11/08/2004

América II - O Outro

No seu último livro, Who Are We?, Samuel Huntington, o autor de Choque de Civilizações, defende que os Estados Unidos correm sérios riscos e alerta para esses perigos. O perigo número um, escreve, é o facto de presentemente os Estados Unidos não terem um outro país com o qual se vejam na necessidade de competir. De facto, desmembrada a União Soviética -- a grande rival e concorrente do período denominado de Guerra Fria --, os EUA vêem-se isolados na frente, muito na frente em matéria de poderio militar e hegemónicos em diversas outras áreas. A necessidade de "um outro", de um émulo verdadeiro, sempre foi o que encontrámos na grandeza do Superhomem, a ter de combater contra inúmeras e aparentemente imbatíveis forças do mal. O émulo possuidor de uma super-inteligência maligna foi também o que invariavelmente encontrámos nas aventuras de Batman. Superando-se sempre, fazendo uso de todas as suas energias visíveis e ocultas, tanto o Superhomem como o Batman acabavam naturalmente por vencer. Outros perigos estariam entretanto prontos para surgir no horizonte...
Ao identificarem-se com estes heróis e tantos outros, os americanos fortaleciam-se e auto-educavam-se: era preciso lutar continuamente, o mal espreita a cada esquina e baixar os braços é o maior de todos os pecados. A velha máxima latina "altius, fortius" -- mais alto, mais forte -- era posta em execução prática. A banda desenhada, os livros, os filmes tornaram-se livros de autêntica doutrinação, deixando porventura indelevelmente gravada no cérebro de muitos cidadãos americanos a necessidade de lutar e mostrar a sua excelência.
Tão importante como este aspecto era a necessidade de união. Dificilmente haverá países que careçam mais de espírito de união nacionalista do que a América, criada na base de emigrantes provindos de todas as partes do globo. Essa união cimentou-se na diversidade assumida e no objectivo comum de emulação contra os concorrentes, entre os quais estão os agentes do mal.
Presentemente, a própria hegemonia mundial dos Estados Unidos vira-se contra a nação. Erros de apreciação e decisões demasiado egoístas e materialistas tornaram o país na nação mais odiada do planeta. Marcas comerciais americanas, como a Nike, Reebok, McDonald's e outras têm-se ressentido nas suas vendas da má imagem do país. Internamente surgem dissenções. A recente vitória de Bush não esconde que opiniões encarniçadamente contrárias dentro do país são defendidas por cerca de 48 por cento do universo dos votantes. E falta algo crucial: um "inimigo" que estimule o desenvolvimento da nação, que a leve a lutar para se tornar sempre "mais alta e mais forte". O Iraque, ou mesmo numa visão mais lata, todo o "eixo do mal", não são competidores reais. São elementos desgastantes, dispendiosos, mas não concorrentes. Há um número demasiado grande de gente pobre a ser sacrificada. No caso do Iraque já cerca de cem milhares de pessoas morreram. Para que tenhamos uma ideia comparativa, tomemos dois dos nossos recentes estádios, o do Porto e o do Sporting, cheios a abarrotar de homens, mulheres e crianças iraquianas. Depois, fechemos os olhos e imaginemos todas essas pessoas mortas. É algo que incomoda o próprio vencedor. Mesmo para a conquista de petróleo é um preço demasiado alto.
É a rivalidade que produz a união de esforços na medida em que define objectivos que todos entendem. Qual será à la longue o rival de que os Estados Unidos precisam? A União Europeia? A China? Dos dois o mais provável é sem dúvida a União Europeia. A guerra entre o dólar e o euro já começou há muito. Sob o ponto de vista militar, as diferenças entre os dois blocos são abissais. Mas sob o ponto de vista económico e educacional, os desníveis tendem a esbater-se.
Esta é uma história que está a fazer-se. Somos espectadores e intervenientes. Foi por esta razão e por outras que as eleições da passada semana nos interessaram tanto.

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