2/26/2010

As faixas do CD



Há determinadas expressões que por vezes começam como meras tiradas de humor e, mais tarde, se revelam não só bastante certeiras como também não necessariamente aplicáveis apenas ao alvo original. Dentro das milhares de expressões de humoranónimo, recordo-me agora especialmente de uma. Diz o seguinte: "A mulher é como um CD de música. Por causa de uma ou outra parte boa, acabamos por ficar com tudo."
Dando de barato que a piada provém de um homem, admito que, no presente caso, não seja a já habitual provocação masculina à mulher que me interessa particularmente. Parece-me muito mais importante a aplicabilidade da frase a muitas outras coisas.
Qualquer um de nós sabe que possui facetas que agradam a uns tantos e desagradam a outros. Essas facetas, que num CD são faixas de música, sempre se revelaram importantes para uma catalogação que tendemos a fazer dos outros e os outros tendem a fazer de nós. Apesar de sermos tão variados como as tais faixas musicais, criamos empatias com umas pessoas e antipatias por outras, porque determinadas faixas, positivas ou negativas, se tornam predominantes para nós. É nessa base que nos apressamos a classificar e a catalogar as pessoas que, de uma forma ou doutra, encontramos na nossa vida. Escolhemos as facetas que nos são mais queridas ou, pelo contrário, seleccionamos as outras a que somos avessos, e assim rotulamos A ou B, apenas por causa de duas ou três facetas. Em última análise, tomamos a parte pelo todo. Dentro deste âmbito, catalogamos sinteticamente as pessoas como falsas, bondosas, comunistas, socialistas, pretas, leais, ciganas, gays, engraçadas, velhas ou solteironas.
Os governantes, que naturalmente situamos num pedestal mais elevado relativamente a nós, são geralmente pessoas que a sociedade analisa, escrutina e sujeita depois ao seu veredicto. Das personalidades que estão no alto vêem-se melhor as várias facetas devido à sua maior exposição mediática. Examinamo-las friamente? Não. Na realidade, tendemos a classificá-las entre boas ou más, óptimas ou detestáveis. Sempre? Não. A verdade histórica é como o mar: anda ao sabor das marés. Vejamos alguns exemplos.
Lyndon Baines Johnson foi o 36º Presidente dos Estados Unidos, de 1963 a 1969. Anteriormente, entre 1961 e 1963, fora o Vice-Presidente de John F. Kennedy. LBJ, como era geralmente chamado, teve a seu favor o grande impulso que deu à Grande Sociedade norte-americana através de legislação apropriada que conferia direitos cívicos a quem os não possuía ainda. Lutou também contra a pobreza. Contudo, foi com Kennedy primeiro e depois com ele que o envolvimento americano na Guerra do Vietname, que já vinha de trás, triplicou. O resultado foi o enorme e progressivo descontentamento que surgiu na juventude americana, e não só. Em Washington e noutros pontos dos EUA, gigantescas manifestações e cantores-activistas como Joan Baez e Bob Dylan conseguiram retirar de Lyndon Johnson as facetas que lhe davam crédito. Substituíram-nas por frases deste tipo, cantadas em coro pela multidão contra a guerra no Vietname: "Hey, hey, L.B.J., how many kids did you kill today?" e por slogans que ficaram célebres, como "Draft Beer not Boys".
A Tony Blair sucedeu algo idêntico. Da coluna do Haver do ex-primeiro-ministro, uma substancial maioria da população britânica rasurou os lados positivos da paz conseguida na Irlanda, da ajuda a África, do combate ao crime, do impulso à educação e ao Serviço Nacional de Saúde. Ignorou a chamada 3ª Via. Hoje, para muitos britânicos, Tony Blair é aquele que mentiu sobre a intervenção britânica na guerra do Iraque, o His master’s voice do americano George W. Bush. A falta de apoio da rectaguarda inglesa já lhe custou a possibilidade de ocupar o lugar de Presidente da Comissão Europeia, ao qual acabou por não concorrer. Em Inglaterra tornou-se popular o trocadilho Bliar com as letras do seu nome, sugerindo as gravosas mentiras que ele terá forjado. Eis uma faixa negativa que cobre todas as positivas. Este é um CD que a população britânica hoje se recusa a comprar.
Mas será sempre assim? Poderá Blair ser um dia reabilitado? Só o futuro o dirá, mas nem sempre é fácil. Olhemos para três casos portugueses.
