11/25/2004

O artigo do Peter Pan fez-me lembrar um episódio passado há uns tempos, porque também mete santos. Só que neste caso, e ao contrário do que sucede no dito artigo, por pouco a hagiologia não ficava desfalcada de uns quantos membros, não fora o prestimoso empenho profissional de um desconhecido mestre de obras bracarense?
Há dois ou três anos, chegou à minha caixa de correio electrónico um estranho pedido de um colega de trabalho. O estranho não era o envio de uma factura para que sobre ela eu emitisse um parecer com vista ao seu pagamento, já que isso fazia parte das minhas atribuições profissionais. O estranho era a factura propriamente dita. Dizia respeito a trabalhos efectuados numa capela do Bom Jesus de Braga, e rezava assim, ipsis verbis:

FACTURA
1º. - Por corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas ... 170 rs.
2º. - Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista ... 80 rs.
3º. - Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda ...120rs.
4º. - Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ... 160 rs.
5º. - Tirar as nódoas ao filho do Tobias ... 95 rs.
6º. - Uns brincos novos para a filha de Abraão ... 245 rs.
7º. - Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho 370 rs.
8º. - Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora ... 210 rs.
9º.- Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a Lua ... 130 rs.
10º.- Retocar o purgatório e pôr-lhe almas novas ... 335 rs.
11º.- Compor o fato e a cabeleira de Herodes ... 30 rs.
12º.- Meter uma pedra na funda de David, engrossar a cabeleira de Tobias e alargar as pernas de Saúl ... 93 rs.
13º.- Adornar a Arca de Noé, compôr a burrica do Filho Pródigo e limpar a orelha esquerda de S. Tinoco ... 23 rs.
14º.- Pregar uma estrela que caiu aos pés do côro ... 23 rs.
15º.- Umas botas novas para S.Miguel e limpar-lhe a espada ... 255 rs.
Soma tudo ... 2.474 rs

Devo confessar que me vi em enormes dificuldades para satisfazer o pedido do meu colega, já que em quase trinta anos de carreira nunca se me tinham deparado problemas como alguns dos que aqui se levantavam! Não tive, no entanto, outro remédio senão analisar detalhadamente o conteúdo da factura, após o que enviei ao meu colega a seguinte resposta:

Caro Colega:
Acuso a recepção da factura que me enviou, a qual visarei com todo o gosto tão cedo obtenha dados relativos a naturezas de trabalho que, em vinte e muitos anos de profissão, confesso nunca ter posto em obra. Para que fique com a ideia de que não será um pagamento a preços correntes de mercado, mas sim por valores que, à partida, podem parecer elevados, gostaria de lhe referir desde já as inúmeras dificuldades que surgiram no decurso da obra, as quais terão forçosamente que ser tidas em conta aquando do pagamento. Assim:

1. Corrigir os dez mandamentos, embelezar o Sumo Sacerdote e mudar-lhe as fitas:
Terei que confirmar nas folhas diárias de registo dos trabalhos o tempo que levou corrigir os dez mandamentos. Lembro-me que deram um trabalho imenso, não só por serem dez, mas também porque, a julgar pelo conteúdo, o Criador devia estar distraído quando os ditou a Moisés... Então no que diz respeito ao tal da mulher do próximo, nem imagina como foi difícil arranjar mão-de-obra para o executar!

2. Um galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista:
O galo novo para o S. Pedro foi outro problema. Para azar, a Rosa Ramalho não constava do nosso Manual de Qualificação e Avaliação de Fornecedores. De outra forma ter-lhe-íamos adjudicado o seu galo de crista tão bem colorida, e com pintura de fábrica, sempre de melhor qualidade do que as pinturas feitas em obra. Sem falar na grande vantagem que teríamos no preço, dada a baixa incidência do custo de transporte ( Braga e Barcelos são relativamente próximos, como sabe).

3. Dourar e pôr penas novas na aza esquerda do Anjo da Guarda:
As penas novas para a asa esquerda do Anjo da Guarda foram muito fáceis de obter, mas iam originando um conflito laboral: aproveitei uma distracção do meu, e saquei-lhe algumas. Acontece que ele se sentiu tão lesado que ameaçou rescindir o contrato de vigilância que assinou comigo, e ainda por cima pedir-me indemnização por perdas e danos... Sabe como é, Colega, se ele tem mesmo ido para a rescisão do contrato, como convenceria eu a Administração a arranjar substituto? Enfim, consegui dar-lhe a volta lembrando-o de que ainda há relativamente pouco tempo pisei numa obra um prego enferrujado e ia apanhando um tétano por incúria dele, que está contratado para me guardar e andava desenfiado. Além de que nem tinha previsto essa situação de risco no Plano de Segurança e Saúde da obra!
Só por esta razão o empreiteiro apresenta apenas um custo de 120 reis: não fora eu a fornecer o material, e a conta ia por aí acima.

