1/16/2010

Desigualdades gritantes


No dia seguinte àquele em que ocorreu a tragédia no Haiti, fui a uma conferência sobre desenvolvimento a nível mundial. A conferência estava há muito planeada e não era, obviamente, o Haiti o seu tema principal. De resto, o nome deste pequeno país das Caraíbas nem sequer lá foi mencionado. E, contudo...
Na referida conferência, que se baseava no Panorama Económico e Social do Mundo, havia apenas um orador convidado, que preparou cuidadosa e até humildemente o que ia dizer, não se importando de ser menos correcto politicamente nalguns apartes que provinham da sua já longa experiência profissional. Estava a falar para uma pequena plateia maioritariamente constituída por engenheiros e economistas. No início da sessão, cada um dos presentes pôde recolher exemplares de uma síntese em português do World Economic and Social Survey 2009.
Ora, é deste relatório que retiro o gráfico acima. Creio que o que ele nos mostra é bastante elucidativo. As enormes disparidades económicas e sociais a nível mundial são bem visíveis. A propósito do muito badalado problema do ambiente e do aquecimento do planeta, o fracasso da cimeira de Copenhaga ocorreu em grande medida porque as desigualdades de desenvolvimento são tão acentuadas. Note-se que, desde 1950, em termos ambientais os países avançados têm sido responsáveis por aproximadamente 75 por cento do aumento das emissões de dióxido de carbono, apesar de representarem menos de 15 por cento da população mundial. O desenvolvimento económico continua a ser o principal desafio. Ora, esse desenvolvimento é importante não só para conseguir a erradicação da pobreza como também para reduzir gradualmente as enormes diferenças de rendimento entre os dois grupos de países. A ideia de manter inalterado o actual nível de desigualdade, enquanto o mundo procura resolver o problema do clima, não só é eticamente inaceitável como seria um factor de desestabilização política (estive a citar partes do relatório, que está na Net na sua versão integral).
No gráfico acima, verifica-se que a linha de paridade de poder de compra dos países do G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Canadá, Reino Unido, França e Itália) só foi ultrapassada há poucos anos pelo restrito grupo asiático a), que inclui Hong Kong, a Coreia, Singapura e Taiwan. Note-se que todos os outros países aqui referidos têm mantido uma linha que se afasta cada vez mais da do G7. A conversa do Produto Interno Bruto (PIB), isoladamente por país, é um bocado de treta, como todos sabemos. O PIB por habitante já dá uma ideia mais correcta. Simplificadamente, poderá dizer-se que a paridade de poder de compra entra aqui. Ora, repare-se como nos últimos 27 anos a situação se tem degradado substancialmente em matéria de desigualdade social (apesar da constante balela que apregoa exactamente o contrário).
E onde cabe o Haiti, cuja situação hoje toda a gente lamenta? O importante é que não nos esqueçamos que antes do tremor de terra a sua situação não era única. E também não era nada brilhante. Não se verificava, por exemplo, uma intensa procura por interruptores de electricidade, pois esta era – e é – inexistente em muitíssimas casas. O analfabetismo grassa entre a população. Mais de 50 por cento não sabe ler, nem escrever, nem fazer contas a sério. Porquê?, perguntar-se-á. É assim mesmo. Para que uns enriqueçam, outros têm de permanecer pobres. Assim como para que os governantes dos países subdesenvolvidos permaneçam nos seus postos eles têm de agradar aos investidores internacionais. Ora, o propósito do investidor não é o de ensinar o povo a ler, mas sim o de sacar dinheiro através de mão-de-obra barata e benefícios fiscais. É assim no Haiti, na Índia, na China. Os indivíduos mais letrados destes países há muito que o entenderam. É aqui que constitui uma enorme hipocrisia falar da situação do povo do Haiti como se fosse apenas o resultado de uma catástrofe natural e de agora. Celebridades do mundo do espectáculo e da arte oferecem uns milhões das suas contas pessoais, mas sabem antecipadamente que isso lhes é vantajoso: não só o Estado reconhece oficialmente as suas entregas em termos fiscais, como a sua imagem ganha ao nível da opinião pública. E a imagem conta muito. Sempre é melhor dar aos pobres do Haiti, que é um acto altruísta, do que entregar impostos ao Estado, algo que pode causar inveja pelo que dá a entender dos vultosos rendimentos auferidos.
Contou alguém na sessão acima referida que quando trabalhou num determinado banco internacional viu ser alocado um milhão de euros a um projecto dinamarquês apenas para a realização de um estudo que permitisse que a cor de uma ponte se mantivesse congruente com a paisagem. Para uma empresa em Moçambique terão ido três milhões de euros para construir uma torre anti-poluente numa zona onde, garantidamente, o ar era puríssimo. Quando um país oferece a outro subsídios é sempre sob uma cláusula de contratos com empresas nacionais: assim, em última análise, os subsídios revertem mais a favor de quem os dá do que de quem os recebe.
E agora, em termos de Copenhaga, como é que se pode levar países, que estão habituados a "colonizar" outros, a contribuir com elevados montantes, dentro de planos bem estruturados, mas sem qualquer retorno que não uma melhoria social a médio prazo e um melhor ambiente, tudo em termos globais? Que políticos são capazes, numa altura de sério desemprego para muitos países ocidentais, de levar os seus concidadãos a concordar com contribuições mais ou menos vultosas? Dado que a democracia depende imenso da opinião pública devido aos necessários votos dos eleitores, que políticos potencialmente ganhadores conseguirão levar o povo a fazer sacrifícios para o bem mundial? Será mais fácil dar um sinal contrário - o de proteger os nacionais - através de acções que dificultem a vida a trabalhadores estrangeiros, à semelhança do exemplo que a Itália nos está a oferecer.
A situação é complexa. No Haiti ainda houve um tremor de terra que, de forma politicamente correcta, leva com as culpas todas. A verdade é bem diferente. O brasileiro Gilberto Gil já a cantou, e bem, há uns anos atrás. Por sinal, exactamente em relação ao Haiti.

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