8/19/2011

Os limites da ordem



Não é meu costume transcrever neste blog textos de outras pessoas. Abro aqui uma excepção para este notável artigo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, inserido no jornal Público do passado dia 14. É muito possível que, neste mês de férias, alguns dos leitores do azweblog não o tenham lido e ele vale muito a pena.

Os violentos distúrbios na Inglaterra não devem ser vistos como um fenómeno isolado. São um perturbador sinal dos tempos. Está a ser gerado nas sociedades contemporâneas um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida colectiva sem que se dê conta. Quando vem à superfície, pode provocar um incêndio social de proporções inimagináveis.
Este combustível é constituído pela mistura de quatro componentes:

1. A promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo;

2. A mercantilização da vida individual e colectiva;

3. A prática do racismo em nome da tolerância;

4. O sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo “legal” dos cidadãos e do mal-estar que ele provoca.

Cada um destes componentes tem uma contradição interna. Quando elas se sobrepõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão.

Desigualdade e individualismo. Com o neoliberalismo, o aumento brutal da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução. A ostentação dos ricos e dos super-ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a esmagadora maioria dos cidadãos supostamente porque estes não se esforçam o suficiente para terem êxito. Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários. Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa e quando isso sucede nunca é reconhecida como merecida.
Mercantilização da vida. A sociedade de consumo consiste na substituição das relações entre pessoas por relações entre pessoas e coisas. Os objectos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm, como quando não se têm. Os centros comerciais são a visão espectral de uma rede de relações sociais que começa e acaba nos objectos. O capital, com a sua sede infinita de rentabilidade, tem vindo a submeter à lógica do mercado bens que sempre pensámos serem demasiado comuns (a água e o ar) ou demasiado pessoais (a intimidade e as convicções políticas) para serem trocados no mercado. Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para o obter vai um passo muito menor do que se pensa. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam poder fazer o mesmo, acabam nas prisões.
Racismo da tolerância. Os distúrbios na Inglaterra começaram com uma dimensão racial. O mesmo sucedeu em 1981, e nos distúrbios que abalaram a França em 2005. Não é coincidência; são afloramentos da sociabilidade colonial que continua a dominar as nossas sociedades, décadas depois de terminar o colonialismo político. O racismo é apenas um componente, tanto mais que em todos os distúrbios mencionados se envolveram jovens de várias etnias. Mas é importante, porque junta à exclusão social um elemento de inabarcável corrosão da auto-estima: a inferioridade do ser, agravada pela inferioridade do ter. Um jovem negro das nossas cidades vive quotidianamente uma suspeição social que existe independentemente do que ele ou ela seja ou faça. E essa suspeição é tanto ou mais virulenta quando ocorre numa sociedade distraída pelas políticas oficiais da luta contra a discriminação e pela fachada do multiculturalismo e da benevolência da tolerância.
Sequestro da democracia. O que há de comum entre os distúrbios de Inglaterra e a destruição do bem-estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade comandadas pelas agências de notação e os mercados financeiros? São ambos sinais dos limites extremos da ordem democrática. Os jovens amotinados são criminosos, mas não estamos perante uma “criminalidade pura e simples”, como afirmou o primeiro-ministro inglês. Estamos perante uma denúncia política violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar bancos e não os tem para resgatar a juventude de uma vida de espera sem esperança, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e mais irrelevante, dado o aumento do desemprego, do completo abandono em comunidades que as políticas públicas anti-sociais transformaram em campos de treino da raiva, da anomia e da revolta.

Entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades. Os desordeiros estão no poder e poderão em breve ser imitados por aqueles que não têm poder para os pôr na ordem.

Boaventura de Sousa Santos, in Público de 14/08/2011

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