4. Lavar o creado do Sumo Sacerdote e pôr-lhe suíssas ...
Quanto a lavar o criado do Sumo Pontífice e tirar as nódoas ao filho de Tobias, no problem: qualquer franchizada «cinq -à- sec» resolve a questão com eficácia. Difícil mesmo foi embelezar o Sumo Sacerdote! Entre colegas, lhe direi que receio bem não haver solução técnica para o caso. Que o divino Dono de Obra me perdoe, mas com aquela idade, a rodagem a que tem estado sujeito, e ainda por cima uma Halzeimer, não há empreiteiro nem novas tecnologias que lhe valham! De resto, o seu custo está completamente amortizado.
160 reis e mais 93 reis para pôr suíças ao Sumo Sacerdote e dar um jeito à cabeleira de Herodes parece-me um pouco exagerado. Mesmo sabendo, como sei, que o trabalho esteve interrompido durante uns dias, com a equipa toda parada, à espera que o assessor de imagem do Sumo Pontífice desse parecer sobre as suíças especificadas no Caderno de Encargos e confirmasse estarem as mesmas em conformidade com a norma ISO 9001. Ainda que nestas verbas estejam também incluídas a funda nova para o David e, sobretudo, que se trate de suíças para o Sumo Pontífice, e não de umas quaisquer suíças não homologadas, acho o preço um pouco exagerado. Talvez seja de solicitar esclarecimentos, exigindo o envio da tabela horária da equipa do barbeiro, incluindo ajudas de custo e IVA. (Refiro as ajudas de custo, não vá tratar-se do de Sevilha, caso em que a deslocação e as diferenças cambiais podem ter significado).

5. Não referirei coisas como os brincos novos da filha do Abraão, avivar as chamas do inferno, adornar a arca de Noé, almas novas para o purgatório, etc, etc,. Executaram-se sem dificuldades de maior, se bem que teria sido muito mais fácil encontrar almas novas para o inferno do que para o purgatório, mas enfim...

6. Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora
Para fazer um menino ao colo de Nossa Senhora aconselhei o Empreiteiro ao recurso a outsourcing. Sabe, é que o Empreiteiro tem um bom quadro de pessoal, mas nem todos se adaptam a certos trabalhos... O meu conselho revelou-se oportuno, já que o objectivo não podia ter sido mais conseguido: o menino saiu com tão bons acabamentos que o Empreiteiro acabou por contratar para a empresa o mocetão espadaúdo responsável pelo trabalho, o qual tinha, até aí, um emprego sazonal lá para o Algarve.

7. A verba de 23 reis referente ao trabalho de pregar a estrela caída ao pé do coro diz respeito apenas à deslocação da equipa do montador de andaime. Pensou-se fazer este trabalho com andaime autoportante, mas o IDICT não autorizou. Mesmo sendo no coro, não foi em cantigas: achou preferível o dono de obra contentar-se em ficar com uma estrela cadente.

8. Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo novo a um diabo, fazer vários consertos, limpar as unhas e pôr uns córnos ao diabo mais velho:
Como se constata, esta é a verba mais significativa de toda a factura. E, efectivamente, há razões para tal. Para começar, foi um enorme problema arranjar um rabo em bom estado para o diabo. Todos os que se encontraram no mercado eram já chamuscados. Sabe como é, quem o tem novo, chama-lhe seu?
Pôr uns cornos ao diabo mais velho foi outro trabalho complicadíssimo, que requereu reforço da estrutura de suporte e equipamentos especiais de transporte e elevação, dado o peso dos mesmos. Mas também, houve aqui uma certa azelhice do empreiteiro, que preferiu, em nome da transparência e lisura do processo de selecção, não consultar para esta subempreitada a mais eficiente empresa da especialidade, atendendo a que a proprietária é mulher do dito diabo.

Após todas estas explicações estou certa, meu caro colega, compreenderá melhor as dificuldades surgidas na realização dos trabalhos, e verá por que razão darei o meu parecer favorável ao pagamento da factura, que lhe será devolvida tão depressa eu receba do Banco de Portugal a tabela de conversão de reis em euros.
Os meus cordiais cumprimentos.

