologia no curso que frequentava. Aliás, não o era desde a primeira aula, desde o primeiro convite para o café. João Carlos entrara-lhe no coração sem grande esforço. Uns anos mais velho do que ela, charmoso, educadíssimo, com um sentido de humor fabuloso, interesses próximos dos seus, nada mais natural que chegasse como um bálsamo ao coração carente de Maria. E, muito embora ela dissesse honestamente a si mesma que era isso que desejava, lutou meses a fio antes de admitir o que era mais que evidente: estava de novo apaixonada. Ah, que coisa maravilhosa uma paixão aos quarenta e tal anos! Não demorou para que se envolvessem, muito naturalmente, numa relação misto de ternura, de sensualidade e de plenitude, sem medos nem sobressaltos, tão diferente da que vivera aos dezanove anos!...
E assim, incapaz de falar da sua nova paixão clandestina a qualquer ser humano, e muito menos às poucas amigas de infância que conservava, Maria Ernestina habituara-se a um diálogo sem retorno - e mesmo assim diálogo, porque lhe imaginava as respostas - com aquela imagem pousada sobre a cómoda do seu quarto, onde um dia a admitira apenas por preocupações de roubo. O santo tornara-se, ao fim daqueles anos, seu confidente e seu cúmplice.
Às vezes a imagem ficava tão refulgente que o marido, ao vê-la brilhar no escuro, lhe perguntava se a polira, interiormente embevecido com o desvelo com que ela tratava a recordação da Leonor…Nené, naquele seu linguajar de tu-cá, tu-lá a que já se habituara com o seu confidente, lançava-lhe então um olhar aflito: “já não te posso fazer confidências sem que cores despudoradamente, meu santo?!”

Quando, pelo Outono, o António voltou ao seu ritmo habitual e a rotina se instalou de novo, desta vez apenas para um deles, Maria Ernestina deu consigo a pensar que Deus – se é que é canónico meter Deus nestes assuntos, não bastará já ter envolvido o santo?! - Deus escreve direito por linhas tortas: sentira-se tão magoada ao saber, por acaso, da chegada da Leonor, e, afinal, bem vistas as coisas, a sua vida estava mais interessante agora, em parte graças à Leonor. Vivia uma paixão na sua meia-idade, o que a vivificara e dera um novo sentido à sua vida. António, a quem o remorso de a ter traído tornava ainda mais atencioso, encantava-se de a ver solta, segura de si, magnífica na sua maturidade. Pela mesma razão, ela era agora mais compreensiva com as pequenas manias dele. António mentira-lhe, ela nem havia precisado de o fazer, porque o marido lhe arranjara todos os álibis. Tamanha convergência de benefícios só com a protecção de S. Cristóvão!
Por isso, todas as noites, naquele seu linguajar de tu-cá, tu-lá com o santo, Maria Ernestina contava ao seu confidente e protector os arroubos de paixão que vivera nos braços de João Carlos, não esquecendo de lhe pedir, a ele que sempre ajuda em matéria de viagens, que trouxesse à Alfaiataria Sampaio clientes importantes, e nos mais diversos pontos do país .

Depois adormecia tranquilamente, em paz consigo e com o mundo.


2/05/2004

Matriz de Acontecimentos (2 de Fevereiro)


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2/04/2004

Uma história simples

"É no nosso quarto que o S. Cristóvão vai ficar. No carro podem roubar--to."

E podiam, de facto. Uma imagem de S. Cristóvão, mesmo pequena mas toda em ouro maciço, é sempre uma tentação.

Tudo começou quando o Sampaio, que tinha uma bela alfaiataria ao Saldanha, recebeu a notícia de que a Leonor vinha sozinha à metrópole passar férias. A Leonor, sua antiga namorada. Ela casara entretanto havia já uns anos com o engenheiro Castro, que a levou para obras demoradas algures numa barragem em Moçambique. A Leonor ansiava por rever o seu António Sampaio. Em Lisboa já não tinha muitos contactos e sabia como ele estava bem estabelecido. Seria possível reviver com ele os fabulosos momentos do seu quente namoro ?

Para o Sampaio, a visita de Leonor era o quebrar da monotonia de um verão tórrido de Lisboa, um sair do rame-rame de atender o senhor Comendador e mais o filho, os diplomatas que profissionalmente recebia com o melhor dos sorrisos e a quem procurava atender com a última moda em fazendas e feitios. A alfaiataria, uma casa que "valia um dinheirão, tanto pelo local como pela clientela", como lhe costumavam dizer, era o seu orgulho. Mas agora sabia-lhe bem pensar que poderia voltar uns bons anos atrás, dar umas benvindas escapadelas da vida de casado.

A Leonor arquitectava sensivelmente o mesmo para a sua estadia na metrópole. Um dia após chegar, malas esvaziadas e vestidos arrumados, telefonou ao Sampaio a combinar um encontro. "O que as Áfricas fazem às pessoas !", disse-lhe o Sampaio quando se sentou à mesa onde ela o esperava, ali perto na Versailles. "Estás linda !"

Foram dois meses e meio de lua de mel. Uma vez por outra o Sampaio ainda dizia à mulher que ia a casa de uns clientes especiais tirar medidas, mas no geral não precisava de dizer nada. Ela tinha uma confiança cega no marido e o pessoal da alfaiataria nunca o iria atraiçoar. O casalinho não se afastava geralmente muito de Lisboa. Sintra, Seteais, Colares, Ericeira, Azeitão, Sesimbra. O Volvo do Sampaio adorava aquelas estradas, os bosques românticos de Monserrate, a Pena.

Aos domingos, o Sampaio saía como habitualmente com a mulher, tomando por vezes inadvertidamente estradas algo idênticas, parando para o chá habitual e ligando o rádio para saber o resultado de um jogo ou outro ou da Volta a Portugal.

Chegou, inevitavelmente, a hora da despedida. A Leonor remoçara. O Sampaio também. Fora bom para ambos. "Gostaria muito de deixar-te algo que te lembrasse de mim: uma coisa que pudesses trazer no Volvo." E ofereceu-lhe uma bonita imagem em ouro do santo protector. "Logo em ouro!", disse o Sampaio para o seu empregado mais antigo, o Sousa, depois de a Leonor, chorosa, ter partido de volta a Lourenço Marques. "Como é que vou sair desta ?"

Duma maneira fácil, afinal. O Sampaio combinou com o Sousa que ele e os outros empregados lhe iriam oferecer pelos anos, em Outubro, a estatueta. Até lá ela ficaria guardada numa gaveta da alfaiataria.

Foi um Sampaio teatralmente orgulhoso pela prenda dos seus empregados que exibiu o S. Cristóvão à mulher. Que ficou ainda mais orgulhosa. "Mas é um perigo andares com ele no Volvo. Se sabem que é de ouro, partem-te os vidros do carro e roubam-no. O melhor é pô-lo no nosso quarto."

Nunca mais vi o Sampaio, que entretanto vendeu a alfaiataria a um banco. Não tenho razão para supor, no entanto, que o S. Cristóvão não se mantém no quarto dele, onde a D. Ernestina o contemplará embevecida. O S. Cristóvão ajudá-la-á a dormir descansadamente. Ele sempre ajudou nas viagens.