8/26/2011

Poesia de A a Z

Para a letra J, uma poesia de Nuno Júdice:

CREPUSCULAR

A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro:
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

8/24/2011

Tenho muitas vezes pensado em agradecer-lhe!

Ouvi uma vez uma velha amiga referir-se à situação de casada com o seu sentido de humor habitual: “Como dizem os franceses, un mari, c’est un mâle nécessaire”.
A frase dela ocorreu-me há dias, embora não por associação directa ou paralela. Estava eu na praia a chegar de uma longa e sempre agradável caminhada pelo areal imenso quando vi aproximar-se uma figura relativamente pequena mas esbelta que me chamou a atenção. Com a minha miopia – dou sempre descanso aos meus óculos quando estou na areia -, não conseguia distinguir-lhe bem o rosto, mas era uma pessoa com desenvoltura de jovem. Parecia-me a Ana, mas tinha ao mesmo tempo as minhas dúvidas. Quando chegou ao pé de mim, as minhas dúvidas dissiparam-se. Era de facto a Ana. A minha admiração aumentou. Conhecemo-nos de facto há largos anos, mas é geralmente apenas nos meses em que venho à praia que nos encontramos.
Sei pouco sobre a vida dela, embora conheça os seus pontos de vista sobre alguns assuntos que temos discutido. Conheço bem um dos seus filhos. O que eu não sabia era que a Ana era divorciada. Há muitos anos. Foi ao ouvir-me elogiar-lhe a sua leveza e aspecto gaiato que ela disparou: “Devo isto ao meu marido. Ou melhor, a ela!” “Vocês separaram-se por causa de uma terceira pessoa?” “Sim, mas ainda bem! Eu levava uma vida atribuladíssima, sempre com o meu trabalho na escola e depois, ao entrar em casa, surgiam as zangas e uma enorme carga de stress. Um dia, sabendo da situação toda do meu marido, ouvi-o dizer-me “Se queres que me vá embora, vou já!” “Então vai!”, respondi-lhe de pronto. A partir daí, já lá vão vinte e tal anos, tudo começou a correr melhor. O meu filho não ficou contra mim, nem contra o pai. Damo-nos bem. O meu ex-marido foi viver com a outra, o que para mim foi um descanso total. O stress passou-me completamente ao fim de pouco tempo e realizei-me no ensino. Hoje faço a minha ginástica e tenho cuidado com a alimentação. Como avó, ajudo o meu filho tomando-lhe conta dos meus netos. Muitas vezes penso para mim própria: devo isto tudo àquela mulher. Agora é ela quem o atura. Ela foi um anjo que me levou o diabo cá de casa. Já tenho pensado muitas vezes em um dia ir bater-lhe à porta e agradecer-lhe. Nunca o fiz até agora, mas bendigo o dia em que ele se foi. O meu ex-marido e eu damo-nos razoavelmente; até gosto de o ajudar quando ele precisa. Mas se recuperei o meu equilíbrio e nesta altura, aos 62 anos, me sinto muito bem fisica e mentalmente, a ela o devo. Foi ela o meu anjo da guarda.”
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8/19/2011

