2/14/2004

O Verso e o Anverso (1)

Liberdade implica responsabilidade. Implica saber distinguir o bem do mal e depois actuar. Implica um sistema regulador, que permita agir. Liberdade não é fazer o que se quer --isso seria como que um instinto, o que não é por si escolha. A virtude só existe pela escolha consciente do bem na presença do mal, o que obviamente implica liberdade de escolha.
Ora, o que o humano faz com mais regularidade, talvez movido por um instinto natural de preservação, é desculpabilizar-se por algo que tenha feito de errado. Há, de facto, sempre a possibilidade de descobrir uma razão justificativa, oposta à do bem, mas que parecerá igualmente bem.








PRESIDENTE


-- É incrível, senhor Presidente, que o senhor e a sua Câmara tenham consentido que fosse construído um edifício tão alto como aquele. Aquilo é um verdadeiro aborto!

-- O seu ponto de vista não é o meu. Muito pelo contrário, a ocupação de terreno para tanta gente que mora ali naquele prédio é ínfima; como o terreno é ouro -- não é isso que o senhor ouve apregoar os senhores das comissões de defesa do ambiente? -- fez-se a mínima ocupação possível de terreno, construindo-se portanto em altura. Assim permite-se que cá em baixo existam aqueles canteiros de relva; de outra forma, nada disso existiria. Imagine só o que seria, em área, aquele edifício deitado! Antes de falar em "aborto", pense primeiro nas coisas. É o que eu faço, e é se calhar por isso que sou Presidente da Câmara.




VISTA DEMOCRÁTICA


-- Nem quero crer que vão deixar fazer loteamentos ao longo da falésia! Ficamos sem vista nenhuma. É como que uma cortina à nossa frente! Vocês, construtores, deviam ter mais educação.

-- Cortina é o que querem pôr em frente dos olhos da gente! Estamos a atrair mais pessoas para este lados, a desenvolver o turismo. E estamos a dar a possibilidade a pessoas de terem uma casa junto ao mar. Julga que isso é só para os ricos? Quem conseguiu, à custa de muito trabalho, poupar uns dinheiritos, há-de comprar uma casa daquelas que vão ser ali construídas e fica com uma vista que é uma maravilha. Isso era dantes que terrenos daqueles eram só para uns senhores com influência junto do Governo e que depois construíam lá as suas moradias, isoladas! Agora estamos em democracia. Se uns têm, porque não poderão os outros ter também?



I M P O S T O re S



-- É pá, não acho bem que, ganhando o que ganhas, pagues tão poucos impostos. Tramas os outros, é o que é, os que não podem fugir por terem de assinar recibos.

-- Se fosse por ti e por outros como tu até não me importava de pagar mais qualquer coisita. Mas com aquela camarilha no Governo, que é que tu queres? Só não me safo mais se não puder! Sabe-se lá o que eles fazem ao nosso dinheiro! Se calhar desviam-no para os seus belos carros, para umas casas, umas viagens. Com tanta trafulhice que vejo, não é o teu amigo que vai declarar tudo! Nem pensar! Deus disse-nos para sermos bons, mas não nos mandou ser parvos!



HIPERMERCADO EDUCACIONAL



-- Ó senhor director, não acha que já está a admitir alunos a mais para a escola? Lá por ser particular e superior não é também caso para admitir tanta gente! Depois as turmas são muito grandes, os alunos aprendem pouco.

-- Você, como professor, só pensa no trabalho que os alunos lhe dão. Tem alguma razão, mas já pensou o que sucede a estes rapazes e raparigas se não os vamos admitir? Imagine que era um filho seu! Um ano desocupado, uma boa-vida de deitar tarde e levantar tarde durante um ano inteiro, uma escola de vício. A escola também tem uma função social. É nosso dever ajudar a sociedade, auxiliar as famílias. Você ainda um dia há-de entender. Os pais e mães que me pedem para que deixe entrar o filho ou a filha sabem bem do que falo.





EU CALIPTO, TU CALIPTAS



-- Não me diga, tio Manuel, que você vai vender esses terrenos aos homens da celulose para eles plantarem eucaliptos! Os eucaliptos dão cabo de tudo. Não há água que lhes chegue, e ela aqui já não é muita. Isto já não tem nada a ver com o nosso velho Portugal: transformou-se em Eucaliptugal.

-- Também você a vir com essa. Acho-lhe uma graça! Pela primeira vez na vida vou ver dinheiro em quantidade. A gente moureja e moureja aqui nestas terras e não se vê nada. Já está decidido. Vou viver para a cidade. Compro um andar lá para a Reboleira, onde vou viver com a minha patroa, e acho que não me vou lembrar muito dos eucaliptos. Isto é mas é um totobola para mim. Se você tivesse uns terrenos e lhe oferecessem este dinheirinho, sempre queria ver se você vendia se não. E olhe que o terreno não é vendido. É alugado à companhia. Portanto, cale o bico!



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