11/23/2004

Dois Novos Santos

No seu normal aggiornamento, a hagiologia acaba de receber dois novos santos: S. Mercado e S. Precário. Respigo de uma publicação que me chegou às mãos as duas primeiras orações:

S. Mercado todo global
Governador do Céu e da Terra
Com a tua mão invisível
Abençoa as nossas vidas.
Por ti tudo fazemos
Os velhos princípios renegamos.
Confiamos na tua eterna sabedoria.
Ámen.


S. Precário, auxiliai-nos
No emprego
Na carteira
No empréstimo
Nesta vida de canseira.
Tende piedade de nós.
Ámen.

A ambas as orações foram atribuídos 10 anos de indulgências.

11/18/2004

O Tempo, esse terrível «escultor»

Fui há tempos confrontada (salvo erro, lendo uma entrevista feita a uma «ninfomaníaca» lúcida) com a tese singular de que a mulher ocidental sofre constrangimentos comparáveis, se bem que mais subtis, aos impostos às congéneres árabes. Estas estariam por assim dizer espacialmente confinadas (burka, shador e similares; excisão; exclusão da esfera pública, a menos que «protegidas» pelo macho), ao passo que, no Ocidente, a jaula seria o tempo.
Não posso deixar de concordar. O prazo de validade feminina, por natureza mais estreito que o da masculina, é actualmente susceptível de dilatação artificial, mas essa fáustica conquista encontra-se rigidamente «formatada» por esteriotipos claramente ditados pelo «olhar» masculino (beleza é fundamental... não é, meus senhores?), «olhar» esse que encerra violentamente a mulher ocidental numa beleza tipificada pelo tempo juvenil. Se ela tiver o azar ou a audácia de transgredir essa órbita do look apropriado, torna-se transparente, ou seja, incapaz de impressionar a retina do macho.
O que nos vale e compensa é que o «nariz», obedecendo claramente a outras regras (por sinal bem mais democráticas), fala por vezes mais alto...

Humilde adenda às sugestões do Ratão

Assinalando o lançamento do seu último romance, bem como 25 anos de suculenta vida literária, António Lobo Antunes vai estar presente no próximo Sábado, dia 20, pelas 17h 30m, na Livraria GALILEU (Cascais, Av. Valbom), para uma sessão de autógrafos.
Haverá espumante (branco e róseo) à discrição e, para fazer lastro, gulodices de boa qualidade.

11/17/2004

NEGÓCIOS

A imprensa publicou há alguns meses uma interessante entrevista com um empresário espanhol. De entre várias observações muito lúcidas, retive uma, certeira: "Portugal devia pensar menos em negócios e mais em fazer empresas." Isto significa, antes de mais, que a noção de continuidade não é a predominante, o que implica um espírito de estratégias de curta duração mais dirigidas para oportunidades do que para a criação de sólidas bases, prontas a resistir a crises quando estas eventualmente ocorram.
Para o espectador da cena portuguesa, a vida política surge virada para o negócio do momento: os períodos eleitorais. A política está transformada em negociatas periódicas, em vez de ter como linha directriz uma estratégia de longo prazo para o Estado.
Foi extremamente sintomático o facto de as nossas principais associações empresariais -- a Associação Empresarial de Portugal e a Associação Industrial Portuguesa -- , se terem manifestado contra as expectativas exageradas patentes no Orçamento de Estado. Segundo as referidas associações, a proposta de Orçamento de Estado para 2005 põe "em risco a credibilidade interna e externa da política orçamental". Quem pensa a longo prazo sabe que mudanças de agulha podem ser boas para o momento (das eleições autárquicas, por exemplo), mas acabam por comprometer o futuro do país.

