12/05/2011

O nosso fado levanta a crista

À semelhança do que julgo ter sucedido a quase todos os portugueses, fiquei radiante com o muito aguardado reconhecimento que deram ao nosso fado como património imaterial da humanidade. Foi bonito e justo. Cá dentro e lá fora a canção que nos fala do destino e da saudade ("a presença da ausência"), de amores frustrados e paixões sentidas, e que abarca uma vasta gama de facetas da vida, passa a ser vista de outra forma. Comercialmente, este acto é também importante: trata-se de uma credencial validada por um órgão das Nações Unidas. Acresce que, dentro do actual ambiente de incerteza e depressão existente na sociedade portuguesa, este galardão veio em óptima altura.
Dito isto, questionemo-nos: por que razão surgem estas oportunidades? Porquê agora? Quais são os países mais interessados em verem aspectos ditos "imateriais" da sua cultura reconhecidos internacionalmente?
Estas questões parecem-me relevantes. A UNESCO já existe há imensos anos. Por que razão só começou em 2008 esta designação de Património Cultural Imaterial da Humanidade e de onde vem o interesse por esse reconhecimento?
Na minha resposta geral a este tipo de questões, admito que tudo me leva à globalização. Como já tem sido várias vezes referido neste blog, a globalização alterou, ou tentou alterar em muito o relacionamento no mundo. Ao considerarem o conceito de globalização mais relevante do que o propositadamente esquecido espírito de pátria, as nações dominantes têm-se entretido a realizar um jogo – o PIBismo - que não é inocente: como medida da importância dos países, comparam os respectivos PIBs com a facturação de grandes empresas multinacionais. De uma penada, privatizam assim a ideia de nação, que fica reduzida a aspectos meramente económicos. Facetas culturais, a existência de um património nacional e a já aludida noção de pátria são liminarmente ignoradas.
Como que a substituir a língua materna de cada indivíduo, as nações dominantes, nomeadamente as de língua inglesa, impõem o seu idioma. Os seus monoglotas governantes não têm que falar qualquer língua estrangeira; são os outros, todos eles, que terão de falar a sua língua.
Globalização e colonização andam de mãos dadas. Relativamente aos países mais poderosos, os outros tendem a ser vistos e tratados como colonizados. Quando antigamente os brancos portugueses e os brancos ingleses chegavam pela primeira vez de barco aos seus territórios coloniais, parecia-lhes que todos os nativos eram iguais. Praticamente indiferenciados. Só gradualmente é que alguns começaram a compreender que havia diferenças tão grandes entre eles como entre os brancos. Gente boa e gente má. Uns argutos, outros pouco inteligentes, uns carinhosos, outros rudes, uns falsos, outros tremendamente leais e sinceros.
É contra esta visão de um mundo pretensamente igual que muitas nações levantam a crista e cantam à maneira do galo as suas diferenças. Elas não são iguais a todas as outras. Têm as suas características próprias. Possuem uma identidade nacional, quer os poderosos queiram ou não queiram. É deste sentimento de revolta, creio eu, que nascem as candidaturas deste tipo. Contra as injustiças da globalização, as nações menos mediáticas pretendem um reconhecimento que seja igualmente global – através de um órgão representativo dos múltiplos países do mundo, como é a UNESCO.
Este ano, lado a lado com Portugal e o seu fado, estiveram, entre outros, os mariachi do México, a poesia ao desafio típica de Chipre, o teatro de sombras chinês, artes marciais da Coreia, canções da Croácia e rituais da Colômbia. A marcarem a diferença. Não competem entre si. Procuram apenas mostrar-se, exibir a sua especificidade própria perante um mundo que não pretendem ver estandardizado.
Curiosamente, as grandes potências de língua inglesa, v.g. Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá, nem sequer ratificaram a convenção que sustenta a eleição para Património Imaterial da Humanidade. Não precisam. Entrar nestes domínios de características específicas até as faria perder a sua força total.
A terminar, alguns dados que retirei de uma notícia do Público: em 2009 houve 76 reconhecimentos oficiais, em 2010 foram aprovadas mais 47 candidaturas e este ano apenas 19, entre as quais a do nosso fado. Nesta luta pela identidade na era da globalização, viva o fado português!

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