Confiança pública e confiança pol]itica

Fiquei recentemente a saber pela imprensa que foi um decreto-lei promulgado em 1989, durante a primeira maioria absoluta do então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, que estabeleceu que as escolhas para todos os cargos dirigentes da Função Pública, desde o de director-geral ao de chefe de divisão, seriam feitas com base na confiança política. Na época, o Ministério das Finanças explicou que uma “administração pública eficaz pressupõe a existência de dirigentes leais”.
Presentemente, o governo propõe-se mudar o sistema, instituindo concursos para os lugares de directores-gerais, secretários, subsecretários e inspectores-gerais da administração pública. Em princípio acho muito bem. Contudo, está também determinado o modus operandi: através desses concursos, chega-se a uma short list de três nomes, os quais são depois apresentados ao ministro responsável. Será este a escolher um deles.
É possível, pois, que a mudança seja apenas de fachada. A fazer-nos pressupor essa hipótese está o facto de que de fora deste sistema ficam os dirigentes de institutos públicos. Para esses, a metodologia será a antiga. É assim que continua a ser muito curiosa a forma como os governantes apresentam as suas medidas. Plus ça change, plus c’est la même chose.
A questão da fidelocracia versus meritocracia é velha de séculos. Portugal tem sofrido muito com ela, mas evita sempre debatê-la. Na generalidade, quem está na oposição verbera a forma como os governantes fazem as suas escolhas, mas se essa oposição adrega chegar a governar tende a fazer exactamente o mesmo. É, como tantas vezes sucede, um caso de movimento mais aparente do que real: tal como o mar enche e vaza mas acaba por voltar ao mesmo sítio, assim também os movimentos aparentes acabam por mudar apenas pormenores e deixar o cerne da questão igualzinho ao que sempre foi.
Porém, a lealdade é muitas vezes uma falsa questão. No fundo, o que os chefes pretendem é ter à sua volta um conjunto de yes-men e yes-women, que temam perder os seus invejados cargos se puserem o pé em ramo verde.
Para pôr os pontos nos ii, tenho que considerar perfeitamente admissível que quem, por exemplo, passa ao "inimigo” informações indesejadas, à revelia de um ministro, seja repreendido ou punido, podendo essa punição obviamente incluir a perda do cargo. É lógico que quem trabalha sob as ordens de um ministro deve ter a confiança deste, mas esta confiança, que é normal em toda e qualquer equipa, não deve ser o critério de primazia. Esse lugar deve ser reservado à competência e ao mérito. Ter directores-gerais que desrespeitam ordens vindas de cima é errado, mas já não é errado que um director-geral expresse, em reunião com o ministro, opiniões contrárias às do seu superior e fundamente essas opiniões. Cumprirá depois as ordens que lhe chegarem – e isso é lealdade – podendo mesmo demitir-se se achar que há razão para tal, mas isso são contingências da vida. Ninguém é detentor de toda a verdade. Errado será se o director-geral que se demitiu vier para a praça pública ventilar as razões que o levaram a sair, colocando lado a lado, sem a presença do ministro, os seus argumentos e os dele. É natural que um director-geral deste tipo fique queimado para sempre. Trata-se de um problema de relações humanas, que implica péssimas credenciais.
Entretanto, note-se que na legislação aprovada pelo actual governo um director-geral é nomeado por um período de cinco anos, com um limite máximo de dois mandatos. Ora, esse director-geral irá durante esse período provavelmente encontrar governantes de um partido diferente daquele que exercia o poder quando ele entrou em funções. Ao apresentar este decreto-lei, o governo actual mostra ser suficientemente astuto para, de forma mais ou menos habilidosa, colocar em lugares-chave pessoas da sua confiança, que se manterão depois – salvo casos de evidente quebra de compromissos – durante a vigência de um governo de outra cor política. Quem cria o decreto-lei ganha na publicidade e pode vir a colher outros proveitos.
Que juramentos se fazem na tomada de posse de um cargo desse tipo? O de respeitar o interesse público. Porquê? Porque a função é pública. O empossado faz o juramento perante a nação e não perante o partido. É a nação que lhe paga, é a nação que ele deve primacialmente servir. Seria bom que assim fosse.

Os limites da ordem



Não é meu costume transcrever neste blog textos de outras pessoas. Abro aqui uma excepção para este notável artigo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, inserido no jornal Público do passado dia 14. É muito possível que, neste mês de férias, alguns dos leitores do azweblog não o tenham lido e ele vale muito a pena.

Os violentos distúrbios na Inglaterra não devem ser vistos como um fenómeno isolado. São um perturbador sinal dos tempos. Está a ser gerado nas sociedades contemporâneas um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida colectiva sem que se dê conta. Quando vem à superfície, pode provocar um incêndio social de proporções inimagináveis.
Este combustível é constituído pela mistura de quatro componentes:

1. A promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo;

2. A mercantilização da vida individual e colectiva;

3. A prática do racismo em nome da tolerância;

4. O sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo “legal” dos cidadãos e do mal-estar que ele provoca.

Cada um destes componentes tem uma contradição interna. Quando elas se sobrepõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão.

