2/08/2004

Uma outra história simples


Nota prévia:
Ignoro se “uma história simples” editada pelo Peter Pan é verídica ou se trata de ficção. Ao trazer agora estoutra, sugerida pela leitura daquela, quero desde logo salvaguardar a primeira hipótese: se verídica, peço as minhas desculpas pela utilização abusiva das personagens neste meu contexto de pura ficção.



A D. Ernestina (odiava que lhe chamassem D. Ernestina!) dormia descansadamente. Antes de adormecer fizera a sua habitual oração a S. Cristóvão, se é que oração se podia chamar ao quase tu-cá, tu-lá com que se habituara a fazer confidências àquele santo, que, por ser santo e ser uma escultura, tinha a certeza nunca trairia a sua confiança. Passados anos sobre a oferta feita pelos empregados ao marido daquele descabido S. Cristóvão todo em ouro, continuava a achar que era uma estranha prenda para se oferecer a um patrão pouco mais que ateu. Mas, enfim, a entrada daquele S. Cristóvão no seu quarto também lhe trazia recordações de tempos de mudança na sua vida.

Esse ano do seu quadragésimo segundo aniversário começara de forma dolorosa para ela, como, de resto, havia acabado o anterior. Perguntava-se então a si mesma se valeria a pena a sua vida, tão desprovida de interesse, tão fria de afectos, tão vazia das crianças que nunca havia conseguido ter com o António. É certo que o marido mostrava consideração e respeito por ela, não se esquecia dos aniversários que passavam, pouco discutiam, mas a rotina instalara-se definitivamente entre eles. E os homens, sobretudo os homens da geração de António, haviam sido educados a crer que o casamento, quando o amor é autêntico, não precisa ser alimentado e o enamoramento é forçosamente efémero.
Longe iam os tempos em que, ainda estudantes, faziam passeios pela marginal até à Boca do Inferno, com várias paragens pelo caminho, no rádio do carro uns exóticos cantando “she loves you, yeah, yeah,…”, o sol da Linha tão bonito sobre o mar, a mão do Tó já tão familiar na sua perna. E os beijos do Tó, ah, os beijos do Tó, pedacinhos prometedores de paraíso!
O pai do Tó morreu subitamente, e ele, filho único, teve naturalmente que assumir a condução do negócio da alfaiataria, iniciado muitos anos antes por seu bisavô Jacinto, que entrara no ramo como aprendiz do Sr. Cristiano Keil e se havia lançado mais tarde em negócio próprio. Ainda se ouviam lá em casa histórias das provas a el Rei D. Luís e aos infantes. Alfaiataria de pergaminhos, com boa fama e melhor clientela, o António nem teve grande pena de interromper o seu segundo ano de Direito, nem haveria de a sentir pela vida fora, consolidadas a sua fama de bom negociante e a vida próspera que o negócio lhe proporcionava.
Concluídos os exames do sétimo ano do liceu, Nené, como ele ainda hoje a tratava (excepto em ocasiões de tensão, em que voltava a ser a Maria Ernestina a que ficara vinculada, tão a seu contragosto, na pia baptismal), abandonara os estudos. Nos seus horizontes estava uma licenciatura em Historico- Filosóficas, mas o António, a mãe do António e até a sua própria mãe se recusaram a aceitar a ida para a universidade: que necessidade tinha ela de estudar, com uma vida tão estável que a esperava?! E como poderia ela tratar do marido e educar capazmente os filhos que viessem?
Os sonhos de Historico-Filosóficas e de uma carreira docente ruíram com o casamento, feito sobriamente após a morte do sogro, o luto ainda recente, para que António entrasse no mundo dos negócios com a requerida estabilidade emocional e a respeitabilidade de chefe de família. Na altura Nené não sentiu essa desistência como perda: um marido tão bonito e sedutor e ainda por cima carinhoso, atento, enfim, tão bom partido, faziam-na motivo de inveja entre as amigas.
Duas décadas passadas, o António continuava um bom marido, sempre lhe proporcionara bem-estar económico, mas o carinho perdera-se na usura do tempo, a sedução do António esvaziara-se na rotina dos anos; há muito que se não sentia preenchida com aquele amor, muito embora houvesse uma acomodada e fácil cumplicidade entre os dois e continuasse a mulher dócil e dedicada que sempre fora.

