2/18/2004

HISTÓRIAS DO QUOTIDIANO

Naquele fim de dia, haviam chegado ambos à mesma hora a casa: ela a pôr o carro na garagem, ele atrás. Mera coincidência. Depois do habitual beijo distraído e já vazio de significado ao fim de vinte e tal anos de casamento, subiram da garagem os dois no mesmo elevador. E porque às vezes acontecem coisas inverosímeis, justamente nesse dia, justamente no momento em que ambos o ocupavam, o elevador avariou. E foi assim que passaram ambos cinquenta minutos, só os dois, fechados em menos de dois metros cúbicos.

Depois de tocada a campainha de alarme, ambos em silêncio, ele começou a avaliar a situação, pensando como a poderia resolver tecnicamente. Testando a memória, chamou à liça as inúmeras reuniões profissionais que já tivera com empresas de elevadores. Onde seria mesmo a localização do tal comando de desencravamento? Esticou-se, mexeu, procurou. Sem resultado. Entretanto, do lado de fora alguém havia ouvido o alarme e tentava desbloquear o elevador. Eficientemente, o senhor engenheiro deu algumas indicações para fora sobre o modo como deveriam actuar, e, em silêncio, esperou. Na sua cabeça continuaram a perpassar esquemas eléctricos de comando de elevadores.

Depois de tocada a campainha de alarme, ambos em silêncio, ela deu por si a relembrar as muitas anedotas que já ouvira passadas naquelas circunstâncias: um homem e uma mulher juntos pelo acaso num elevador avariado. Só que… nas anedotas nenhum dos pares era marido e mulher! Por isso é que as anedotas funcionavam, pensou ela com um sorriso amargo. Daí a pensar no seu próprio casamento foi um pulo: deu consigo a rever os muitos anos de vida em comum, no rumo que as suas vidas tinham tomado. E, como sempre, não conseguia compreender como um casamento feito com tanto amor, tanto envolvimento, havia chegado àquele marasmo. Pensou como lhe apetecia tê-lo tentado para um longo beijo, ali mesmo, como isso teria sido excitante e diferente da rotina. Pensou há quanto tempo não faziam amor fora da velha cama comum. Meus Deus, aconteceria a todos os casais? “E se eu…? Será que se for subtil, de mansinho…” Nem pensar! Apostava a sua própria cabeça em como ele reagiria cheio de compostura, e lhe diria “Aqui?! estás parva?!”. Um frio percorreu-lhe a espinha. Não o friozinho que ela gostava de ter sentido, mas um frio cortante de lembrança de outras situações semelhantes que haviam acabado com aquela mesma interrogação.
Bem comportada como convinha, poisou o saco no chão da cabine do elevador, sentou-se, pernas esticadas até ao limite que o espaço permitia, abriu o livro, e recomeçou tranquilamente a leitura da “Esmeralda Partida” no ponto em que havia ficado à hora de almoço. ”Melhor com o Fernando de Campos, pensou. O prazer é de outra ordem, mas ao menos não me diz “Aqui?! estás parva?!”…
Seria mesmo verdade que D. Leonor envenenara ou ajudara a envenenar o marido?! Custava a acreditar. Uma rainha tão boa, fundara as misericórdias, fizera tanto bem, e envenenara o marido?

Ele, em pé, continuando a accionar os neurónios e a experimentar patilhas acessíveis do interior, acabou por conseguir abrir a porta, o que, não permitindo a saída, ao menos ventilava o espaço. De vez em quando dava umas indicações para o exterior, mas a falta de uma chave de socorro, diziam-lhe, tornava indispensável a vinda da assistência da THYSSEN.

Nesse dia, ela tinha ido ao cabeleireiro. Ondulação, shampoo especial, massagem, amaciador, brushing, corte, enfim, uma pipa de massa. Mas tinha valido a pena, a cabeleireira esmerara-se. Pensando melhor: teria mesmo valido a pena? Fechados durante cinquenta minutos no mesmo espaço exíguo, o seu próprio marido nem havia reparado: só tinha tido olhos para os desencravamentos da THYSSEN. Que raiva!

Já em casa, enquanto preparava o jantar, ela pensava com tristeza que o rapaz alegre e atento com quem casara um dia perdera o sentido de humor, e, imperdoavelmente, acabava de deixar escapar a oportunidade de viverem a sua própria anedota de elevadores…
E de olhos chorosos da cebola que picava para o refogado, ela compreendia finalmente o que acabara de ler. A História dizia que tinha sido por interesses sucessórios. Mas, naquele dia, ela iria jurar que el rei D. João não prestava grande atenção ao penteado de D. Leonor…

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