12/05/2009

Escrita apócrifa

A notícia de que dois ou três textos que circulavam ontem na rede de e-mails e de blogues eram falsos não pôde deixar de me alegrar. Não exactamente devido às pessoas que neles intervinham, que até poderão ter dito coisas semelhantes, melhores ou piores, mas porque finalmente há algo que serve publicamente de alerta relativamente à veracidade ou falsidade do que aparece escrito na Internet.
Dois dos documentos em questão também chegaram às minhas mãos. Dei-lhes uma vista de olhos e reenviei-os no mesmo mail para apenas duas pessoas que ficariam, em princípio, contentes com a sua leitura. Claro que duvidei da sua autenticidade, principalmente quando li no "Assunto" VERDADEIRA TRANSCRIÇÃO (falar alto, como é escrever em letras maiúsculas, implica muitas vezes o querer ter razão embora não a tendo).
Na realidade, a prática de escrita apócrifa vem de muito longe, incluindo textos religiosos. A invenção da imprensa veio incentivá-la. A existência da Internet disseminou-a com toda a facilidade. Curiosamente, ainda esta semana escrevi a um familiar que me tinha enviado um texto, chamando-lhe a atenção para a grande probabilidade de aquele texto não ser verdadeiro. O facto de uma coisa estar escrita não quer de maneira nenhuma dizer que ela seja verdadeira e, como todos sabemos, pode ser – e é frequentemente – uma forma manipulada de influenciar a nossa opinião.
Que me tenha apercebido, nos e-mails que todos nós ajudamos a polinizar, circulam principalmente três autores com textos que eles nunca escreveram: Fernando Pessoa, Eça de Queirós e Eduardo Prado Coelho. Deste último tem-me chegado de várias fontes um em que o autor castiga exemplarmente os políticos. Ora, EPC era, felizmente, um homem de ideias, as quais adorava debater, e não se imiscuía muito na vida política desta forma. Gostava de ir ao fundo das coisas e não ficar pela superfície avulsa dos personagens que adornam a cena política. Curiosamente, a primeira vez que me chegou esse texto, ele trazia a indicação da data em que EPC tinha falecido mas não mencionava o mesmo relativamente ao jornal ou dia em que o referido texto tinha sido publicado. Na segunda vez que se me deparou o mesmo texto, já vinha acompanhado de uma caricatura do autor!
O sagaz António Aleixo, poeta algarvio do século passado (1899-1949), descreveu, na forma comprimida de quadra que ele tão bem conhecia, a técnica da mentira:

P’rá mentira ser segura
E atingir profundidade
Tem de trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.

Uma caricatura, um retrato, uma assinatura, podem ser bons exemplos dessa "qualquer coisa de verdade".
Porque é que se escolhem pessoas conhecidas como Fernando Pessoa ou Eça de Queirós? Porque, tal como nos anúncios de pastas dentífricas que são "recomendadas por 95 por cento dos médicos", é conveniente que esteja alguém respeitável a atestar a veracidade da coisa. Os textos de Fernando Pessoa que circulam de vez em quando nas catadupas de e-mails com que amigos de boa-fé nos bombardeiam com regularidade são geralmente em prosa, como prosaica é a maneira de pensar actual que eles revelam. Com o Eça passa-se o mesmo. E ambos já morreram...
Poderá perguntar-se: qual é o gozo de fazer isso? Imenso! Ser capaz de ludibriar meio-mundo pode dar um gozo extraordinário. Pessoalmente, recordo-me de três histórias em que fui interveniente e que me deram especial prazer. Se me permitem, conto-as aqui abreviadamente. A primeira ocorreu no meu 7º Ano de liceu. Eu adorava Walt Whitman, que lia numa edição baratucha – que ainda hoje conservo – da Pocket Books, Inc. A minha admiração pelo poeta americano era tal que não conseguia resistir a ler vários dos seus poemas em voz altíssima, pelo que sofri uma repreensão na casa onde estava então a morar. Uma vez escrevi o meu primeiro poema em inglês e mostrei-o ao meu professor de então, no final de uma aula. Perguntei-lhe se ele conhecia aquele poema do Whitman. Que não, disse-me ele, mas que tinha gostado muito. Enchi-me de coragem e disse-lhe que eu o tinha escrito na véspera, inspirado no estilo do autor. Não acreditou e repreendeu-me por eu estar a tentar gozar com ele. Avisou-me que era a última vez que isso sucedia. Eu era um dos melhores alunos da aula. Fiquei contente com a sua reacção. Até hoje não a esqueci, como se vê.
Numa outra ocasião, durante a guerra colonial em Angola, resolvi ensaiar uma velha táctica da contra-informação. Espalhei um boato que nos era favorável e que continha variados pontos que o tornavam verosímil. Foi com grande prazer que ouvi o dito repetido meses depois em Nambuangongo (próximo de onde eu estava na altura) e em Luanda, mais tarde.
O terceiro caso que me ocorre foi bastante diferente. Durante a década de 90, a minha actividade profissional levou-me a assistir a vários congressos, simpósios e seminários sobre turismo. Uma vez, num seminário realizado num hotel de Cascais juntei-me, durante a pausa para o café, a um grupo de pessoas que, em frente ao bar, contavam as coisas mais diversas. Uma delas chamou-me a atenção: alguém que eu nunca tinha visto estava a falar sobre a correcta maneira de actuar dos guias-intérpretes. Citou o caso de um guia que, no Palácio do Hermitage, em São Petersburgo, sabendo que no grupo que conduzia havia portugueses, os levou expressamente a uma sala geralmente não visitada onde estava um enorme e impressivo retrato de Inês de Castro,pintado por um francês. Salientou o indivíduo que estava a narrar o caso que aquela era a prova provada de que o guia-intérprete precisa de saber quem tem no seu grupo e falar de acordo com isso. Em suma: deve adequar o discurso ou a visita ao cliente. Pessoalmente, ouvi a história com grande interesse. A pessoa que a contou foi fiel ao que tinha lido num livro saído havia pouco tempo sobre a temática dos guias-intérpretes. A história era verdadeira e, o que é mais, tinha-se passado comigo, que a tinha descrito no dito livro.
Experimentei na altura uma sensação bastante interessante. Senti o poder da divulgação de ideias e como é útil a partilha. Não me dirigi logo à pessoa em questão, mas quando voltávamos para a sala onde se realizava o seminário apresentei-me e dei-lhe os parabéns pela forma como ele relatara o episódio.
Ora bem. Se eu próprio conto aqui estes factos, é porque imagino o enorme gozo que um indivíduo criativo deve sentir quando inventa uma treta qualquer, a despacha por e-mail e vê um sem-número de pessoas a engoli-la. O supremo prazer ocorrerá quando, após um circuito maior ou menor, a referida balela lhe for um dia enviada por um amigo que desconheça em absoluto quem foi o seu autor.
É por este conjunto de razões que aprecio que tenha sido tornada pública em vários jornais, e certamente na televisão, a notícia de que os textos que ontem circularam eram falsos. O aviso fica dado e é bom que sirva de lição. Ajuda a formar aquilo que geralmente se denomina de "massa crítica".

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