Sebastião José de Carvalho e Mello, que sem ter sido o único Marquês de Pombal é aquele a quem nos referimos quando falamos do "Marquês", foi um homem de grande poder no nosso século XVIII. Braço direito do rei Dom José, tomou numerosas medidas para reformar a sociedade portuguesa, tanto em Portugal como no Brasil. Ganhou a admiração de muitos e, digamos, a aversão de outros tantos. Quando a estátua equestre de Dom José foi colocada no Terreiro do Paço em 1775, ela continha na parte central do seu pedestal virado ao Tejo um medalhão de homenagem ao Marquês. Alguns anos depois, com o cair em desgraça de Sebastião de Carvalho e Mello e o seu exílio para Pombal, a rainha D. Maria ordenou a retirada do medalhão e a sua destruição. O filho do artista que o tinha esculpido retirou-o, mas não o destruiu. Escondeu-o em sua casa. Quando décadas mais tarde, já com os liberais, o Marquês foi reabilitado, o medalhão reapareceu e foi recolocado no seu lugar primitivo. As graças e desgraças históricas vogam ao sabor das marés. E só em 1934 é que o Marquês teve a sua própria estátua na praça de Lisboa que tem o seu nome.
Um caso mais recente é o de Oliveira Salazar. O seu CD teve, como geralmente todos os discos têm, várias faixas. Governante austero, restaurou a princípio a lei e ordem no país após um período muito conturbado. Gradualmente, deu estabilidade à moeda nacional, o escudo. À sua maneira, com disciplina, autoridade e repressão de liberdades, criou aquilo a que chamou o Estado Novo. Foi um estratega durante a 2ª Guerra Mundial, tendo evitado a entrada de Portugal no conflito, embora à custa de notórios sacrifícios da população. Por outro lado, avançou para um conflito no Ultramar que duraria 13 longos anos e causaria um elevado número de mortos. Aderiu à EFTA. Manteve durante longos anos uma odiada polícia política, a PIDE. Ora bem, quando ocorreu a revolução de Abril de 1974, Salazar, que tinha já morrido 4 anos antes, foi considerado, juntamente com Marcelo Caetano e todo o regime, o grande ditador fascista. De toda a política da União Nacional se falava então como "a pesada herança" de 48 anos de fascismo. Todas as faixas do seu CD estavam reduzidas a uma. A estátua de Salazar em frente ao Domus Justitiae de Santa Comba Dão, sua terra natal, foi entaipada.
Hoje, mais de 35 anos após a revolução dos cravos de Abril, têm sido publicados numerosos livros sobre Salazar e ele próprio foi consideradoem 2007, num controverso programa da RTP intitulado "Os grandes portugueses", "o maior português de sempre". Dos 159 mil votos válidos recebidos, Salazar logrou obter uma generosa fatia de 41 por cento. O segundo classificado, Álvaro Cunhal, quedou-se pelos 19 por cento. Por seu lado, o Marquês de Pombal não chegou a recolher 2 por cento dos votos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Poder-se-á dizer que a vitória póstuma de Salazar foi mais uma reacção por contraste com a indisciplinada, conflituosa, livre mas corrupta sociedade pós-25 de Abril. É possível que tenha sido um cartão amarelo mostrado à sociedade actual. Note-se, entretanto, como a tendência é para o muito bom ou para o muito mau. Compra-se o CD ou destrói-se aquele que temos cá em casa?
O terceiro caso com que avanço é o do actual primeiro-ministro, José Sócrates. Começou por conquistar por larga margem a maioria absoluta após o desastre de Santana Lopes. Mostrou-se voluntarioso, optimista. O seu disco parecia um CD quase só com música agradável. Com as suas reformas, v.g. Segurança Social, Sócrates desagradou a muitos, mas mostrou-se um hábil comunicador. Sarkozy elogiou-o precisamente por ter conseguido reformar sem grandes problemas a Segurança Social (ainda hoje, a reforma de idêntico sistema no seu país está a causar ao Presidente francês grandes engulhos). Sócrates fez, como todo o político faz, numerosas promessas, a lembrar a cínica mas quase sempre correcta frase de Schlegel "As promessas de ontem dos políticos são os impostos de hoje". Marcou pontos na Europa e foi "Porreiro, pá!" na aprovação em Lisboa do tratado da União Europeia com o nome daquela cidade. Entretanto, os adversários que foi ganhando não lhe pouparam críticas quanto à forma pouco clara como terá obtido a licenciatura em engenharia; lançaram dúvidas sobre um eventual recebimento de luvas no caso do licenciamento do Freeport, em Alcochete, já há vários anos. Reformas na educação revoltaram os professores. As aplaudidas reformas iniciais já estão esquecidas, as faixas positivas do seu CD só lhe deram uma maioria não absoluta nas novas eleições. Hoje é acusado de tentar amordaçar os media que não lhe são favoráveis. Os números do desemprego são os mais altos de sempre em Portugal, parcialmente como resultado da crise mundial, mas quem está a governar é que paga. É a lei da vida.
Como irá a História vê-lo um dia? Como um Pinóquio mentiroso? Como um azarento no final do seu primeiro mandato? Como um poluítico? Como um mediático orador? Tudo depende de quem escrever essa História e do momento político que se viver. Para já, não existem presentemente muitas pessoas interessadas em ouvir todas as faixas do seu CD.

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