2/21/2010

Olhar e ver




Creio que todos nós já sentimos, intuitivamente, que olhar e ver não são exactamente a mesma coisa. Passeemos um bocadinho pelo tema.
Recordo-me de, numa manhã límpida e já relativamente quente de Maio, ter visto na praia um homem a brincar com o seu cachorro. O indivíduo estava a fazer uma experiência interessante, sobre a qual, aliás, acabámos nós os dois por vir a falar posteriormente: tinha andado a recolher pauzinhos e pedaços de cana praticamente iguais e tinha-os depois colocado sobre a areia. Depois, com um pauzinho idêntico aos outros – com a única diferença de ele lhe ter feito um pequeníssimo traço - chamou o cão para a brincadeira. O bicho não o largou mais e corria entusiasmado atrás dele. Com o cão excitadíssimo a correr à sua volta e a saltar a ver se lhe conseguia tirar o que ele tinha na mão, o homem deixou cair o pauzinho no meio dos outros e continuou a correr. O cão estancou imediatamente ao ver cair aquilo que procurava alcançar. Começou a olhar e a farejar. Do meio daquele montículo retirou um pauzito e foi, de rabo a abanar, levá-lo ao dono. Quando este lho tirou da boca, o cão ladrou de contentamento. O homem examinou o pau e constatou aquilo de que já suspeitava: o seu cão tinha-lhe trazido o pauzinho certo. Não fôra, obviamente, pelo traço quase invisível que o animal reconhecera o pedacito de madeira. O cheiro deixado pela mão do homem na madeira possibilitou ao animal a identificação da peça correcta. Ora, em princípio, nenhum de nós chegaria lá. E certamente não da maneira rápida que o cão conseguiu. No meio dos pauzitos todos, não seríamos capazes de descortinar aquele que era especial. O cão descobriu-o, porém, porque aprendeu a ver de outra forma, com a combinação de sentidos.
Será que esta combinação de sentidos é inata também no homem, ou somos nós que a desenvolvemos e melhoramos? Tudo isso. Mas o cão tem a vantagem especial de ver, para além dos olhos, com o nariz. Como sabemos, o seu olfacto, vulgo "faro", é muito apurado. Também no nosso caso, a própria existência dos sentidos, uns mais desenvolvidos do que outros, possibilita a sua combinação. Mas onde podemos começar a ver mais é através da educação e/ou da experiência, que pode e deve ser entendida como uma componente da educação. Um engenheiro vê coisas numa torre que possivelmente me passam despercebidas, um arquitecto descobre pormenores menos correctos numa casa que, para mim, não seriam exactamente defeitos mas para ele são; um matemático delicia-se com números da mesma maneira que um linguista com palavras, e ambos descobrem coisas que outros não vêem. Um médico vê coisas numa radiografia de que eu nem suspeito, assim como um músico pode deliciar-se com um simples olhar para uma partitura que, infelizmente, nada diz à esmagadora maioria das pessoas.
Por outro lado, da mesma maneira que temos a razão lógica e a emoção a controlar e marcar as nossas decisões, também temos a nossa razão e a nossa sensibilidade a definir os nossos gostos. Do seu apuramento, geralmente através da educação e da experiência – education and training, em certa medida – podem nascer sensibilidades brilhantes que produzem obras que surpreendem o ser humano comum. Não é necessário que sejam coisas complicadas. O importante é que se consigam ver coisas que não são aparentes numa primeira leitura para a maioria das pessoas.
Com alguém que me é muito caro – uma mulher - recordo-me de uma brincadeira, por sinal também numa praia, que costumava deliciar-me. Na areia ainda molhada mas já não assaltada pelas ondas, eu riscava uns traços à toa. Dez, doze, quinze traços. O que eu riscava não fazia qualquer sentido para mim, mas constituía um repto agradável para a pessoa com quem eu estava. Ela iria tentar "ver" alguma coisa ali. Estonteava-me ver o que a minha companheira fazia: geralmente depois de dar uma ou duas voltas àquele conjunto de traços sem sentido, lograva ver aquilo que eu nem por sombras via. Ela nada me dizia, não falava. Mas estava visivelmente contente por ser capaz de ver mais longe. Juntava mais um traço aqui, outro ali, uma forma arredondada além e, de repente, aquele desconchavado amontoado de traços que eu tinha deixado na areia começava a fazer sentido: estava ali uma figura perfeitamente identificável, que anteriormente já existira em embrião, por assim dizer. Essa figura podia ser uma paisagem, uma criança a transportar um cesto, um animal, ou outra coisa qualquer.
Ressalvadas as devidas proporções, aquela situação trazia-me à memória a bem conhecida, e bela, peça literária do padre jesuíta António Vieira, no seu Sermão do Espírito Santo: "Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a fazer um homem, - primeiro, membro a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar."