Desigualdade e individualismo. Com o neoliberalismo, o aumento brutal da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução. A ostentação dos ricos e dos super-ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a esmagadora maioria dos cidadãos supostamente porque estes não se esforçam o suficiente para terem êxito. Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários. Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa e quando isso sucede nunca é reconhecida como merecida.
Mercantilização da vida. A sociedade de consumo consiste na substituição das relações entre pessoas por relações entre pessoas e coisas. Os objectos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm, como quando não se têm. Os centros comerciais são a visão espectral de uma rede de relações sociais que começa e acaba nos objectos. O capital, com a sua sede infinita de rentabilidade, tem vindo a submeter à lógica do mercado bens que sempre pensámos serem demasiado comuns (a água e o ar) ou demasiado pessoais (a intimidade e as convicções políticas) para serem trocados no mercado. Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para o obter vai um passo muito menor do que se pensa. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam poder fazer o mesmo, acabam nas prisões.
Racismo da tolerância. Os distúrbios na Inglaterra começaram com uma dimensão racial. O mesmo sucedeu em 1981, e nos distúrbios que abalaram a França em 2005. Não é coincidência; são afloramentos da sociabilidade colonial que continua a dominar as nossas sociedades, décadas depois de terminar o colonialismo político. O racismo é apenas um componente, tanto mais que em todos os distúrbios mencionados se envolveram jovens de várias etnias. Mas é importante, porque junta à exclusão social um elemento de inabarcável corrosão da auto-estima: a inferioridade do ser, agravada pela inferioridade do ter. Um jovem negro das nossas cidades vive quotidianamente uma suspeição social que existe independentemente do que ele ou ela seja ou faça. E essa suspeição é tanto ou mais virulenta quando ocorre numa sociedade distraída pelas políticas oficiais da luta contra a discriminação e pela fachada do multiculturalismo e da benevolência da tolerância.
Sequestro da democracia. O que há de comum entre os distúrbios de Inglaterra e a destruição do bem-estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade comandadas pelas agências de notação e os mercados financeiros? São ambos sinais dos limites extremos da ordem democrática. Os jovens amotinados são criminosos, mas não estamos perante uma “criminalidade pura e simples”, como afirmou o primeiro-ministro inglês. Estamos perante uma denúncia política violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar bancos e não os tem para resgatar a juventude de uma vida de espera sem esperança, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e mais irrelevante, dado o aumento do desemprego, do completo abandono em comunidades que as políticas públicas anti-sociais transformaram em campos de treino da raiva, da anomia e da revolta.

Entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades. Os desordeiros estão no poder e poderão em breve ser imitados por aqueles que não têm poder para os pôr na ordem.

Boaventura de Sousa Santos, in Público de 14/08/2011

8/11/2011

Poesia de A a Z

Para a letra I, uma poesia de Irene Lisboa:

Nova, nova, nova, nova

Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!


Se quiser ouvir esta mesma poesia dita por Carmen Dolores, siga a ligação:
http://www.youtube.com/watch?v=FShJQKlefiM

8/09/2011

Novos mundos

Depois de um longo silêncio neste blogue, basicamente motivado por problemas técnicos do computador e de muito menor acessibilidade à Internet devido às férias de Agosto, eis que uma familiar minha que me é muito querida me diz que tem vindo frequentemente aqui e ficado desiludida por não encontrar nenhum texto, por pequeno que seja. Em vez de me meter de novo em questões duras e angustiantes como as da situação nacional e internacional, pareceu-me mais interessante narrar aqui dois episódios ligeiros e muito recentes. Ambos passados com netos meus, mas que são cenas de uma qualquer criança.

Foram momentos breves mas curiosos. Num dos casos, ele, sete anos quase a chegar aos oito, tinha passado uma semana boa connosco na “casa da praia”. Tinha estado com conhecidos do ano passado, fizera novos amigos e amigas, jogara à bola, lera aventuras do Tintim – uma possibilidade recentemente adquirida –, jogara na PlayStation, dançara em frente ao televisor que reproduzia o seu DVD do Michael Jackson, enfim tinha vivido uma semana muito razoável. Entretanto, uma última amizade com uma mocinha da idade dele tocou-o. Só que ele tinha de se ir embora, o pai vinha buscá-lo. Quando desceu pela última vez à praia, levou consigo um pequeno frasco de vidro, com tampa, que encontrou lá em casa. Para quê? Não disse. Ao voltar da praia, trazia-o meio-cheio de areia. Instado, foi com algum custo que explicou: era uma lembrança que ficava daqueles dias, especialmente da saudade que já sentia pela recém-encontrada amiga, Leonor.

Lembrou-me a história real de muitos judeus cujos chefes de família, ao abandonarem por razões diversas a casa onde tinham vivido há várias gerações levavam consigo uma caixinha com um punhado da terra onde tinham nascido. A saudade. A noção de pertença.

O outro caso passou-se com a minha neta mais nova (pouco mais de um ano de idade). Com o dia bom, o pai tinha-a levado a dar um pequeno passeio pelo parque na sua cadeirinha. De olhos curiosos, ela ia naturalmente prescrutando tudo ao seu redor. Tinha várias coisas que possivelmente via pela primeira vez. A saltitar ali por perto andava um passarito. Muito pequeno ainda, não era impossível que tivesse caído do ninho. Mal sabia voar. Enquanto pulava de um lado para o outro, a certa altura ele, com um salto maior, pousou no braço do carrinho onde a menina estava. Ao vê-lo assim a seu lado, ela instintivamente apanhou-o. Ficou com ele dentro da sua pequena mão, a sentir umas asinhas a tentarem mexer-se sem poder. Atrapalhada, não percebia a cena. Era um mundo novo para ela, uma experiência pioneira. O pai abriu-lhe a mão e rapidamente o passarito se afastou para longe dali. Creio que também para ele a experiência tenha sido inovadora. Afinal, eram dois seres pequenos a entrarem no mundo.