7/16/2010

Uma questão de género

Por vezes, o facto de um animal, um objecto ou um conceito serem expressos noutro idioma por uma palavra diferente da que usamos na nossa língua impressiona-nos menos do que se o género do vocábulo não for igual ao nosso. Isto quer dizer que a um masculino português nem sempre corresponde um masculino na língua estrangeira que estamos a usar, ou que um feminino nosso pode não ter o seu equivalente num outro feminino.
A este propósito, não posso deixar de me lembrar da atrapalhação e enorme embaraço que há anos vi numa amiga minha quando se deu conta de que numa edição oficial e dispendiosa de um livro em espanhol, da qual era responsável, tinha inadvertidamente colocado como título na bonita capa El mar em vez de La mar. Sucede...
Num caso sem qualquer relevância material como o da história acima, aconteceu comigo estar uma vez com uma amiga alemã num comboio entre Barcelona e Madrid. No compartimento da carruagem em que íamos seguiam praticamente só espanhóis. Entre nós falávamos alemão. A certa altura, ela, que ia para Madrid passar uns meses a aprender espanhol, começou de brincadeira a pedir-me a tradução de coisas que íamos vendo do comboio. Conforme sabia, eu ia traduzindo a resposta para um espanhol que nunca aprendi a não ser em canções, filmes, livros e revistas de banda desenhada. Os espanhóis à nossa volta acompanhavam o jogo com acenos aprovativos de cabeça quando eu dizia un coche para "automóvel", una carretera para "estrada" e coisas do género. Até que surgiu uma ponte. Aí, a minha amiga perguntou-me como se dizia. Puente, disse-lhe eu. Un puente?, perguntou-me ela. Não, disse-lhe eu, una puente! Ergueram-se os espanhóis do banco em frente e exclamaram em uníssono: un puente! Rimo-nos todos, claro. Eu acabava de fazer o erro que, muitos anos mais tarde, a minha outra amiga haveria de cometer com a palavra "mar".
Porquê? Porque a associação que na língua materna geralmente se faz entre um objecto e o género feminino ou masculino parece-nos fazer parte integrante desse mesmo objecto. Mudar essa característica arrepia-nos. Imaginemos der Mond e die Sonne, na língua alemã, que são respectivamente "a lua" e "o sol". Como em alemão der é o artigo definido masculino e die o feminino, verificamos que existe uma absoluta inversão relativamente à nossa maneira de pensar. Passando a lua a ser masculina e o sol a ser feminino, os conceitos que isso gera no nosso cérebro são totalmente diferentes.
Quando, em francês, o dente que nos dói passa a ser feminino (la dent), à dor de dentes acrescentamos uma dor de cabeça. Viajando a uns anos atrás, recordo que na preparação de alunos para guias-intérpretes numa escola em que leccionei, notava muitas vezes uma certa complacente impaciência por parte da minha colega de Francês quando, a propósito dos coches do Museu de Belém, os alunos diziam la carosse. Ao longo dos anos, ouvi-a vezes sem conta corrigi-los para le carosse. Nada de mais natural, porém. Forçar um português a aprender que um coche se traduz pela palavra que para nós é associada a carroça já não é fácil: um é da corte, o outro da província. Fazer depois com que o aluno português ainda por cima tenha que mudar o género da palavra...! Embora a verdade seja que tudo acaba por evoluir posteriormente para uma questão de automatismo, não há dúvida de que de início a coisa não é exactamente simples.
Tomemos a palavra "cor". Está-se mesmo a ver que é feminina: "as cores". Que outra coisa poderia ser? "Os cores" não faria qualquer sentido. Contudo, em espanhol é mesmo assim: los colores. Fácil de assimilar? Não.
Os próprios portugueses confundem frequentemente o género de algumas palavras no seu idioma. Tomemos como exemplo o substantivo "moral". Deveremos dizer "a moral" ou "o moral"? São duas coisas diferentes. "O moral" é o ânimo (v.g. levantar o moral), a moral é um conjunto de leis convencionado como de boa conduta (v.g. a moral cristã). Porém, quantas vezes não ouvimos dizer que "é preciso levantar a moral dos portugueses"? Talvez, inadvertidamente, com razão.
Imaginar que a cegonha, a tal que tradicionalmente nos traz os bebés, pode passar a ser uma ave masculina representa uma certa complicação. Os bebés vêm da mãe, logo se é a cegonha a trazê-los será um aparente contra-senso falar em "o cegonho". Contudo, é assim mesmo em alemão. Der Storch é visto mais como o elemento fertilizador do par. O seu grande bico simboliza o órgão sexual masculino. É todo o ponto de vista que é alterado.
Esta é uma das muitas razões por que aprender línguas estrangeiras significa conseguir olhar uma significativa parte do mundo de outra forma. Transferimo-nos para uma varanda bem diferente da nossa. Obtemos novas perspectivas. Alargamos a nossa formação.
A conversa poderia prolongar-se por muitas páginas, o que acabaria por não fazer muito sentido num texto ligeiro como este. Terminemos com o nome de mais um animal que, em inglês, é por natureza masculino: fox. A raposa. Imaginar que, em vez da matreirice e astúcia da raposa encontramos afinal um raposo manhoso não dá para contar as habituais histórias infantis da raposa e do lobo, em que ele tem mais força e ela mais manha... e é ela que acaba por vencer. De visões de homem e mulher passamos de repente a dois machos. Que graça tem isso? Contudo, são estes choques culturais, tão frequentes como tantas outras coisas que vemos e que nos impressionam quando viajamos e contactamos sociedades diferentes que nos fazem desdogmatizar as nossas ideias, relativizar o mundo, sair do nosso casulo pequeno e entender melhor a universalidade da nossa existência. Tudo junto representa um enorme enriquecimento.

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