Pouco tempo antes daquele S. Cristóvão ter entrado lá em casa, Maria Ernestina decidira-se, finalmente, a lutar contra o tédio e a falta de sentido da sua vida. Cortou o cabelo, modernizou um pouco o seu guarda-roupa, procurou amigos que tinham ficado para trás, matriculou-se num curso de História de Arte. Resolvera obrigar-se a sair de casa, descobrir novos interesses, conhecer gente com quem conversar, que era coisa que lá em casa praticamente já não fazia. O facto de António, naquele verão, ter que se ausentar mais do que o costume veio a calhar: tinha os dias totalmente para si, podia almoçar quando e onde lhe apetecesse, sem preocupações de dona de casa. Sentiu-se tão contente quando o marido lhe comunicou que ia ter um verão particularmente trabalhoso, que nem mesmo se quis deter no modo atabalhoado e excessivo com que ele justificara antecipadamente as repetidas ausências estivais: ia ser senhora do seu tempo, era tudo quanto queria.
É que, já por essa altura, Maria Ernestina não era indiferente ao delicioso sorriso do João Carlos, professor de Antropologia no curso que frequentava. Aliás, não o era desde a primeira aula, desde o primeiro convite para o café. João Carlos entrara-lhe no coração sem grande esforço. Uns anos mais velho do que ela, charmoso, educadíssimo, com um sentido de humor fabuloso, interesses próximos dos seus, nada mais natural que chegasse como um bálsamo ao coração carente de Maria. E, muito embora ela dissesse honestamente a si mesma que era isso que desejava, lutou meses a fio antes de admitir o que era mais que evidente: estava de novo apaixonada. Ah, que coisa maravilhosa uma paixão aos quarenta e tal anos! Não demorou para que se envolvessem, muito naturalmente, numa relação misto de ternura, de sensualidade e de plenitude, sem medos nem sobressaltos, tão diferente da que vivera aos dezanove anos!...
E assim, incapaz de falar da sua nova paixão clandestina a qualquer ser humano, e muito menos às poucas amigas de infância que conservava, Maria Ernestina habituara-se a um diálogo sem retorno - e mesmo assim diálogo, porque lhe imaginava as respostas - com aquela imagem pousada sobre a cómoda do seu quarto, onde um dia a admitira apenas por preocupações de roubo. O santo tornara-se, ao fim daqueles anos, seu confidente e seu cúmplice.
Às vezes a imagem ficava tão refulgente que o marido, ao vê-la brilhar no escuro, lhe perguntava se a polira, interiormente embevecido com o desvelo com que ela tratava a recordação da Leonor…Nené, naquele seu linguajar de tu-cá, tu-lá a que já se habituara com o seu confidente, lançava-lhe então um olhar aflito: “já não te posso fazer confidências sem que cores despudoradamente, meu santo?!”

Quando, pelo Outono, o António voltou ao seu ritmo habitual e a rotina se instalou de novo, desta vez apenas para um deles, Maria Ernestina deu consigo a pensar que Deus – se é que é canónico meter Deus nestes assuntos, não bastará já ter envolvido o santo?! - Deus escreve direito por linhas tortas: sentira-se tão magoada ao saber, por acaso, da chegada da Leonor, e, afinal, bem vistas as coisas, a sua vida estava mais interessante agora, em parte graças à Leonor. Vivia uma paixão na sua meia-idade, o que a vivificara e dera um novo sentido à sua vida. António, a quem o remorso de a ter traído tornava ainda mais atencioso, encantava-se de a ver solta, segura de si, magnífica na sua maturidade. Pela mesma razão, ela era agora mais compreensiva com as pequenas manias dele. António mentira-lhe, ela nem havia precisado de o fazer, porque o marido lhe arranjara todos os álibis. Tamanha convergência de benefícios só com a protecção de S. Cristóvão!
Por isso, todas as noites, naquele seu linguajar de tu-cá, tu-lá com o santo, Maria Ernestina contava ao seu confidente e protector os arroubos de paixão que vivera nos braços de João Carlos, não esquecendo de lhe pedir, a ele que sempre ajuda em matéria de viagens, que trouxesse à Alfaiataria Sampaio clientes importantes, e nos mais diversos pontos do país .

Depois adormecia tranquilamente, em paz consigo e com o mundo.


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