Por vezes podemos estranhar a inteligência de pessoas sem grande educação para solucionar problemas. Nunca me esquecerei da vez em que, durante o meu período de serviço militar em Angola, fui chamado para socorrer o condutor e ajudante de um enorme camião que se tinha virado na picada estreita, com uma enorme carga de sacos de café. Levei comigo duas viaturas militares equipadas com potentes guinchos, e vários soldados. Foram ligados cabos à camioneta e accionámos os guinchos, com o máximo de força. Nada. Ao fim de mais duas tentativas que fizemos, sem resultado, um dos soldados, rapaz inventivo e inquestionavelmente inteligente, por vezes algo sujeito a perturbações mentais, explicou que os guinchos não estavam na posição correcta relativamente ao camião. Pediu-nos para fazermos da forma que ele indicava. Assim se fez, e a camioneta, com a sua pesada carga, levantou-se gradualmente até ficar na posição devida, apta para prosseguir viagem. O facto de o soldado, sem nunca propriamente ter estudado Física, ter "visto" qual a posição correcta para exercer a força foi para mim uma experiência interessantíssima.
Pessoas sem grande educação revelam frequentemente um apurado sentido prático das coisas. Há tempos, dava eu um pequeno passeio pelo campo com um conhecido meu. A certa altura, ele perguntou-me se não precisava de umas fisgas. "Fisgas? Já não tenho idade para isso", respondi-lhe. “Não é dessas para se porem elásticos. Estou a falar de ramos de árvore, forquilhas,com a forma de um "v", que servem, por exemplo, para escorar os ramos de uma planta que tenha em casa." Nunca me tinha ocorrido tal coisa. Como havia, de facto, necessidade de algumas dessas "fisgas" para as plantas de interior lá de casa, arranjou-me num instante umas três ou quatro. Ainda hoje estão a cumprir a sua útil missão. Naquele dia, porém, eu não as tinha visto. Olhava sem ver.
Numa outra ocasião, com mais uma dessas pessoas para mim notáveis - o meu sogro -, calhou dar também um passeio pelo campo. Estávamos em 1975, numa ocasião em que se tornou moda construir parques infantis nas localidades. O meu sogro deteve-se, a certa altura: "E se levássemos aquele tronco além, que está caído? Vinha mesmo a calhar para fazer uma girafa para o parque!" Como?! Onde é que eu iria desencantar uma girafa ali no meio daquelas árvores caídas? No entanto, foi isso mesmo, desencantar uma girafa, que ele fez. Viu a cena. Mostrou poder de observação, imaginação, criatividade. Voltámos para arranjar uma serra manual, regressámos ao sítio e, passados uns minutos, já estávamos a carregar a "girafa" para o seu novo habitat. Foi uma alegria para a miudagem que estava a ver o parque a ser construído (foto). A improvisada girafa aguentou-se ao longo dos dois primeiros anos em que o parque permaneceu impecável. Uma noite, uns tantos vândalos saltaram o muro e destruíram tudo o que lhes apareceu à mão. A girafa não escapou, mas até lá portou-se valentemente. Graças ao meu sogro, que via coisas onde os outros nada viam.
Tal como muitas outras pessoas, a Joana Vasconcelos é uma artista muito interessante na sua criatividade. Os seus originais e inventivos sapatos Marilyn, artisticamente feitos de tachos e tampas, foram recentemente objecto de compra por um preço elevadíssimo na Christie’s, de Londres. O ano passado, tive ocasião de ver, na antiga casa pessoal de Calouste Gulbenkian em Paris, uma exposição da artista. Muito interessante! Bonecos de pano, coloridíssimos, que chegavam até ao tecto (foto). A juntar-se-lhes, grandes corações e peças da conhecida Fábrica Bordalo Pinheiro, devidamente cobertas por uma fina rede branca. Um espanto!
Ora bem. Não só a Joana Vasconcelos vê coisas onde outros se limitam a olhar como também não pára. Quem já deu uma vista de olhos a um relativamente pequeno jardim, integrado nos terrenos do Museu da Cidade, ao Campo Grande, não deu certamente por mal empregado o seu tempo. Matreira e artisticamente, a Joana Vasconcelos colocou lá muita da bicharada cerâmica que a Bordalo Pinheiro ainda fabrica. É uma animação ver aqueles gafanhotos (foto), macacos, sapos, lobos, sardões, cobras, caracóis, etc. a darem um novíssimo aspecto ao jardim. Há uns dois anos, ela foi até ao Museu. Viu o jardinzito. Visualizou-o diferente. Depois, foi só apresentar o plano, obter a devida aprovação, conseguir que as peças fossem fabricadas, e animar os arbustos, as fontes e as paredes. Mais uma vez, viu tudo onde outros apenas olhavam.
Já se terá entendido ao longo deste arrazoado que admiro estas pessoas. Por mim, possivelmente aquilo em que consigo ver algo mais do que a maioria dos meus amigos é nas palavras. Em várias línguas. Nas palavras que estão dentro e ao lado de outras palavras. Automaticamente sopeso-as, separo-as nos seus elementos, corto-as, reconstruo-as. Sei que não é nada de especial quando comparado com os casos que acima relato. Esta é uma das razões por que os admiro. Eles vêem o que os outros não vêem. Vêem muito para além do olhar. Aliás, "ver" é mesmo isso na linguagem comum: "Estás a ver a cena?"

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