Por mero acaso – continuo a ver muito pouca televisão – presenciei ontem à noite a mensagem natalícia de Passos Coelho. Os políticos já raramente me surpreendem, mas por vezes ainda me revoltam. Com Portugal metido numa camisa de onze varas, na qual foi cair ao fim de décadas de governos menos bons ou mesmo maus, este primeiro-ministro bem-parecido e teleponticamente bem-falante, surge-nos vestido de forma irrepreensível, de gravata verde de esperança, a falar-nos nada mais, nada menos do que de confiança.
Numa linguagem que só não é novilíngua por ser usada por tantos outros como ele e que faria George Orwell pelo menos sorrir, usou um sem-número de palavras e expressões abstractas ou indefinidas, vagas, do tipo das que dão-para-tudo: “democratização da economia”, “reformas estruturais”, “privilégios injustificados”, “criatividade”, “dedicação”, “injustiças e iniquidades”, “transformação do país”, etc. Por exemplo: o que se poderá entender por democratização da economia? Que os ricos, que até aqui têm sido altamente beneficiados e por isso têm conseguido aumentar cada vez mais o fosso entre o seu bem-estar e o mal-estar dos outros, vão ser sujeitos a mais impostos para compensar os “privilégios injustificados” de que têm gozado nas suas empresas e nos seus investimentos? Ou uma ordem económica que combata as desigualdades, como o Cardeal-Patriarca pede?
Repare-se na beleza da seguinte frase, apropriada para um cartão de boas-festas: o governo de Passos Coelho propõe-se “criar as condições para que todos os portugueses, cada um dos portugueses, nas suas escolhas, com o seu trabalho, com as suas capacidades, construa o seu próprio futuro e, em conjunto, o futuro de todos!”
Em minha opinião, é um desplante tremendo que estas palavras saiam da boca de um primeiro-ministro que ainda há pouco recomendou aos professores desempregados que procurassem fora do seu país, junto de populações de língua portuguesa, o trabalho que não conseguem encontrar no país de que ele próprio é o chefe do governo. Constitui um afrontoso descaramento que um primeiro-ministro faça numa semana a proclamação de grandes sacrifícios que temos pela frente e na semana seguinte fale desta maneira.
E, contudo, não é nada surpreendente. Ao apodar, aliás justificadamente, de mentiroso o seu antecessor, ele procura eventualmente com isso camuflar as mentiras que ele próprio pregou ao povo português antes das eleições de que saiu candidato vencedor. Só que, conseguida dessa forma mentirosa, a legitimidade da sua aprovação pelo povo ficou definitivamente comprometida.
Pois agora é esta mesma pessoa que do alto do seu cavalo de candidatura logrou enlaçar o povo português através de promessas que não está a cumprir que vem pedir o estabelecimento de laços de confiança! Atente-se nas suas palavras: “A confiança é um activo público, é um capital invisível, é um bem comum, determinante para o desenvolvimento social, para a coesão e para a equidade.” “...são os laços de confiança que formam a rede que nos segura a todos numa mesma sociedade.” Lindo, não é? Fukuyama, que escreveu uma obra notável exactamente com o título Confiança, não o diria melhor. Só que ele nunca foi primeiro-ministro de Portugal.
Já agora, prestemos atenção ao próximo dia 29, data em que está prevista a publicitação da nova Lei das Rendas do governo. Pessoalmente, concordo com uma revisão da lei das rendas, mas sou declaradamente contra uma liberalização total do sector da habitação. Uma casa não é um bem como qualquer outro. Vamos a ver o que dali sai.
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