Viver numa casa de hóspedes pode ter as suas vantagens. Por um lado há a simpatia dos donos da casa que, quando existe, torna a vida fácil e agradável aos seus hóspedes, pois há um quarto sempre irrepreensivelmente arrumado, assim como uma boa comida a tempo e horas. Acresce que, numa casa de hóspedes podemos, se tivermos alguma sorte, encontrar pessoas interessantes. Tive essa sorte. A história que me proponho aqui singelamente contar, de entre outras possíveis tendo como base o mesmo cenário, daria um conto a Somerset Maugham; a mim, dá-me um breve apontamento.
Conheci a Helena na década de 70. Irmã de um dos hóspedes da casa, a Helena tinha então 36 anos e, quando passava, fazia os homens parar inevitavelmente as suas conversas de rua para depois virarem o pescoço e vê-la bem de trás. De estatura média, bem fornecida de carnes e fortemente sensual no seu todo, a Helena tinha um belo cabelo preto de azeviche que emoldurava na perfeição um rosto fortemente maquilhado.
Apareceu a primeira vez lá em casa para estar uns seis meses em Lisboa, vinda de terras tropicais: a cidade do Lobito, em Angola. E como ela falava voluptuosamente do Lobito Sports Club e das festas do jet set local!
Era casada desde os seus 17 anos com um funcionário dos Caminhos de Ferro. O marido não veio a Lisboa aquando dessa sua deslocação, nem tão pouco as duas filhas, que estudavam no liceu do Lobito. A Helena vinha até à metrópole também para tirar férias do matrimónio que, pelas conversas tidas à mesa, a entediava razoavelmente, mas que ela não via qualquer necessidade ou conveniência em terminar.
Em Lisboa, o irmão, homossexual assumido com a profissão de decorador, não lhe causava quaisquer problemas a uma eventual fuga à rotina do matrimónio e, convenhamos, até a ajudava. Foi ele que lhe decorou o apartamento que o seu amante de Lisboa adquiriu, exactamente durante a primeira estadia dela na cidade onde a conheci. Por seu lado, o amante não lhe causaria problemas com outra mulher. É que o casamento dele não fora senão com Cristo. O indivíduo em questão era um distinto padre, na altura capelão militar, que pregava o bem e fustigava o pecado junto dos seus crentes ouvintes.
Que o celibato dos padres é uma aberração prova-o o elevadíssimo número de escândalos de ordem sexual que rebentam aqui e ali. Hoje a imprensa não os poupa, principalmente se se trata de casos de pedofilia. Com mulheres, digamos que o caso é diferente. Naquele tempo, porém, a inefável Comissão de Censura cortaria tudo o que fosse escandaloso.
O Capelão tinha mais dois ou três anos do que a Helena e era um indivíduo desempenado e bem parecido. Não aparentava ter quaisquer problemas de ordem material. Para além do apartamento que adquiriu na António Augusto de Aguiar e que registou em seu nome, bem entendido, comprou um potente BMW que pôs à disposição da sua bela Helena. Aliás, ela foi com ele ao stand para escolher a cor. Todavia, o BMW mostrou-se demasiado fogoso mesmo para a fogosa Helena. Num cruzamento aziago em Monsanto, à noite, ela encandeou-se com os faróis de uma outra viatura e enfeixou-se contra uma árvore.
Foi uma Helena algo disforme que se me deparou no hospital quando a fui visitar. Mas umas três operações estéticas, que causaram um inevitável prolongamento da sua estadia em Lisboa, recuperaram-na totalmente. A Helena talvez tenha acentuado um pouco mais a maquilhagem, mas manteve-se o mesmo belíssimo exemplar de raça apurada a suscitar comentários das senhoras e gulosos olhares de homens.
Contou-me ela em tempos -- nem sei porque me contava tanta coisa, devo dizer -- que uma vez tinha precisado do carro, que na ocasião o seu amigo padre tinha levado para junto da igreja onde ia dizer missa. Atrevida, entrou na igreja e foi postar-se de joelhos na teia, bem em frente do altar. Vira-se o pobre, que estava a celebrar o santo sacrifício da missa para a congregação e depara com ela ali, à sua frente, muito católica e perturbante. A Helena faz-lhe de maneira subtil o gesto de que precisava das chaves e ele, no meio do seu latinório e com a mão sagrada a sair da sua comprida opa, indica-lhe certeiramente que as chaves estão ao seu lado direito na sacristia, no bolso das calças. Não houve qualquer problema para a Helena em dar com elas e sair com o bólide.
Dois anos depois, chegou-me outra notícia através do irmão. A Helena, que entretanto voltara para o seu santo e bronzeante Lobito, estava cá de novo. Veio para casar a filha mais velha, que, tal como a mãe, ia contrair matrimónio bastante nova: acabava de fazer dezanove anos. Era uma bonita rapariga, mais alta do que a mãe e de sorriso relativamente ingénuo. De corpo esbelto, era nadadora exímia e ginasta. A cerimónia do casamento foi perto de Ferreira do Zêzere, com toda a pompa que o acontecimento merecia. Para mim, porém, o acontecimento foi o celebrante. Com muita honra dos noivos e de todos os convidados, a missa, envolvendo todas aquelas lindas e sinceras palavras que são da praxe e ficam para todo o sempre na memória dos nubentes, foi celebrada pelo Reverendo Padre Capelão.
Nesta semana da Páscoa, lembrei-me de recordar esta pequena história. É melhor que Deus não decida vir tão cedo cá abaixo verificar como se comportam os seus ministros.
Sem comentários:
Enviar um comentário