No seu livro mais conhecido, Max Weber defende que a América se tornou rica através de comunidades originalmente puritanas que, com os seus princípios de austeridade, honestidade, ética e amor pelo trabalho acabaram por construir algo que não era o seu objectivo principal: uma sociedade materialmente próspera. Mais tarde, para justificar a riqueza de muitos americanos foi adoptado o conceito de que a riqueza é um sinal de Deus de que a pessoa rica está nas Suas boas graças. Logo, para manter esse estado de graça divina, os ricos deveriam empenhar-se na prossecução da sua riqueza. Esta terá sido a maneira inteligente de tornear a importante questão bíblica de que mais fácil será um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Hoje a América é, obviamente, muito diferente, mas alguns dos postulados antigos são considerados parte integrante da sua cultura.
Todas as nações possuem uma cultura própria, a qual é frequentemente condicionada por factos políticos. Quando na Inglaterra do século XVII o Parlamento derrotou o rei, vindo este a ser enforcado na praça pública, este facto político influenciou decisivamente um individualismo que já vinha de trás mas que se acentuou e contribuiu para levar ingleses aos quatro cantos do mundo, incluindo naturalmente a América e a Austrália.
Pelo contrário, em França a vitória da realeza e do absolutismo conduziu a uma hegemonia do poder real que é ainda hoje patente no centralismo presidencialista e em tantos outros aspectos.
E em Portugal? Estou em acreditar que no nosso país a influência do absolutismo, a existência da Inquisição durante séculos, uma fraquíssima educação generalizada e, em tempos mais modernos, uma polícia de Estado muito activa condicionaram a nossa cultura de tal forma que nem períodos liberais nem revoluções de Abril têm conseguido modificá-la substancialmente. A ideia de salvador-da-pátria mantém-se, encarnada em cada governo para o bem e para o mal. O poderio dos fortes, apesar de contestado, continua a prevalecer impune, eximindo-se a impostos, conservando o sigilo fiscal que só a ele beneficia e escudando-se em corporativismos cancerígenos para a democracia. No Parlamento, eleito por votos conquistados através de um marketing escandalosamente despesista e mentiroso, os grupos votam em bloco – tal como em regimes ditatoriais e totalitários --, e considera-se isso perfeitamente normal. É o autoritarismo a prevalecer sobre a consciência individual, tal como no passado sucedia. E esse facto é considerado normal exactamente porque a cultura não se alterou na sua essência.
Mas algo se alterou, e muito. A mentalidade católica, que sempre lutou pelo comedimento da ambição, deixou-se invadir pelas potentes forças do marketing global. E o povo português, que possuía uma dose de poupança elevada para-o-que-desse-e-viesse, passou, para enfileirar com o mundo protestante mais avançado e rico, a gastar o que não tinha. Com isso ganhou prazer e dívidas. Ao quebrar o seu equilíbrio, o povo tem vindo igualmente a quebrar princípios éticos e valores sociais que lhe eram peculiares. É uma sequência lógica do salve-se quem puder. Com o pé-de-meia muito desfalcado e uma situação de grande precariedade laboral que era desconhecida, a crise instalou-se. Como corolário, a situação é de desnorte. À boa maneira da cultura centralista de sempre – os esquerdistas fizeram o mesmo logo após o 25 de Abril --, a direita faz instalar os seus homens e mulheres em lugares-chave para melhor controlarem o sistema. Até enveredam por uma regionalização recusada há anos em referendo e agora feita à socapa para melhor controlo político das regiões.
Os custos que uma situação destas provoca são elevadíssimos. Não se trata apenas dos custos de pagar subsídios de desemprego a um número de pessoas que daria para encher todos os lugares dos novíssimos estádios de futebol do Euro-2004. São principalmente os custos sociais. São os valores postos em causa. São os projectos nos quais ninguém praticamente embarca com gosto, porque se sente uma indesmentível imoralidade no ar. E se não se produz com vontade, produz-se menos. E se se produz menos, cria-se menos riqueza, que é o único objectivo aparente dos que governam.
É mais fácil construir grandes edifícios de cimento ou auto-estradas do que liderar pessoas. Portugal está à deriva pela contradição enorme entre o conceito de democracia e a sua prática, pela ponte há muito quebrada entre as promessas que são feitas e a sua execução. Histórias como a da recente decisão do tribunal sobre o caso de uma escandalosa podridão social em Guimarães, a que o povo pouco reage, mostram bem que continuamos com tolerância a mais, sem vontade de lutar, ditatorialmente manietados pelo sistema. Não peçam às pessoas que colaborem de livre vontade nestas circunstâncias. Elas só o farão por dinheiro. Quando assim sucede, a coisa está negra. Ninguém acredita. Quem não confia no que faz nem em quem o dirige fica longe de produzir o seu melhor. Traz o seu leito bem seco o rio da confiança.
É aqui que seria bom voltar à austeridade, honestidade, ética e respeito pelo trabalho dos puritanos. Eles, sem o quererem, criaram riqueza. Assim, nós criaremos quezílias sobre quezílias, que redundam em custos – e estes ocasionam o oposto da prosperidade que os governantes propalam. Os anarcas de 1975 tinham razão quando escreviam nas paredes: “Desculpem esta democracia. A ditadura segue dentro de momentos.”
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