"É no nosso quarto que o S. Cristóvão vai ficar. No carro podem roubar--to."
E podiam, de facto. Uma imagem de S. Cristóvão, mesmo pequena mas toda em ouro maciço, é sempre uma tentação.
Tudo começou quando o Sampaio, que tinha uma bela alfaiataria ao Saldanha, recebeu a notícia de que a Leonor vinha sozinha à metrópole passar férias. A Leonor, sua antiga namorada. Ela casara entretanto havia já uns anos com o engenheiro Castro, que a levou para obras demoradas algures numa barragem em Moçambique. A Leonor ansiava por rever o seu António Sampaio. Em Lisboa já não tinha muitos contactos e sabia como ele estava bem estabelecido. Seria possível reviver com ele os fabulosos momentos do seu quente namoro ?
Para o Sampaio, a visita de Leonor era o quebrar da monotonia de um verão tórrido de Lisboa, um sair do rame-rame de atender o senhor Comendador e mais o filho, os diplomatas que profissionalmente recebia com o melhor dos sorrisos e a quem procurava atender com a última moda em fazendas e feitios. A alfaiataria, uma casa que "valia um dinheirão, tanto pelo local como pela clientela", como lhe costumavam dizer, era o seu orgulho. Mas agora sabia-lhe bem pensar que poderia voltar uns bons anos atrás, dar umas benvindas escapadelas da vida de casado.
A Leonor arquitectava sensivelmente o mesmo para a sua estadia na metrópole. Um dia após chegar, malas esvaziadas e vestidos arrumados, telefonou ao Sampaio a combinar um encontro. "O que as Áfricas fazem às pessoas !", disse-lhe o Sampaio quando se sentou à mesa onde ela o esperava, ali perto na Versailles. "Estás linda !"
Foram dois meses e meio de lua de mel. Uma vez por outra o Sampaio ainda dizia à mulher que ia a casa de uns clientes especiais tirar medidas, mas no geral não precisava de dizer nada. Ela tinha uma confiança cega no marido e o pessoal da alfaiataria nunca o iria atraiçoar. O casalinho não se afastava geralmente muito de Lisboa. Sintra, Seteais, Colares, Ericeira, Azeitão, Sesimbra. O Volvo do Sampaio adorava aquelas estradas, os bosques românticos de Monserrate, a Pena.
Aos domingos, o Sampaio saía como habitualmente com a mulher, tomando por vezes inadvertidamente estradas algo idênticas, parando para o chá habitual e ligando o rádio para saber o resultado de um jogo ou outro ou da Volta a Portugal.
Chegou, inevitavelmente, a hora da despedida. A Leonor remoçara. O Sampaio também. Fora bom para ambos. "Gostaria muito de deixar-te algo que te lembrasse de mim: uma coisa que pudesses trazer no Volvo." E ofereceu-lhe uma bonita imagem em ouro do santo protector. "Logo em ouro!", disse o Sampaio para o seu empregado mais antigo, o Sousa, depois de a Leonor, chorosa, ter partido de volta a Lourenço Marques. "Como é que vou sair desta ?"
Duma maneira fácil, afinal. O Sampaio combinou com o Sousa que ele e os outros empregados lhe iriam oferecer pelos anos, em Outubro, a estatueta. Até lá ela ficaria guardada numa gaveta da alfaiataria.
Foi um Sampaio teatralmente orgulhoso pela prenda dos seus empregados que exibiu o S. Cristóvão à mulher. Que ficou ainda mais orgulhosa. "Mas é um perigo andares com ele no Volvo. Se sabem que é de ouro, partem-te os vidros do carro e roubam-no. O melhor é pô-lo no nosso quarto."
Nunca mais vi o Sampaio, que entretanto vendeu a alfaiataria a um banco. Não tenho razão para supor, no entanto, que o S. Cristóvão não se mantém no quarto dele, onde a D. Ernestina o contemplará embevecida. O S. Cristóvão ajudá-la-á a dormir descansadamente. Ele sempre ajudou nas viagens.
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