12/08/2011

A minha rua continua a contar histórias

A minha rua, da qual tenho já aqui falado mais do que uma vez, poderia ser vista como um pedaço de estrada alcatroada com uns 300 metros de comprimento e com prédios dos dois lados. São os prédios que flanqueiam a estrada que a tornam "rua". No entanto, essa não será a grande diferença. Creio que esta reside principalmente no facto de que enquanto uma estrada tem viajantes, uma rua tem residentes. E são sempre as pessoas que mais contam.
Dela já aqui falei da existência de uma casa de gelados à moda antiga, das oficinas de automóveis e garagens que muitas vezes a entopem, de uma típica papelaria de bairro com gente simpática e de uma escola de ensino básico. Hoje permito-me informar que, infelizmente, a farmácia que aqui existia há várias décadas fechou as suas portas. Tratou-se de uma questão de negócio para o proprietário do alvará, não de falta de negócio.
Mas sendo as pessoas o que mais conta, forçoso é que eu volte a falar no Nolasco. O Nolasco não será má pessoa de todo, mas é decerto um sério candidato à classificação de "o indivíduo mais chato que conheço". Pegamasso. Vê-lo ao longe já significa um perigo. Se ele nos apanha ao virar da esquina, porém, sem termos tempo de sorrateiramente nos escaparmos para o passeio oposto, então podemos considerar fatal o ataque que o Nolasco desencadeia. Homem dos seus 70 anos, adora cultura. À sua maneira, entenda-se. Mas, principalmente, venera-se a si próprio. Costumava escrever artigos para o jornal da sua terra, o que possivelmente ainda hoje faz. Pois trazia sempre um desses artigos no bolso, dobrado com algum cuidado já que se tratava de propriedade sua. Quando me encontrava – possivelmente faria o mesmo com outros vizinhos - retirava do bolso o papel e começava a lê-lo, com trejeitos de voz e um arquear de sobrancelhas indagante "está a perceber?".
No mês passado estive fora durante os dias. Calhou mal para o Nolasco, que tinha voltado da terra com uma poesia nova, um canto louvando o local onde nasceu, algures na Beira. Tão pressuroso estava relativamente à exibição dos seus versos – oito quadras ao todo – que ousou bater à minha porta. Atendeu-o uma senhora que cá estava. Reconhecendo-o da rua, abriu-lhe a porta. Vinha entregar-me aquela sua nova composição. Na capa, via-se o castelo do torrão natal do Nolasco. Mas era lá dentro que estava o mel, as tais oito quadras. Como eu não estivesse, deu em mão o papel – uma folha A4 dobrada ao meio – para me ser entregue. Porém, de súbito ocorreu-lhe que estava ali uma potencial ouvinte das suas composições de vate inspirado. Zás, pespegou-lhe com os primeiros versos recitados como só ele sabe. A senhora disse-lhe polidamente que gostaria muito de ouvir o resto, mas que infelizmente não tinha tempo. Tinha as suas horas e o seu trabalho para fazer.
Quando regressei a Lisboa, encontrei os versos sobre a minha secretária. Li-os, naturalmente. Os versos são sinceros, estilo naïf. O poeta fala à sua terra como se de sua mãe se tratasse e narra para o leitor parte da sua história já antiga.
Foi só ontem que o Nolasco me encontrou. Eu estava sem escape possível. Como seria lógico, desfechou-me a pergunta sacramental: "Já leu?" Que sim, respondi. Acrescentei que tinha gostado e achado interessante. Ocorreu então aquilo com que eu nem sonhava: o Nolasco não só sabia os seus versos de cor, como num repente ele aí estava a cantar-mos em plena rua, como se de um fado de Coimbra tipo-Hilário se tratasse. Senti-me perdido. Iria ele cantar-me as oito quadras? Ali? Fiz um gesto com a mão e ele decidiu parar. Mas depois insistiu tanto, que ainda cantou a segunda quadra. Perante a minha surpresa pela cantoria, comentou "Então não viu que era A minha terra que eu canto?" Sim, tinha lido a palavra "canto", mas não imaginava…
Tenho algum temor, confesso, de que numa próxima vez o Nolasco me queira cantar as restantes seis quadras. Sentidamente, como só ele sabe.
De facto, a minha rua é bem diferente de uma estrada por onde apenas se passa. Adoro viver aqui.

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