1/08/2012

Não é só a falar que a gente se entende: também a escrever!

Confesso que fiquei tão revoltado e abatido com a aprovação do Acordo Ortográfico que não me apeteceu mais abordar esse assunto nestas páginas do blog, até porque nunca aplicarei o Acordo nos meus escritos. Volta e meia, no entanto, o tema volta-me à baila e, para fazer a respectiva descarga cerebral, hoje vou abordá-lo mais uma vez.
A evolução das línguas é imparável, como imparável é a evolução das sociedades. Só quando uma sociedade desaparece, e com ela a língua que ela usava, é que passa a falar-se de uma língua morta. Essa, de facto, não evolui. A dinâmica da evolução linguística – uso ou desuso de determinados vocábulos, neologismos, alterações gramaticais notórias por contacto com pessoas de outras nacionalidades, hegemonia linguística de uma determinada zona asfixiando outras do mesmo país, etc. – tudo isso é próprio de uma língua que está viva.
Já a escrita não tem necessariamente que mudar da mesma forma. Na generalidade dos países e línguas que conheço, mantém-se mesmo na escrita uma memória muito acentuada das origens, que é apenas mais forte nuns aspectos do que noutros. As mudanças na ortografia podem e devem ocorrer quando as alterações forem de tal ordem que se tornasse verdadeiramente obsoleto manter a mesma escrita. Mas mesmo nestes casos a ortografia pode não se alterar substancialmente. Daí que a escrita seja no geral bem mais conservadora do que a língua oral.
Quando em inglês se escreve, por exemplo, light, night, fight, ou eight, se a escrita fosse apenas fonética poder-se-ia facilmente escrever lite, nite, fite, ate. No entanto, isso não sucede. Porquê? Que cada um olhe para as palavras em questão, pense um pouco e dê a sua resposta.
Um dos motivos primordiais consiste no seguinte: a escrita não deve confundir as pessoas – nem quem escreve, nem quem lê – ou, se se preferir, deve confundir o menos possível porque a língua é um fenómeno muito complexo. A escrita deve ensinar quem aprende a ler a dizer a palavra bem.
Aqui vão mais uns exemplos retirados da língua inglesa: quando escrevo dinner, assim com nn, estou a dizer que o –i- é breve, isto é, lê-se mais ou menos como o –i- português e não ai, como acontece quando escrevo dining-room (apenas com um n no sítio onde dinner tem dois).
Dentro da mesma linha mas agora ilustrando com outra vogal,-o-, eu sei que hoped tem um –o- longo, o qual se pronuncia mais ou menos como o ou português, porque a grafia contém apenas um –p-. Se eu escrever com –pp- (hopped), em vez de dizer "esperava" estarei a dizer "saltava" (hop, hop, como o nosso galope). Ou seja, a escrita ensina-me, quando eu leio, que se trata de um –o- fechado ou um de um –o- aberto.
O mesmo sucede com todas as outras vogais: super (grafado apenas com um –p-) é muito diferente de supper, tanto em pronúncia como, naturalmente, em significado. Quando no teclado de um computador como o que estou a usar leio o que está escrito na tecla delete, eu sei imediatamente, embora possa nunca ter encontrado a palavra, que a pronúncia de delete nada tem a ver com a de letting, por exemplo, embora ambas as palavras possam à vista ter vários pontos de contacto. Por que razão sucede isto? Para não confundir o leitor, para ensiná-lo a ler bem e, depois, a escrever em conformidade: para que outros leiam igualmente bem e entendam sem dificuldade o que está escrito.
Em alemão acontece o mesmo em palavras com consoantes dobradas, que indicam que a vogal que as precede é aberta: Sonne (sol) pronuncia-se com um –o- aberto, Sohn (filho) com um -o- fechado. Os nomes Weber e Webber são diferentes, com o primeiro a ter um –e- longo e fechado, parecido com o nosso –e- de medo ou de cedo, enquanto Webber tem um –e- aberto e breve, que soa um pouco como o –e- de credo ou de tecto.
Em francês ocorrem aspectos semelhantes, mas vou referir-me apenas a uma faceta relacionada com a escrita que tem muito a ver com a memória das palavras e que os meus concidadãos portugueses entenderão bem. Olhemos para a palavra francesa tête. E para bête. E para même. O que notamos? Possivelmente que todas elas têm um –e- com um acento circunflexo. Poder-se-á perguntar? Para que serve aquele acento, que também, por exemplo, aparece em hôtel e hôpital? Ora, se pensarmos um pouco, até acabaremos talvez por achar graça verificar que aquele acento circunflexo assinala uma antiga queda, oral e gráfica, de uma letra: o s. Assim, existe uma ligação entre tête e a palavra portuguesa testa. Assim como entre bête e besta. E même e mesmo. E, ainda, entre hôtel e hostal e hôpital e hospital. É a memória da língua a manter-se viva. Tal como a própria língua é viva.
