1/04/2010
Descobertas e achamentos
Passamos a vida a aprender coisas que nos ensinam das mais diversas maneiras e, de quando em vez, fazemos as nossas próprias descobertas. Não é raro que nos tenham ensinado isto e aquilo que, mais tarde, temos que corrigir ou, pelo menos, ver sob um ângulo diferente. Mesmo as palavras "descobrimentos" e "descobertas" são hoje contestadas relativamente a várias coisas. Após estudarmos que os portugueses de antanho fizeram a descoberta de numerosas terras, somos confrontados com a contestação de que, afinal, não se tratou de descobertas propriamente ditas, mas apenas de achamentos. O posicionamento do Brasil relativamente a este facto é bem ilustrado por A Chegança, um painel de azulejos (foto) existente na estação do Metro dos Restauradores, em Lisboa. Concebido pelo brasileiro Luiz Ventura, ele descreve à sua maneira o "achamento" do Brasil, terra que era há muito habitada por largos milhares de pessoas e, portanto, não podia ter sido "descoberta". A palavra "descoberta" teria na sua origem a óptica europeia: descoberta-para-a-civilização-da-Europa. Ora este facto colocaria a Europa no centro do mundo, denunciando assim uma insuportável supremacia de um continente sobre os outros.
Mas punhamos de lado estas questões e passemos para o lado bonito do descobrir. De facto, a quase totalidade das coisas que nós sentimos descobrir já foi, há muito ou há pouco tempo, descoberta por outros. Contudo, chegar lá pelos nossos próprios meios tem o sabor da descoberta e essa é uma sensação geralmente inesquecível. Recordo-me que em miúdo gostava de trautear canções populares brasileiras, daquelas que falavam em quindins, em vatapã, em berimbau, em jacarandás ("meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...") e em tantas outras coisas que me sabiam bem dizer a cantar mas de que eu na realidade não sabia o significado. Durante a viagem que há anos fiz ao Brasil, foi como que uma revelação descobrir, por terras da Baía e de Minas Gerais, que afinal os "quindins de Iaiá" ultrapassavam o mundo da canção e existiam como docinhos à venda nas ruas. Os quindins entraram-me pela boca dentro com um gostinho muito especial. (A cena evocou-me aquela vez em que a minha mulher abriu a porta da nossa casa a alguém que tinha tocado à campainha. Depois, vi-a virar-se para mim com os olhos muito abertos e um sorriso: "Afinal, eles existem!" Quem tocara à porta era um limpa-chaminés a perguntar se queríamos que ele varresse a chaminé da nossa cozinha com a sua vassoura gigante. Para ela, o limpa-chaminés não passava, até aí, de um personagem dos livros, de histórias de ficção. Súbita e inesperadamente estava um ali agora, em carne e osso, com cara enfarruscada e tudo!)
Naquela altura no Brasil, para mim era a história dos quindins. E o vatapã? Idem. E o berimbau, que, devo confessar, nunca encarei como um instrumento musical e que estava ali mesmo à venda na lojeca de S. Salvador? Descobre-se que estas coisas têm existência real e passam assim, para nossa surpresa, do imaginário para a vida. É um descobrir bom. Não tem um significado material importante, mas...
Durante a primeira vez que estive em Roma, fui sozinho a pé visitar o Coliseu. De maneira nenhuma experimentei a sensação de descoberta. Estava ali apenas uma velha estrutura que eu tinha já visto inúmeras vezes em filme e fotografia. Impressionou-me principalmente pelo seu ar decrépito. Mas lembro-me que, ao olhar para a ainda magnífica construção, voei até ao tempo dos imperadores Flávios que o tinham construído e recordei, para mim próprio, que datando mais ou menos daquele período nós tínhamos em Portugal uma cidade que pelo seu nome lhes estava ligada: Chaves (Aquae Flaviae). E aí, sim, experimentei uma viva sensação ao associar o tempo em que o Coliseu foi construído com a era da construção da ponte sobre o Tâmega, na mesma cidade de Chaves. E fiz a ligação entre o nome do rio que corre na nossa província isolada de Trás-os-Montes com a designação de outro rio que flui num outro lugar bem mais movimentado – Londres – e, postado junto do Coliseu, invadiu-me a sensação de um tempo palpável, ora a fluir muito depressa, ora quase parado (o nome actual do rio londrino é Thames, bem diferente do original Tâmega da era romana, que no entanto se mantém ainda hoje em Trás-os-Montes). Houve todo um jeito de descoberta de coisas que estavam lá há muito tempo mas que agora eu via de forma diferente, como que com outros olhos.
Às vezes, também visitar museus pode produzir uma idêntica percepção. Há relativamente poucos anos, fiquei especado durante alguns minutos em frente ao busto de Péricles que encontrei no Museu de Arte Antiga, em Berlim. Era o mesmo dos meus manuais de História do Mattoso (pai). Senti o tempo perpassar por mim, desde os meus catorze anos e, noutra perspectiva, desde a era de Péricles – século V antes de Cristo - até àquele momento. Tratava-se de outro velho amigo. Como a cabeça de Nefertite o foi ao visitar o Neues Museum, da mesma cidade de Berlim. E a Gioconda, no Louvre. Ou a Torre de Londres, com os seus vicentinos corvos a transportarem-me para a nossa Sé de Lisboa do tempo em que o seu primeiro bispo era um inglês.
