4/24/2004

TRELAMÓVEL

“Trelamóvel” é o nome que, desde o seu aparecimento, me acostumei a dar a esses pequenos instrumentos de extraordinária tecnologia que nos permitem, praticamente em qualquer lugar, alcançar uma pessoa que necessitamos de contactar. Estabelecemos então uma conversa, enviamos uma mensagem escrita, deixamos um recado verbal, mandamos fotografias, etc. Pessoalmente, nunca gostei de ouvir vozes através de telemóveis que me importunassem a perguntar “Onde é que estás?”. Coarctam-me a liberdade. Daí ter chamado “trelamóvel” a esta magnífica invenção e utilizá-la fundamentalmente para fazer chamadas.
Nesta minha resistência ao uso desbragado dos telemóveis devo admitir, porém, que nunca imaginei que pudessem um dia vir a ser tão úteis. Refiro-me ao facto de eles se terem tornado inegavelmente instrumentos de primeira necessidade tanto por parte de grupos criminosos como do lado da polícia que lhes dá caça. Seja na questão do tráfego ilegal de droga, seja no contrabando de mercadorias, nos badalados casos de pedofilia ou na revelação factual da promiscuidade existente entre futebol, imobiliário e política, o instrumento decisivo de captação de provas é este espantoso telefone portátil, que se atrela às pessoas e lhes revela os mais recônditos e ilícitos segredos.
Portugal é um país que até 1974 viveu com uma enorme sede de justiça. A alegria exuberante dos primeiros dias após o 25 de Abril mostrou a satisfação com que se beberam a grandes golos esperanças reais de uma profunda revolução na administração da justiça social. Com o andar dos tempos, porém, as esperanças começaram gradualmente a esvanecer-se. Hoje em dia, face a uma notória opacidade política e económica – que só não é maior devido aos meios de comunicação social --, perante o reacender do medo e uma corrupção quase generalizada e infiltrada até aos mais altos níveis, a sede de justiça redobra. Os cidadãos alternam entre um resignado encolher de ombros e um exaltado murro na mesa em protesto. A clara impotência perante a falta de transparência e de democracia política real incomoda grande parte da sociedade e tolhe-lhe a vontade de contribuir com o seu melhor. Daí também o seu baixo índice de produtividade.
É aqui que surge, qual anjo do espaço aéreo, o telemóvel. Sabiamente usado por alguns polícias e juizes para os quais a sede de justiça fala mais alto do que a sede do poder ilícito, o telemóvel tornou-se uma das grandes armas da democracia. Saudemo-lo, esperando confiadamente que os poderosos nunca consigam bani-lo das provas factuais que obrigam pessoas, sejam elas quais forem, a postar-se em tribunais perante a justiça. O trelamóvel transformou-se na cauda que abana o cão. Bem haja!

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