Ora, o facto de uma língua ser viva ou não reveste-se de uma enorme importância, como facilmente se compreenderá. Já se referiu acima que o que é vivo evolui. Vejamos um caso interessante desta evolução. Tomemos um adjectivo português que hoje caiu em desuso: ledo. Muitos dos que leram Camões lembrar-se-ão de uma "triste e leda madrugada". O que significará leda? Não deve ser o mesmo que triste, pois isso seria uma repetição. Mas o contrário também não parece, ou pelo menos não soa como tal. Amargo e doce fazem realmente um contraste, mas triste e ledo aparentemente não. E não porquê? Porque o –e- de ledo é fechado. Na realidade, no tempo de Camões leda pronunciava-se léda, com um –e- aberto, tal como acontece com alegre e com belo. Ledo provém do latim laetus, palavra pronunciada com –e- aberto. Letícia significa alegria, como se sabe.
Ora, é aqui que quero chegar. Há sinais convencionais, letras, que são usados no latim e em tantas outras línguas, como por exemplo a portuguesa, para mostrar que a antecedê-los está uma vogal aberta, nomeadamente se se trata das vogais intermédias –e- e –o-, mas também de -a-. Essas letras convencionais são basicamente o –c- e o –p-. Embora não se leiam em muitos casos, ajudam a ler! E isto foi totalmente ignorado pelos bárbaros autores do famigerado acordo ortográfico, que tanta polémica, infelizmente sem resultado, originou. Quando escrevo correcto e coreto, espectador e espetador, eu sei que, tal como distingo a diferença entre dinner e dining-room, que estou a ler palavras com –e- aberto ou fechado. Sei que directo e excepto têm, necessariamente um –e- aberto. Sei que redacção não é redação (com –a- fechado, como em relação).
Terei de concluir que, a partir deste acordo, os alunos ficam com uma tendência para, na leitura, fechar vogais que são abertas na língua oral.
Na língua oral portuguesa? Sim. E na língua oral brasileira? Bem, aí o caso muda de figura. Se a língua é um fenómenos social, é não só possível como natural que, na sua condição de social, a língua portuguesa falada no Brasil tenha evoluído de forma diferente da portuguesa europeia: são sociedades diferentes influenciadas por factores diversos e separadas por um largo e vasto oceano. No português que se fala no Brasil, muitas das vogais que entre nós continuamos a abrir, já se fecharam – e como tal são grafadas! Alguns exemplos apenas, dos muitos que existem: econômico, fenômeno, manicômio, contrôle.
E, já que entrei no domínio do português falado e escrito no Brasil, não será curioso que, pelo menos já na década de 1950 – constato-o através de edições brasileiras que existem nas minhas estantes – no Brasil se escrevesse objeto para objecto, objetivo para objectivo, ceticismo para cepticismo, jato para jacto, ato para acto, efetivo para efectivo, caráter para carácter, exceção para excepção, exceto para excepto, onipotência para omnipotência, otimismo para optimismo, adotar para adoptar, correto para correcto, atual para actual, sutil para subtil, coletivo para colectivo, seletivo para selectivo, afetivo para afectivo, afetuosamente para afectuosamente, exato para exacto e exatamente para exactamente?
A razão por que os rapazes e raparigas portuguesas que estão a aprender as primeiras letras na escola são obrigados a embarcar nesta nau continua a ser um mistério para mim. Não hesito no entanto em considerar que se trata de uma vergonhosa colonização – para Portugal – da língua que no seu território desenvolveu, levada a efeito, com misteriosos compadrios lusos, pelo parceiro mais poderoso que hoje é o Brasil.
Infelizmente, não existe nenhum rigor científico nem clareza no acordo. Existe, sim, uma evidente e lastimável perda de soberania da nossa parte. Ficamos menos europeus – mais distantes na escrita de línguas como a espanhola, a francesa, a inglesa e até a alemã - , obrigamos os nossos filhos e netos a cometerem mais erros de grafia ao escreverem textos nessas línguas, criamos-lhes maiores dificuldades. E, sinceramente, tudo sem qualquer necessidade nem efeitos positivos para nós e para a nação portuguesa.

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