Duas religiões, duas formas de olhar a vida. Meados dos anos 80, Boston, Massachusetts. Casa da Cláudia e do Bill. O Bill é um democrata americano, moderadamente de esquerda. A Cláudia é nicaraguense, de família enraizadamente católica. Quando estive em casa deles, encantou-me um pormenor no seu pequeno jardim: uma caixinha rectangular de madeira, posta num pequeno pedestal, com um vidro na parte da frente. A caixa tinha uma finalidade específica: era nela que punham alpista para os pássaros que voavam por aqueles lados. Pousando no pequeno rebordo junto ao vidro por debaixo do qual deslizavam grãos de alpista, os passaritos iam ali alimentar-se com gosto. Alegravam também o jardim com os seus chilreios. Achei uma delícia e fiquei encantado com a ideia que, mal ou bem, considerei típica da sociedade americana. Admito que nunca tinha visto aquele sistema.
Tão encantado fiquei com aquela novidade que, de volta a Portugal, decidi pedir ao meu sogro, habilidoso em todos os trabalhos em madeira, para me fazer uma caixinha mais ou menos igual. Pintei-a depois, pus-lhe alpista dentro e pendurei-a no exterior da minha casa de Lisboa. Foi um prazer ver os passarinhos virem lá debicar a alpista que lhes era oferecida.
Anos mais tarde, em conversa com a Cláudia mencionei-lhe a caixa e contei-lhe que fora um dos encantos da minha estada nos Estados Unidos, terra onde aliás aprendera variadíssimas coisas. "Ah, a caixa ..." fez ela. Não mostrava o mínimo entusiasmo. "Já não a tenho!" Perante o meu espanto, explicou-me cordatamente que havia uma corrente muito forte na sociedade americana que era contra esse género de facilitismos. Por outras palavras: ao usar a generosa caixa no seu jardim ela estaria a facilitar demasiado a vida aos pássaros. Se um dia ela faltasse, se um dia mudasse para outro local, era possível que os passarinhos não soubessem ir procurar comida e ficassem confundidos, acabando por morrer à fome! As caixas eram, afinal, absolutamente contraproducentes. A fim de não ferir susceptibilidades e ouvir remoques eventualmente pouco simpáticos de amigos que fossem lá a casa, a Cláudia desfez-se da caixa e passou assim a contribuir conscientemente para que os pássaros aprendessem a lutar pela vida e a ganhar o seu pão.
Esta foi, para mim, mais uma lição da América. Os WASP (White Anglo-Saxon Protestants) mostram constantemente quem manda no país, quem diz o que é correcto e o que não é. Os católicos e os outros devem obedecer. A versão dos pássaros é, como se torna evidente, apenas o outro lado da educação a dar aos filhos; o incutir neles a noção do dever, da responsabilidade, da necessidade de procurarem ser independentes; é algo muito mais imperioso do que a bem intencionada e amparante caridade católica. O Puritanismo e o Catolicismo encontram-se em terras americanas, como se têm encontrado nesta imensa globalização que nos atinge em muitos lugares do planeta. Encontram-se e entram em confronto. Se os confrontos fossem apenas a propósito de pardalitos ...
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