2/16/2010

Gatos na formação de líderes

Haverá certamente entre os leitores quem se lembre da história do alentejano que foi admitido pela CIA. Começa assim: a Polícia Secreta dos Estados Unidos, Central Intelligence Agency, vulgo CIA, resolveu recrutar um atirador para as suas fileiras. Após várias selecções, entrevistas e testes, foi elaborada uma short list com três candidatos apenas: um francês, um inglês e um português (alentejano). Para a prova final, decisiva, os agentes da CIA colocaram, um a um, os candidatos sozinhos numa sala, diante de uma porta metálica e entregaram a cada um deles uma pistola. "Queremos ter a certeza de que cumprem as instruções, quaisquer que sejam as circunstâncias."
Chamaram primeiro o candidato francês: "Por detrás da porta daquela sala, você vai encontrar a sua mulher sentada numa cadeira. Terá que a matar!" "Está a falar a sério? Eu jamais mataria a minha mulher!" "Então, lamento", diz-lhe o agente, "mas você não pode ser considerado apto."
Ao candidato inglês foram dadas exactamente as mesmas instruções. Ele pegou na arma e entrou calmamente na sala, onde ficou sozinho. Após cinco minutos em que tudo se manteve em total silêncio, o inglês voltou à sala onde estavam os agentes. Trazia lágrimas nos olhos. "Tentei, mas não consegui disparar. Não posso matar a minha mulher!"
"Em vista disso, não podemos apurá-lo. Você não está totalmente preparado para trabalhar na CIA. Lamentamos", disse-lhe um dos agentes. "Agradecemos que vá buscar a sua mulher."
Chegou enfim a vez do alentejano! O nosso homem recebeu as mesmíssimas indicações. Depois, entrou na sala, onde, tal como os outros, ficou apenas consigo próprio. Passado menos de um minuto ouviu-se uma detonação. Outra veio a seguir. E depois, o barulho de mobília a partir-se, um grito. Voltou a calma e o sossego. O alentejano regressou lentamente à sala onde antes tinha estado com os agentes. Limpava o suor da testa. "Vocês bem me podiam ter dito que os tiros eram de pólvora seca! Tive que a matar com a cadeira!"

Esta historieta ocorreu-me quando li, já há alguns dias, uma entrevista que mão amiga me fez chegar. A entrevista em questão, excelentemente conduzida, é da autoria de Ana Gerschenfeld, jornalista do Público, e veio, naturalmente, inserida nesse jornal. Devo admitir que não costumo já surpreender-me muito com o que leio. Aqui, mais do que isso, arrepiei-me. Horrorizei-me com o que li. É que não é uma mera história de alentejanos, mas sim a realidade crua. Demasiado crua, de facto. O entrevistado chama-se Christophe Dejours, é psiquiatra e psicanalista, além de Professor em Paris, no Conservatoire National des Arts et Métiers.
Dessa longa entrevista, vou transcrever uma parte, sobre o assédio no trabalho. Até este ponto a conversa tinha incluído outros assuntos, entre eles os numerosos casos de suicídio no local de trabalho na France Telecom e noutras empresas, não só em França como também na Bélgica.

"As pessoas que são alvo de assédio são justamente as que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilístico manipulado. E, em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada. Já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e um tanto ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos que é impensável dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um único caso de assédio tem um efeito extremamente poderoso sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de total injustiça: ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que anteriormente. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar todo o colectivo de trabalho. Por isso, é importante, ao contrário do que se costuma dizer, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a darem essa formação.
Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios onde se aprendem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gato. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao bichano, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc. E, no fim do estágio, o próprio director deu a todos a ordem de... matar o seu gato.
Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive que tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros catorze mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, era uma aprendizagem do assédio.
Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se desta maneira."

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