12/02/2011

Cristianismo, marxismo e marktismo

Quando, há oito anos, um pequeno grupo de amigos pensou em criar este blog e dar-lhe um nome, achámos todos que "azweblog" poderia ser uma boa designação, na medida em que nos permitiria abordar assuntos de A a Z. É dentro deste amplo leque que hoje me proponho abordar de forma muito sucinta algo que terá certamente a ver com a sociedade dos nossos dias.

O cristianismo é, tal como o judaísmo e o islamismo, uma religião monoteísta que procura salvar o homem, impondo-lhe um conjunto de regras que o ajudem a viver melhor em sociedade. As religiões reconhecem que o ser humano é possuidor de uns tantos instintos básicos que precisam de ser combatidos a fim de permitir que a sociedade em que as pessoas vivem seja tão justa quanto possível e, principalmente, pacífica. O decálogo que encontramos para os judeus e para os cristãos abarca uma série de mandamentos que procura cercear o mau uso dos instintos humanos – a parte mais animal do homem, por assim dizer – a fim de proporcionar uma sociedade sem grandes problemas. No cristianismo ordena-se algo que considero bonito, embora perfeitamente utópico - "Amar o próximo como a nós mesmos." É imposto, por outro lado, todo um conjunto de "nãos", de que são exemplos os conhecidos "não matarás", "não roubarás", "não cobiçarás os bens do próximo", "não levantarás falsos testemunhos" e, ainda, "guardarás castidade nos teus pensamentos e desejos".
Por seu lado, uma oração fundamental dos cristãos, o Padre-Nosso, pede ao Senhor para perdoar os nossos pecados, "assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Ora, diga-se o que se disser, todos estes mandamentos e ditames constituem uma violência para a natureza humana. Qualquer humano tem mais probabilidade de não respeitar um destes princípios e assim cometer pecados do que uma moeda atirada ao ar tem de ficar em pé.
Pessoalmente, como aliás digo acima, considero irrealista pretender que amemos o próximo tanto como a nós próprios. Se o que nos acompanha na rua é a nossa própria sombra e não a de outrem, se o sofrimento quando vem é sofrido por nós mesmos, como se poderá pretender que eu goste tanto do meu vizinho como gosto de mim mesmo? Só se me retorcer todo é que conseguirei cumprir este desígnio. Contudo, depois desse esforço titânico, é altamente provável que não responda por mim.
E como se poderá compreender que eu deva perdoar aos outros o mal que me fazem? Conhecendo a humanidade, se eu perdoar ao infractor, ele continuará a infringir as regras do bom-viver. Mais: se eu declarar previamente que lhe perdoo qualquer mal que ele faça, existem sérias probabilidades de ele não só continuar a cometer o mal como também de não sentir qualquer peso na sua consciência.
Se seguido à letra, o que o cristianismo preceitua é, pelo menos em minha opinião, muito contranatura, conquanto nos indique um caminho por assim dizer santificado e utopicamente desejável.
O cristianismo reconhece sete pecados mortais: a gula, a avareza, a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba ou vaidade. A gula é em princípio o desejo insaciável por comida e bebida, mas está também directamente relacionada com a cobiça, com o querer ter sempre mais e mais, o que a faz ligar à avareza ou ganância, que como todos sabemos demonstra um prazer excessivo por bem materiais. Os outros pecados capitais são, aliás como os anteriores, facilmente identificáveis, mas principalmente reconhecíveis como característicos do ser humano. Precisamos, em numerosos casos, de nos controlarmos firmemente ou nos "domesticarmos" para não incorrer neles. Fazem parte da nossa natureza, uns mais do que outros. A religião, e a educação que com ela vem, tenta denodadamente corrigi-los. Ainda que com bons propósitos, a sua acção corresponde a uma certa violentação de reacções nossas que consideraríamos normais e que assim nos esforçamos por reprimir.
Tanto o cristianismo como o marxismo – embora este seja não uma religião como o cristianismo mas sim uma doutrina política – advogam a justiça social. Karl Marx enraivece-se com a desigualdade social existente, manifesta-se contra a crueldade de uns possuírem muito enquanto outros passam fome e padecem de uma miséria atroz. Pretendeu criar um sistema que tornasse possível na Terra algo que o cristianismo messianicamente prenuncia e defende. Na base dos enunciados do marxismo reside uma exaltação do altruísmo e um sentimento profundo contra o egoísmo.
Inquirir se, quer o cristianismo, quer o marxismo genuínos são praticáveis é outra questão.É, porém, uma questão altamente relevante. O cristianismo e o marxismo apelam à natureza do homem, ao ser. É legítimo perguntar se ao ser humano bastará o ser. E onde fica o ter?
A pergunta tem toda a razão de existir, já que é um facto que ao comunismo se seguiu o consumismo. Passámos do ideal comunista à realidade consumista. Foi um compositor americano dos nossos dias quem enunciou bem a questão e de uma forma extremamente simples: "O comunismo não resulta, porque as pessoas gostam de ter coisas."
E é aqui que presentemente entra em grande força o marktismo. (Crio o neologismo utilizando como base a palavra alemã Markt (mercado) em vez do inglês market a fim de permitir uma sonoridade mais aproximada à de "marxismo", mas escrever "marketismo" é perfeitamente possível também.) Se o marxismo constitui, afinal, tal como o cristianismo, uma tentativa de controlo da besta humana que há dentro de nós, por seu lado o marktismo explora a libertação dessa bestialidade. Serve-se dos instintos menos controlados e mais ansiosos de prazer das pessoas para lhes apresentar uma doutrina aparentemente libertadora que é simultaneamente uma prática altamente lucrativa para os seus mentores. Com isto cria a evidente crise de valores de que muitos se queixam. É a política do vale-tudo. Enquanto cristianismo e marxismo aspiram a uma maior igualdade social, o marktismo combate-a, na medida em que a acha contranatura. Não só aceita a libertação do animal que está dentro de nós como a fomenta. Se aceita ajudar um pouco os mais pobres, fá-lo apenas como manta ilusória e por razões de conveniência social, para sua própria segurança.
Para o marktismo, o desemprego constitui apenas um fenómeno natural; o cumprimento de objectivos dos que desempenham um lugar numa empresa ou na administração pública transforma-se no objectivo número um. A acumulação de riqueza por uns poucos, que se tornam extraordinariamente poderosos em comparação com o que sucedia num passado ainda recente, isenta de julgamentos de valor esses mais poderosos porque a fortuna os torna "predestinados". Não consideram falta de ética mas sim um mero uso do seu poder o facto de manipularem a justiça e usarem os seus lobbies para conseguir legislação que os favoreça. Rotulam de invejosos os que os contestam. Eventualmente apodam-nos de "velhos do Restelo" também (em vez de rebaterem argumentos, atacam os mensageiros). O mundo é seu. O poder inebria-os. A globalização deu-lhes a volta à cabeça, os meios tecnológicos serviram-lhes às mil maravilhas para escapar a realidades que fariam reduzir os seus réditos.
O que daqui resulta é um extraordinário sentimento de revolta na população que fica de fora e que, pelos princípios actuais, é considerada “redundante”: os “indignados” manifestam-se exuberantemente, a maioria permanece silenciosa e igualmente receosa: revoltar-se contra o poder pode custar caro.
Não é impossível que este marktismo seja de longa duração – fazer previsões é quase sempre errar – mas não lhe auguro bons resultados. Onde prevalece actua ditatorialmente apesar de consentir umas tantas liberdades, entre elas a de voto, mas a farsa não pode durar sempre. Confiemos na revolta da humanidade contra o presente statu quo.

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