2/06/2010

O que os gregos pensavam



Uma das lembranças fortes que tenho das coisas aprendidas no liceu diz respeito à disciplina de História. E, devo dizê-lo, não foi propriamente pelo que aprendi, mas pelo que me fez revoltar contra a formatação mental que estavam a tentar impor-me (a mim e aos meus colegas). O exemplo que escolhi para título parece-me esclarecedor: num teste normal (naquela altura usávamos mais a palavra "ponto") era vulgar aparecer-nos uma questão deste tipo: "Caracterize o pensamento grego no século de Péricles". É claro que todos escrevinhávamos o que o professor tinha dado em aula e que era, afinal, sensivelmente o mesmo que vinha no manual adoptado. Quem tivesse estudado não tinha grande dificuldade em obter nota positiva (mas o facilitismo não existia como hoje). Para mim próprio e possivelmente para alguns dos meus colegas ficava sempre no ar a pergunta: será que os gregos pensavam todos da mesma forma? Será que, ao longo do tempo de um século, não tinham altos e baixos na sua maneira de pensar, períodos de maior euforia e outros de desânimo e crise? A era de Péricles ocorreu, grosso modo, há dois mil e quinhentos anos. Existem registos, há textos de autores consagrados, mas daí partir-se para uma generalização que incluísse toda a população sempre me pareceu um claro exagero. Esse exagero criava o mito e desprezava a realidade.
Terá esta questão algum interesse para a vida dos nossos dias? Creio que sim. Não pelos gregos em si, mas pela mesma forma de tentar pensar num povo em bloco, como se os indivíduos não existissem isoladamente. Na minha actividade de professor, tentei várias vezes em aulas de um curso de turismo em que preparava guias-intépretes discutir as características essenciais do povo português. A discussão era sempre feita em inglês, o que favorecia sobremaneira a desinibição (a língua estrangeira como que coloca os seus utilizadores fora das fronteiras do país). A idade da maioria dos alunos oscilava entre os 19 e os 25 anos. Para essa aula-tipo, alinhavei uma listagem de características nacionais dos portugueses e logo vi que não se podia impor absolutamente nada taxativamente. Porquê? Porque, como o sociólogo indiano Arjun Appadurai disse há uns anos em Portugal, "as características essenciais de um povo são geralmente mais um produto de ideólogos do que da realidade. Podem enumerar-se umas tantas características, mas também os seus contrários."
Assim é, de facto. Pode dizer-se que os portugueses são egoístas? Claro que sim. Mas há decerto inúmeros exemplos de altruísmo entre os cidadãos lusos. Múltiplos casos de hoje e de sempre. Poderá dizer-se que os portugueses são honestos? É evidente que se pode. Mas também é possível apresentar instâncias de concidadãos nossos que revelam uma imaginação que é tão poderosa quanto desonesta. Poderá dizer-se que os portugueses são tristonhos? Não duvido. Também dantes aprendíamos que os gregos tinham um ideal de beleza pautado por parâmetros x e y. Então e a gente alegre que pulula por todo o lado neste país? Há pessoas de alegria contagiante, seja a divertir-se a si próprias, seja a divertir os outros. Essas não contam?
Dir-se-á, num posicionamento conciliatório: "quando se fala que os portugueses são assim ou assado, referimo-nos à maioria, não a todos, como é evidente." E quem é que apurou essa maioria? E se realmente a apurou, fê-lo na cidade ou fora do meio citadino? Que camadas etárias estudou? Pessoas com estudos ou sem estudos? Ricos ou pobres?
Há coisas que são indiscutivelmente características da nossa sociedade, que se podem medir e, como tal, são alvo de medição: a percentagem de jovens até aos 15 anos relativamente aos idosos com mais de 65; o rácio mulheres / homens; a comparação entre as notas obtidas por rapazes e raparigas nos seus estudos; a quantidade aproximada de peixe, de arroz, de carne ou de cereais consumida em Portugal; o número de casamentos religiosos vs. o número de casamentos pelo civil ou meras uniões de facto, etc., etc. Estes são indicadores que dizem alguma coisa sobre o povo e fornecem informações importantes. Quanto a dizer "os portugueses acham que...", a afirmação produzida, seja ela qual for, é capaz de provocar, inadvertidamente ou não, a exclusão de uma parte significativa da sociedade. Além de, como Appadurai diz, permitir a afirmação do seu contrário.
Curiosamente, mantive as aulas que referi sobre as características nacionais dos portugueses. Porquê, se não se apuravam dados concretos? Porque davam azo a discussões acaloradas, com um ardor que raramente se encontrava no debate de outra temática. Eram aulas que permitiam aos alunos expor as suas ideias com exemplos vivos e veementes e, simultaneamente, praticar o seu inglês com o total à-vontade que o calor da argumentação favorecia. Para mim, como professor, eram aulas excelentes. (Aqui e ali tomava nota de algumas deficiências linguísticas dos alunos, que procurava eliminar em aulas seguintes, geralmente com razoável sucesso.)
O curioso destas coisas é que variedade e uniformidade jogam segundo o gosto do cliente. Assim, Portugal é variedade paisagística para o turismo: entre as montanhas do norte e as planuras do sul há diferenças substanciais, assim como as há entre o país de granito ao norte e o do barro ao sul. Igualmente profundas são as diferenças entre o interior e o litoral, entre o Portugal atlântico e o mediterrânico. Isso, que é real, dá para vender turismo – e justificadamente. Mas quanto ao resto, parece que Portugal é um bloco, como que cortado especificamente para ser Portugal e só Portugal. E a população será uniforme? É um facto que não existem separatismos como há noutros países, de que a vizinha Espanha é um bom exemplo. Mas estamos longe, muito longe de sermos todos iguais. Nada de mais previsível e lógico, afinal, se pensarmos que somos descendentes de iberos, de celtas, de romanos, de suevos, de alanos, de vândalos, de visigodos, de mouros, de judeus e de sei lá mais o quê. Por aqui se vê que pretender uma uniformidade cabal é ficção e puro mito. Mas que nos sentimos todos, ou praticamente todos, portugueses, que o país é o mais antigo da Europa com as mesmas fronteiras, que existe uma alargada base cristã no país e que a língua é a mesma de norte a sul e de este a oeste, é também um facto. Contudo...
Há muito pouco tempo li uma opinião sobre este mesmo tema em entrevista dada pelo historiador Rui Ramos e, francamente, tendo mais a concordar com ele do que com aqueles que dizem "os portugueses acham que..." (Este "acham" está a tornar-se tão vulgar que já justificou a criação de um conceito novo: o achismo.) Dizia ele: "Quando há dez milhões de portugueses, há dez milhões de maneiras diferentes de se ser português." É claro que aqui poderá haver também algum exagero, porque, por exemplo, o uso da língua condiciona em grande medida o nosso mundo e a nossa maneira de pensar e constitui portanto uma fonte unificadora, mas de qualquer forma prefiro esta perspectiva à afirmação de que "os portugueses são sentimentais, pessimistas e melancólicos", que me lembra terrivelmente a clássica "assim pensavam os gregos no século de Péricles."

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