Fiquei recentemente a saber pela imprensa que foi um decreto-lei promulgado em 1989, durante a primeira maioria absoluta do então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, que estabeleceu que as escolhas para todos os cargos dirigentes da Função Pública, desde o de director-geral ao de chefe de divisão, seriam feitas com base na confiança política. Na época, o Ministério das Finanças explicou que uma “administração pública eficaz pressupõe a existência de dirigentes leais”.
Presentemente, o governo propõe-se mudar o sistema, instituindo concursos para os lugares de directores-gerais, secretários, subsecretários e inspectores-gerais da administração pública. Em princípio acho muito bem. Contudo, está também determinado o modus operandi: através desses concursos, chega-se a uma short list de três nomes, os quais são depois apresentados ao ministro responsável. Será este a escolher um deles.
É possível, pois, que a mudança seja apenas de fachada. A fazer-nos pressupor essa hipótese está o facto de que de fora deste sistema ficam os dirigentes de institutos públicos. Para esses, a metodologia será a antiga. É assim que continua a ser muito curiosa a forma como os governantes apresentam as suas medidas. Plus ça change, plus c’est la même chose.
A questão da fidelocracia versus meritocracia é velha de séculos. Portugal tem sofrido muito com ela, mas evita sempre debatê-la. Na generalidade, quem está na oposição verbera a forma como os governantes fazem as suas escolhas, mas se essa oposição adrega chegar a governar tende a fazer exactamente o mesmo. É, como tantas vezes sucede, um caso de movimento mais aparente do que real: tal como o mar enche e vaza mas acaba por voltar ao mesmo sítio, assim também os movimentos aparentes acabam por mudar apenas pormenores e deixar o cerne da questão igualzinho ao que sempre foi.
Porém, a lealdade é muitas vezes uma falsa questão. No fundo, o que os chefes pretendem é ter à sua volta um conjunto de yes-men e yes-women, que temam perder os seus invejados cargos se puserem o pé em ramo verde.
Para pôr os pontos nos ii, tenho que considerar perfeitamente admissível que quem, por exemplo, passa ao "inimigo” informações indesejadas, à revelia de um ministro, seja repreendido ou punido, podendo essa punição obviamente incluir a perda do cargo. É lógico que quem trabalha sob as ordens de um ministro deve ter a confiança deste, mas esta confiança, que é normal em toda e qualquer equipa, não deve ser o critério de primazia. Esse lugar deve ser reservado à competência e ao mérito. Ter directores-gerais que desrespeitam ordens vindas de cima é errado, mas já não é errado que um director-geral expresse, em reunião com o ministro, opiniões contrárias às do seu superior e fundamente essas opiniões. Cumprirá depois as ordens que lhe chegarem – e isso é lealdade – podendo mesmo demitir-se se achar que há razão para tal, mas isso são contingências da vida. Ninguém é detentor de toda a verdade. Errado será se o director-geral que se demitiu vier para a praça pública ventilar as razões que o levaram a sair, colocando lado a lado, sem a presença do ministro, os seus argumentos e os dele. É natural que um director-geral deste tipo fique queimado para sempre. Trata-se de um problema de relações humanas, que implica péssimas credenciais.
Entretanto, note-se que na legislação aprovada pelo actual governo um director-geral é nomeado por um período de cinco anos, com um limite máximo de dois mandatos. Ora, esse director-geral irá durante esse período provavelmente encontrar governantes de um partido diferente daquele que exercia o poder quando ele entrou em funções. Ao apresentar este decreto-lei, o governo actual mostra ser suficientemente astuto para, de forma mais ou menos habilidosa, colocar em lugares-chave pessoas da sua confiança, que se manterão depois – salvo casos de evidente quebra de compromissos – durante a vigência de um governo de outra cor política. Quem cria o decreto-lei ganha na publicidade e pode vir a colher outros proveitos.
Que juramentos se fazem na tomada de posse de um cargo desse tipo? O de respeitar o interesse público. Porquê? Porque a função é pública. O empossado faz o juramento perante a nação e não perante o partido. É a nação que lhe paga, é a nação que ele deve primacialmente servir. Seria bom que assim fosse.
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