Todo o professor com alguma experiência já chegou a duas conclusões: a primeira é a de que o seu ensino é colectivo, perante turmas; a segunda é a de que a aprendizagem pelos seus alunos é estritamente individual.
Em termos de política, também toda a propaganda é dirigida a um colectivo. Mas o voto -- em certa medida comparável à assimilação da propaganda, i.e. à aprendizagem -- é estritamente individual. E secreto.
Nas escolas, é frequente encontrar-se professores que estão convictos de que o seu ensino agrada totalmente aos alunos que têm à sua frente. Por vezes, no entanto, um inquérito conduzido em condições de perfeito sigilo entre os alunos pode provar fortes desvios a essa visão optimista. Neste sentido, não é muito diferente a situação dos políticos que exercem o poder. Inabalavelmente crentes de que estão a governar bem, sofrem revezes significativos ao notar que "o inquérito conduzido entre os governados em condições de rigoroso sigilo", i.e. a realização de eleições, não corresponde ao seu convencimento inicial.
Acabámos de ter este caso em Portugal. As surpresas que aconteceram foram de monta. Poder-se-á falar, no entanto, de mudanças da direita para a esquerda? Ou, pelo contrário, será mais correcto falar nas reacções dos indivíduos enquanto unidades humanas, e não tanto no colectivo?
Seja o governo de Durão Barroso seja o de Santana Lopes provocaram ondas de mudança no que fizeram e no que anunciaram. Poder-se-ia considerar natural que as pessoas entrassem numa situação masoquista do tipo "quanto mais sofrimento eu tiver, tanto melhor"? Repare-se que estes dois governos falaram em assuntos que são possivelmente necessários e até urgentes, mas impopulares. Alguns exemplos? A idade da reforma iria ser aumentada. Os cálculos para as pensões tenderiam a ser revistos (em baixa). Os subsídios de doença diminuídos. Os subsídios para despesas de saúde (medicamentos, taxas moderadoras) igualmente revistos em baixa. Ou então à la carte: "a cada um segundo os seus rendimentos". As propinas do ensino superior revistas em alta. As SCUT a passarem a ter pagamento de portagens -- nalguns casos com um período de diferimento. Os passes sociais a serem condicionados. As rendas de casa aumentadas em mercado livre, causando despejos inevitáveis em numerosas situações. Entretanto, o desemprego sem parar de aumentar (as pessoas sem posto de trabalho efectivo excedem a marca dos 400 mil). Os juros dos empréstimos contraídos para compra de habitação a tornarem-se particularmente pesados para todos aqueles que perderam o rendimento do seu trabalho regular. Alguma discriminação notada no internamento hospitalar em unidades S.A. O espectáculo de ver o governo da Nação a ter de lançar mão de processos expeditos para não exceder o défice máximo consentido pelo PEC.
Pergunte-se: quantas pessoas sem emprego actualmente terão votado CDS ou PSD? Quantos comerciantes com lojas arrendadas terão continuado a acreditar no PSD que lhes ia tramando a vida? (Tive ocasião de presenciar ao vivo a manifestação de muitos comerciantes nortenhos em frente ao Parlamento, e fiquei impressionado com os seus gritos irados de que tinham votado PSD e sido traídos.) Quantos algarvios se sentiram com vontade de votar no PSD que, mais tarde ou mais cedo, os faria pagar por circularem na estrada mais importante da sua região?
Individualmente, tal como o aluno faz na aprendizagem na escola, o eleitor reage. Se tem bens importantes a defender, para si o que mais conta é a segurança. Daí os cartazes de Paulo Portas garantindo segurança. Daí também que nas freguesias de S. Francisco Xavier e da Lapa, ambas em Lisboa, o CDS tenha registado aumentos na sua votação de, respectivamente, 95 e 84 por cento. Em contrapartida, em Marvila, onde o estrato social é mais baixo, o mesmo partido perdeu 54 por cento dos votos de 2002. Como o dinheiro existe mais nas cidades do que no campo, os eleitores que votaram CDS aumentaram no concelho do Porto (12,8%) e no de Coimbra (4,2%).
Quem, pelo contrário, se preocupa mais com a ideia da liberdade de expressão e vê com o máximo prazer o desmascaramento de arranjinhos ilegais, terá em muitos casos votado Bloco de Esquerda. Mas alguns citadinos que ultimamente têm votado Bloco terão transferido o seu voto para o PS -- o seu interesse primordial era derrubar "o governo mais perigoso que Portugal teve desde o 25 de Abril". Isto terá, conjuntamente com a mensagem cautelosa mas optimista dos socialistas, engrossado não só o número de eleitores tradicionais como aumentado a lista dos transferidos de outros partidos mais representativos, nomeadamente do PSD.
As lições a colher não são exactamente novas. Dizem-nos que a população eleitora não gosta de mudanças súbitas. Grande parte dela muda igualmente de voto, e também de súbito. A outra grande lição a não esquecer é a de que, cada vez mais, as decisões são tomadas por cada um, individualmente, segundo as suas conveniências do momento. Nesta linha, o resultado das últimas eleições mostrou um enorme descontentamento com a prática governamental. Mostrou que, apesar de toda a propaganda mediática, o povo já está a reagir à TV como aos filmes: "é tudo fita!". Mostrou também que Portugal continua a ser predominantemente pobre ou inseguro na sua riqueza. Por último, mostrou que Portugal se acomodou de certo modo à situação de ser um país constantemente adiado.
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