A propósito do tema ?feminismo linguístico? e dos comentários que se lhe seguiram, ocorreu-me abordar outras formas de desigualdade, que não linguísticas.
A mitologia grega descreve um temível malfeitor, Procrusto de seu nome, que interceptava as suas vítimas à entrada de Atenas, oferecendo-lhes cama para que, cansadas da jornada, pudessem passar a noite. Os incautos que aceitavam os seus préstimos pagavam caro o desejo de uma noite repousada, pois Procrusto matava-os a todos, de forma assaz curiosa: aos mais pequenos do que a cama estirava-lhes as pernas, aos maiores cortava-lhes os pés, até que todos ficassem rigorosamente do tamanho da cama. Assim Procrusto se foi apropriando dos haveres das suas vítimas, até que, finalmente, Teseu, o grande herói que já havia vencido o minotauro de Creta, o bandido Círon, o touro de Posídon e outros tantos malfeitores, acabou por lhe fazer o mesmo que ele fazia aos viandantes.
Esta história de Procrusto parece-me uma boa metáfora do que se passa com a inserção das mulheres no mundo laboral. As mulheres que têm profissões tradicionalmente masculinas e aspirações a uma carreira, quero dizer.
É consabido (e aceite como indiscutível) que os homens são racionais, as mulheres emocionais. Nada que possa ser mais falsamente generalizável! Obviamente, homens e mulheres têm as duas facetas, desigualmente ponderadas, mas essa diferença não se manifesta necessariamente e apenas em função do sexo: não é difícil pensarmos em homens incontestavelmente viris e mais sensíveis do que algumas mulheres, e não é difícil justamente porque é frequente.
Reservando, assim, a emotividade para as mulheres, o mundo empresarial ? mundo de homens, como se sabe - veda-lhes, profissionalmente, o uso das emoções.
Que se passa, então? Submetem-se as candidatas à cama de Procrusto: bane-se a emotividade porque excede a dimensão da cama, e puxa-se a frieza, a falta de compaixão, até que fiquem à medida pré-estabelecida. Qual das mulheres empenhadas numa carreira profissional (e também os homens mais emotivos, sejamos justos?) não ouviram já de algum colega ou superior hierárquico frases como estas?:
- seja dura!; não chore com as dores dos outros; a moral não é para aqui chamada; quero lá saber que isso não seja verdade: é preciso que seja!; páre de ser boazinha; as emoções ficam em casa; o problema não é nosso (quando, de facto, é!)
Pior do que isso, há muito bom gestor de recursos humanos e director de serviços que, ?na sua grande experiência de lidar com pessoas? vê mesmo indícios de sensibilidade como desequilíbrio emocional, fraqueza de espírito e incapacidade para tomar decisões.
É assim, com a balança a pender fortemente para os valores masculinos, que as mulheres são avaliadas e estão sujeitas à progressão nas carreiras: mesmo pondo de parte eventuais situações de injustiça, essa avaliação é necessariamente desfavorável, porque feita por quem à partida não entende (nem pratica) parte do seu mundo. Resulta daqui que muitas mulheres, por feitio, por ambição, por necessidade, seja pelo que for, acabam por se masculinizar. Essas são, em regra, as mulheres de sucesso do nosso mundo empresarial: o seu modelo de chefia é o masculino, os seus valores os dos homens. Repito: em regra, porque há verdadeiras líderes. E essas são as que renunciam à cama de Procrusto, as que são capazes de se afirmar sem amputar a sua feminilidade.
Há tempos foi publicado um inquérito realizado nos EUA sobre os estilos de liderança imprimidos por homens e mulheres. E o inquérito concluía, com espanto (oh, santa ingenuidade!) que o tipo de liderança que conduzia a melhores níveis de desempenho era o estilo feminino, por ser mais maleável, mais adaptável às diferenças existentes entre as pessoas. Segunda conclusão importante do mesmo inquérito: que as mulheres que tinham um tipo de liderança baseado nos valores masculinos, convencidas que num mundo de homens teriam que usar as armas dos homens, obtinham os piores resultados da avaliação (abaixo, portanto, da liderança feita por homens).
O que tento deixar como tema de dabate é que, entre a inqualificável prática da excisão feminina e a ingénua e politicamente incorrecta terminologia linguística que adopta o género masculino para referir as duas metades da humanidade, há todo um mundo de discriminações exercidas sobre as mulheres, e que, mesmo em países ocidentais e em classes sociais mais favorecidas, a tão propalada ?igualdade? está longe de ser um dado adquirido. Não é, pois, suficiente -embora seja forçoso admitir como benefício que não está ao alcance de todas- achar que não estamos mal pelo facto de não sermos obrigadas a usar burka.
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