Quando penso na minha infância, não posso deixar de recordar aquilo que a Igreja Católica procurou inculcar em mim: a noção de pecado, o inferno de chamas alterosas que torturavam a carne, a repetida súplica a Deus para que não nos deixasse cair em tentação. Mais tarde, o Estado através do seu braço da polícia secreta -- a PIDE -- haveria de mostrar-nos a todos o que significava pecar contra o establishment. Tínhamos assim uma dupla poderosa a condicionar-nos a existência: a Igreja e o Estado. De ambos vinha um mesmo tipo de mensagem: se pecas, vais sofrer. De facto, fosse no inferno pictoricamente descrito em tantos quadros, fosse na cela de uma prisão, o nosso destino estava traçado se saíssemos daquilo a que hoje se chamaria "politicamente correcto". O que isso significa para toda uma geração é tremendo; é o corte de asas à imaginação, a proibição de pensar livremente, o ficar muito aquém das nossas reais possibilidades. O medo fazia tudo isso.
A consciência de que esse medo existia fazia-nos valorizar sobremaneira todos aqueles que não mostrassem temor. É típico de uma sociedade temerosa destacar todos os seus que se distinguiram por actos de coragem. É a compensação, tão humana! Quando Humberto Delgado encarou destemidamente Salazar, apodaram-no de "General Sem-Medo". O nome ficou e era significativo: ter medo era a característica principal de todo um povo. Mais tarde, Mário Soares foi saudado quando se rebelou contra a tirania do Partido Comunista Português exactamente pelos mesmos motivos. A coragem que revelou quando sofreu um ataque físico no baluarte comunista da Marinha Grande valeu-lhe a Presidência da República durante dez anos. Aliás, muito do que se sempre se elogiou nos portugueses de outrora foi a sua bravura. Não é só o audaz Geraldo Sem-Pavor que conquistou Évora aos muçulmanos e assim se tornou herói. É, principalmente, todo um povo que, através de pequenas embarcações, ousou desafiar o monstro que todos temiam: o Adamastor. A veneração que a passagem do Cabo da Boa Esperança merece na nossa história e as inflamadas palavras de Camões citando os portugueses acima de todos os outros povos no seu destemor mais não são do que formas de incentivar gentes adormecidas a prosseguirem a rota da aventura dos seus antecessores. A história de Portugal lembra-nos igualmente vultos femininos que se tornaram destacados pela sua coragem. A "padeira de Aljubarrota" e "Maria da Fonte" são dois exemplos paradigmáticos de personagens que, contrariamente à maioria dos portugueses, não mostraram qualquer medo perante o perigo. Surgem de uma forma compensatória.
O português detesta o risco. Em jeito de compensação, admira a bravura dos outros. "O seguro morreu de velho" é um ditado ainda hoje muitas vezes repetido neste país. E há quem lhe junte: "E a D. Prudência foi ao funeral!" Que mais será necessário dizer?
Hoje o medo mantém-se em larga medida. É o medo de desagradar ao chefe, o medo de perder o emprego, o medo de ser considerado politicamente desajustado. "Não vejas, não fales, não ouças, não te rales... para que não te entales." Por este motivo, os protestos públicos são pouco frequentes, contrastando com desabafos muito críticos que se têm com amigos ou conhecidos. Na sua vida profissional -- e muitas vezes não só -- os portugueses não são moderados, como habitualmente se diz. São "medorados", o que obviamente significa "moderados pelo medo".
O corporativismo, tão enraizado na sociedade portuguesa, resulta parcialmente da noção de que é necessária uma força grande para enfrentar o medo, sendo o colectivo da corporação o advogado forte que nos defende. A dissidência -- e não nos podemos esquecer que é através dos dissidentes que o mundo avança e nunca através dos "yes-men" -- paga-se com língua de palmo. Com cada vez maior insistência, os governantes procuram "pessoas de confiança". Ora, uma pessoa de confiança para alguém ou para um partido político significa muito simplesmente que não é uma pessoa em quem a nação no seu todo deverá confiar. Quanto ao Estado, ainda hoje é visto como a maior de todas as corporações. Daí que a ideia da não-segurança causada pelo desaparecimento do emprego-para-a-vida represente uma enorme machadada cultural e o despenhar numa era de incerteza total.
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