Estas viagens de descoberta, que nada têm de novo para os outros mas constituem uma experiência rica para quem as faz, permanecem na memória como óptimos momentos. De súbito, descobre-se que... Descobre-se, por exemplo, que o Taj Mahal consegue transmitir-nos ainda maior beleza no local do que em qualquer uma das belas fotografias que circulam por aí. Descobre-se que as pirâmides do México, sejam elas a de Chichen-Itza, de Palenque ou de outro lugar, servem perfeitamente para mostrar a serpente que nos equinócios de Março e Setembro se vai estendendo pelos seus degraus abaixo, com contornos de luz e sombra, como D. H. Lawrence a descreve no seu romance A Serpente Emplumada - o Lawrence que peregrinou pela cidade mexicana de Uaxaca, onde eu próprio adorei saber que Uaxaca era o nome indígena para uma das árvores que povoou a minha mente desde miúdo: o jacarandá.
Descobrir assim dá-nos um gosto muito especial, embora só descubramos as coisas para nós mesmos. Foi assim também que, sem o esperar, aprendi que a expressão "prata da casa" provinha das ricas famílias que se estabeleciam por exemplo no Brasil e que mantinham nas suas opulentas baixelas de prata, enormes bandejas, etc. a reserva material à qual recorreriam em caso de extrema necessidade. De súbito, uma expressão que eu sempre usara ganhava um novo significado e estava ligada a pessoas e às suas vidas.
Sinto que descobrir é muitas vezes reeencontrar o rio da nossa infância, numa época em que quase acreditávamos mais no milagre do que na realidade. Lembro-me de, aos dez/onze anos, copiar através de papel vegetal mapas de um velho atlas que existia na casa onde eu então morava. O meu continente favorito era África. Com o lápis, decalcava a costa africana, ao mesmo tempo que imaginava como aquilo seria. E os rios que lá iam ter, depois de uma longa viagem pelo interior. Lembrei-me muito desses mapas quando, anos mais tarde, durante o meu serviço militar em Angola, estive durante vários meses junto ao rio Cuanza, um daqueles que eu gostava de percorrer com o lápis ao mesmo tempo que a minha imaginação saltava de ramo em ramo pela floresta virgem à boa maneira de Tarzan. Não era bem assim a realidade, mas tudo tinha o encanto especial da descoberta.
Do Egipto, onde nunca fui, vi imensas fotos e li variadíssimas reportagens. Curiosamente, foram dois obeliscos genuínos, um trazido para Paris por Napoleão e hoje colocado na Praça da Concórdia, e o outro em Nova Iorque, a que chamam a Agulha de Cleópatra (Cleopatra’s Needle), junto dos quais estive, que me fizeram transportar mais para a grande civilização do Egipto e dar-me uma ideia concreta da sua grandeza.
Sempre que surge alguma coisa que se "descobre" é um alento novo que nos vem à alma. Há pouco tempo tive uma surpresa. O nome de José Martí não me dizia muito, mas ao ler umas páginas sobre a maçonaria calhou que o seu nome aparecesse mais do que uma vez. Fiquei curioso, principalmente quando li que José Martí tinha sido iniciado em 1871 no nosso Grande Oriente Lusitano Unido, actual G.O.L. José Marti nasceu em 1853 em Havana, Cuba, filho de pai espanhol e de mãe canarina. Iniciado maçon aos 18 anos, já anteriormente revelara alguma inquietude mental que traduzira em panfletos e numa clara inclinação para ideias revolucionárias. Tornou-se um político genuíno, dos que sentem o que dizem. Pensador evoluído, foi ainda jornalista e poeta. Acabou por morrer pela independência da sua pátria cubana às mãos de soldados espanhóis que, depois de mutilarem o seu corpo, o exibiram à população. Hoje em dia, disse-me a minha filha, que tinha visitado Cuba, José Martí é o herói nacional cubano, homenageado com nome de rua e praça em Havana e noutras localidades. Ouvir falar assim de alguém que eu desconhecia quase totalmente até então transportou-me até à fervilhante parte final do século XIX, altura em que também em Portugal tínhamos tido, entre outras coisas, as importantes Conferências do Casino plenas de ideias novas. E, eu que andava a preparar a Escrita de Referência, uma compilação de citações breves e de excertos mais longos de obras que tinha lido e que me tinham seduzido, encontrei alguém a perguntar-me quando mencionei em conversa a clássica frase "Há três coisas que cada pessoa deveria fazer durante a sua vida: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro": quem foi que disse isso? Admiti que não sabia. Procurei na Internet e a surpresa foi total: o seu autor tinha sido... José Martí.
Tudo isto são descobertas pequenas, a par de muitas outras que só têm importância para quem as faz. Achamento, descoberta, quanto vale essa diferença? O prazer de descobrir e aprender por nós próprios é que não tem preço. E o mundo tem tanto de interessante para descobrir por cada um de nós!
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