1/31/2010

Moral de pacotilha


A foto acima, que reproduzo da edição do i de ontem, já terá dado volta ao mundo e, pelo menos em Portugal, mereceu honras de televisão nos noticiários de horário nobre. Aparentemente, o mundo está chocado. As acusações sucedem-se, sempre na mesma base: médicos e paramédicos insensíveis ao sofrimento alheio de tantos mortos e feridos no Haiti, onde se encontram, saboreiam com visível gosto o whisky que saltou da garrafa para os seus copos. Escândalo, imoralidade!
Será mesmo assim? Terá alguém perguntado aos médicos se o sofrimento de tantos lhes é indiferente? Como se pode saltar tão facilmente para essa conclusão? Pessoalmente, não possuo dados para retirar com rigor qualquer conclusão que me possibilite fazer um juízo correcto, mas a minha experiência de vida ensinou-me várias coisas e não é impossível que tenha vivenciado algo de natureza semelhante, nomeadamente na guerra colonial. É fácil condenar. É facílimo armar em moralista tendo apenas como base uma fotografia que, admita-se, será real. E quem a enviou para o Facebook, o que procurava? Populismo à maneira das enormes multidões que regularmente aclamam políticos demagógicos? Possivelmente.
Um médico, tal como toda e qualquer pessoa normal, sofre perante o sofrimento alheio. Quando se vê forçado a amputar a perna a um paciente porque não existe outra alternativa, perpassa-lhe pela mente, como é natural e humano, que aquele homem ou aquela mulher vai viver até ao fim dos seus dias apenas com a perna que lhe resta. Eventualmente, conseguirá uma prótese.
E quando são várias as operações a realizar durante o dia em condições precárias, com a preocupação de causar aos doentes o mínimo de sofrimento possível? Apesar do seu profissionalismo, que felizmente torna as suas mãos mais seguras e a sua mente mais fria e racional perante o sofrimento alheio, o controlo que os cirurgiões forçam sobre si mesmos fatiga-os. Como não? Fazer incisões, cortar, ver sangue a brotar, testemunhar esgares de dor, ouvir lamentosos ais de sofrimento juntamente com gritos de pânico – será que nada disto impressiona e fatiga os médicos, os enfermeiros, os anestesistas, enfim, toda uma equipa?
Nesta circunstâncias, que acto mais natural para médicos e paramédicos do que o de pretenderem uma boa refeição e uma melhor bebida no final do dia, algo que os faça esquecer por momentos o que se passa lá fora – até porque amanhã a cena vai porventura continuar com mais alguns casos difíceis? Quiçá apanhados no final de um longo dia de trabalho, médicos confraternizam com colegas seus. Que mal há nisso?
Recordo-me de cenas algo diferentes, mas igualmente pungentes, aquando da morte de alguém querido e consequente velório. Há lágrimas por muito lado. Mas há também um grupo, ou dois, de amigos verdadeiros da família, que compareceram por sentido dever ao velório e que, em face da morte, contam entre si anedotas, frequentemente de sexo. É tão óbvio: o sexo é um hino à vida. Afasta aquela ideia de morte que a todos um dia atingirá.
Os médicos que estão no Haiti também sabem, como é por demais evidente, que a sua própria morte lhes tocará um dia. Pretendem, logicamente, afastar a ideia. Essa e outras igualmente penosas. É humano e, o que é mais, é sadio. Só os masoquistas gostam de sofrer permanentemente. O médico tem de estar pronto amanhã para o que der e vier. Precisa de dormir, de estar descansado.
Imoral o comportamento do pessoal médico e de enfermagem por estar a beber uns golos de whisky? Imoral é pretender a perfeição nos outros sem olhar para si próprio. Os fundamentalistas e os dogmáticos procuram logo o mal, porque se há coisa de que gostam é de criticar os outros, o que os faz sentirem-se superiores aos criticados. Já agora, esses críticos perfeitos e imaculados deslocaram-se do seu país ao inferno do Haiti para ajudar, ou ficaram repimpados na sua confortável casa a ver o jogo na televisão?

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