1/20/2010
Conferência sobre a Índia de Gandhi
A conferência que ontem teve lugar na Fundação Gulbenkian podia, como tudo sempre pode, ter sido melhor. Para alguns, terá mesmo sido algo desapontante. Tal como sucede noutros casos, porém, não é tanto o que a conferência nos disse que importa, mas sim aquilo que ela acabou por evocar. A conferencista era Tara Gandhi, neta de Mahatma Gandhi.
Do seu avô, um brevíssimo resumo biográfico: nascido em 1869, cursou Direito em Londres e regressou à Índia, onde não teve grande sucesso como advogado. Mudou-se para a África do Sul, onde existia uma larga comunidade hindu. Aos poucos, Gandhi tornou-se o advogado defensor dessa comunidade. Era mal visto pelos brancos, que chegaram a espancá-lo. Gandhi recusou processá-los. Os seus princípios impunham-lhe a não-violência e o respeito pelos direitos das pessoas. A sua luta foi sempre pela verdade e pela igualdade de direitos. A sua política de manifestações e marchas ordeiras que não ofereciam qualquer resistência às autoridades criou dificuldades ao regime sul-africano. Neste sentido, Gandhi inspirou Nelson Mandela e, nos Estados Unidos, Martin Luther King. Vinte anos depois, regressou à Índia, ainda dominada pelos ingleses. Depressa se tornou um ídolo que controlava as multidões e causava dores de cabeça aos colonizadores europeus. Jejuns prolongados e marchas pacíficas com uma multidão de pessoas abalaram a jóia da coroa dos britânicos. Quit India! tornou-se slogan. Os ingleses, que nunca estiveram interessados em mudar a Índia, mas apenas em controlá-la para dela sacarem o máximo que podiam, tinham mantido os ricos marajás para controlar as enormes massas de gente. Fizeram o mesmo com Gandhi. Em 1948, a Inglaterra concedeu a independência à Índia. Poucos meses depois, Gandhi foi assassinado por um seu compatriota.(Foto do túmulo simbólico de Gandhi, em Delhi.)
A Índia, e isto é um lugar comum dizer-se, é como que o símbolo de uma cultura asiática que os antigos colonizadores ingleses repetidamente frisaram ser muito diferente da nossa, ocidental. E isto não são meras palavras. São factos. Gandhi não teria sido tão apelativo na Europa como o foi na Índia. Aqui, poderia facilmente ter sido preso, como na África do Sul. A sua política de activa não-violência, de resistência contínua à manutenção da cultura própria do seu povo, cultura menos interessada no usufruto dos bens materiais do que dos prazeres espirituais, teria ela mesmo encontrado uma forte resistência na nossa Europa. Em Portugal, por exemplo, a noção do dever e de missão que muitos dos indianos ainda hoje inerentemente sentem depararia com forte oposição na nossa luta permanente por mais e mais direitos, que nós confundimos frequentemente com os nossos desejos.
Ora, se a Índia fosse assim, a confusão reinaria por todo o lado. Com uma população de mil e cem milhões de pessoas, num país que é vasto mas está também algo gasto pela exploração que ao longo de milénios as pessoas vêm fazendo dele, a Índia tem obrigatoriamente de possuir outra filosofia de vida. A religião ajuda. As diferentes religiões, aliás. A maioria da população é hindu, mas com notórias variantes. Os muçulmanos, por seu lado, são mais de 120 milhões. Parafraseando a visão de Alberto Morávia, que nos deixou as suas impressões sobre o continente indiano que eu também já tive a felicidade de visitar, direi que a nossa Europa personifica o continente onde o homem está convencido de viver no centro do mundo, onde o passado se chama história e a acção é preferida à contemplação; na Europa pensa-se que a vida vale a pena ser vivida. Foi na Europa que André Malraux disse "Uma vida nada vale, mas nada vale tanto como uma vida", uma frase da qual um grande número de europeus não discordaria. Contrastantemente, na Índia existe como que uma desvalorização completa da vida, a qual surge como coisa um tanto absurda e dolorosa. Prevalece a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo mas para dele sair e alcançar a realidade supra-sensível ou verdadeiramente espiritual. A religião está, assim, imbuída de uma concepção negativa quanto à realidade dos sentidos, mas é francamente positiva quanto à realidade espiritual. Daqui advém toda uma paciência e resignação com aquilo que, inversamente para nós, são as agruras da vida e que nos tornam ansiosos por alcançarmos mais e mais bens concretos "enquanto cá estamos". Visitar Benares (Varanasi), peregrinar pela longuíssima margem do rio Ganges e assistir a peripatéticos passeios solitários de idosos ao longo da amurada, a funerais onde o corpo é incinerado e as cinzas deitadas às águas do rio, é uma visão inesquecível para quem possui uma cultura bem diferente daquela. Ali, a morte é aceite como naturalidade. É amiga e desejável.
Também nas questões do amor se nota um enorme contraste entre indianos e ocidentais. Revendo as clássicas pinturas europeias de Adão e Eva, notamos todo um pudor cristão e ocidental em mostrar os corpos e, nomeadamente, os órgãos sexuais. Tudo se resume ao simbolismo do fruto proibido. Pelo contrário, em numerosos templos indianos, e com especial realce para os mais de vinte que existem em Khajuraho, encontramos, a par do horror ao vazio nas paredes exteriores, que são preenchidas por uma imensa profusão de estatuária, a expressão do amor carnal. No Ocidente, seria absolutamente impensável encontrarmos este tipo de amor explícito (ver fotos acima) na decoração das nossas igrejas ou mesmo em quadros de museu. Morávia nota que entre nós "o acto sexual é empurrado para fora do mundo humano, na medida em que contradiz a idealização da pessoa humana que é procurada no Ocidente desde o paganismo até aos nossos dias. Adão e Eva, na Índia, são, pelo contrário, representados no acto da ligação carnal, porque o acto sexual não está banido do mundo humano, mas sim incluído e recuperado como êxtase cósmico, como comunicação total."
Sob o ponto de vista económico, no importante sector dos tecidos da Índia, a roca de fiar de que Gandhi tanto falava mantém-se ainda, como foi referido por Tara Gandhi na sua exposição. Na Índia existe uma preocupação natural e justificada em manter as pessoas ocupadas com trabalho. Daí que, a par de avançada tecnologia que naturalmente penetrou no continente indiano, se tenham mantido costumes mais antigos e tradicionais que permitem a ocupação de um maior número de pessoas em algo de útil. Como Tara Gandhi frisou: "Não pretendemos ser um país de produção em massa, mas sim um país de produção pelas massas (da população)".
Num aparte, foi curioso ouvir a neta de Gandhi notar o facto de que muitos ocidentais usam na sua língua os nomes de animais em sentido depreciativo e os conotam com qualidades negativas do homem. De facto, para um ser humano ser apodado de cão ou de cadela não é nada lustroso; tão pouco ser uma vaca ou um boi, uma baleia ou um tubarão, um porco ou um burro.
De alguém vindo de um país como a Índia, que adora o silêncio e a meditação, e onde se compreende profundamente que a simplicidade é a essência da universalidade, não é de estranhar ouvir dizer que as vibrações do silêncio são a linguagem suprema, como Tara Gandhi referiu.
Parece-me poder dizer que a conferência foi útil como motivo de reflexão para muitos, entre os quais me incluo.
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