11/16/2004

América III - A questão religiosa nas eleições

Sabemos que as primeiras vagas de famílias europeias que rumaram para o Novo Mundo se ficaram a dever em grande parte a motivos religiosos, aos quais um espírito indiscutivelmente empreendedor acrescentou aspirações de uma vida económica e socialmente melhor. Cedo, homens de cepa puritana falavam da sua nova terra como "cidade no alto de um monte", "farol que tudo ilumina". Ora, a visão mitificada deste conceito, despido de mácula e prenhe de missão a desempenhar -- a missão do homem no mundo, continuando a obra de Deus -- foi algo que o núcleo duro da sociedade americana enraizou. Consoante o tipo de governo ("Administração") e a envolvente mundial, aquela visão tem tido os seus pontos altos e baixos. Presentemente, está a atravessar um período de alta.
Ser católico nos Estados Unidos é muito diferente de ser católico em Portugal. Num país monobloco sob o ponto de vista religioso como o nosso, o catolicismo é relativamente pouco pensado e debatido. Há falta de adversários reais. Nos Estados Unidos, onde as diferentes religiões e os credos são numerosos, a diferença é vincada. Os católicos sabem porque o são; os metodistas conhecem as razões por que não são baptistas (por exemplo), os judeus mantêm os seus ritos distintos. Como oficialmente o Estado americano é laico, o dia mais significativamente comemorado pelas famílias não é o Natal, mas sim o Thanksgiving Day, celebrado no presente mês de Novembro. Neste Dia de Acção de Graças o povo agradece a um ente que é necessariamente diferente entre os membros da heterogénea população americana mas que, oficiosamente, é simbolizado pelo núcleo social dominante através da conhecida invocação "God bless America!".
Há muito que a condução dos negócios políticos americanos faz uso da religião. Quem não se lembra dos requisitos impostos por antigas Administrações dos Estados Unidos, que recusavam determinado tipo de auxílio a países que tivessem liberalizado o aborto? Em contrapartida, esses governantes americanos ignoravam verdadeiras ditaduras que cometiam crimes ignominiosos (desembaraçarmo-nos dos nossos inimigos pode ser justificado pela obtenção de um bem final, i.e. os fins justificam os meios).
Poderia pensar-se que os Dez Mandamentos da Lei de Deus fossem suficientes para o núcleo governante, que é cristão. Os mandamentos são importantes, sem dúvida, mas a grande clivagem entre protestantes e católicos reside no entendimento do mandamento número dois: "Amarás o próximo como a ti mesmo." O pensamento puritano tende, mentalmente, a acrescentar: "desde que esse próximo mereça a tua solidariedade." E quem decide desse merecimento?
É aqui que entra a luz do farol dos "missionários". Ser rico e virtuoso transformou-se no ideal americano. Numa visão calvinista que está na base do capitalismo, como Max Weber não se cansou de referir, é o próprio Deus que "aprova" a riqueza das pessoas e das nações. Deste princípio passa-se facilmente ao das pessoas e nações que mais se encontram nas boas graças de Deus. E entramos num ranking, se assim lhe quisermos chamar. É o darwinismo social. Num país como os Estados Unidos, onde a diferença entre ricos e pobres é gritante, a riqueza é venerada. E "os pobres não estão contra os ricos, querem apenas ser tão ricos como eles."
Tudo o que contribua para a riqueza da "grande nação eleita" é bem-vindo e "sancionado" por Deus. Ora, o mesmo Deus reprova tudo o que é contra natura: assim, o casamento entre homossexuais, o aborto, estudos sobre clonagem nos humanos, etc.
Enquanto que para uma parte significativa da sociedade americana, progressista, é mais importante a liberdade de as pessoas decidirem per se do que a imposição deste tipo de leis proibitivas, a parte conservadora, que se reclama de maior sentido missionário, mostrou nas últimas eleições ter algum peso mais.
"E a guerra?" "Guerra?", responderão os actuais governantes. "Estamos basicamente a erradicar as forças do mal. Protegemo-nos, preventivamente, de forças malignas que querem destruir a grande nação americana." Nas eleições, foi este o lado que venceu. É este o lado que lança causas e bandeiras como a luta anti-tabagista, mas que por outro lado se recusa a assinar o protocolo de Quioto. É este o lado darwínico que, ao desejo de maior solidariedade social dos democratas, responde concretamente com a ideia da des-solidariedade activa e consciente. Há quem lhe chame fundamentalismo. A luz do facho que é suposta iluminar o mundo cega frequentemente quem a empunha. Daqui resulta um clima de intolerância e de guerra latente contra todos aqueles que não comungam das mesmas ideias. Tanto a tentativa de imposição da democracia a outros países como a actual clivagem existente entre os americanos têm a sua raiz em aspectos como estes.

11/15/2004

POR FALAR EM FEMINISMO?

A propósito do tema ?feminismo linguístico? e dos comentários que se lhe seguiram, ocorreu-me abordar outras formas de desigualdade, que não linguísticas.

A mitologia grega descreve um temível malfeitor, Procrusto de seu nome, que interceptava as suas vítimas à entrada de Atenas, oferecendo-lhes cama para que, cansadas da jornada, pudessem passar a noite. Os incautos que aceitavam os seus préstimos pagavam caro o desejo de uma noite repousada, pois Procrusto matava-os a todos, de forma assaz curiosa: aos mais pequenos do que a cama estirava-lhes as pernas, aos maiores cortava-lhes os pés, até que todos ficassem rigorosamente do tamanho da cama. Assim Procrusto se foi apropriando dos haveres das suas vítimas, até que, finalmente, Teseu, o grande herói que já havia vencido o minotauro de Creta, o bandido Círon, o touro de Posídon e outros tantos malfeitores, acabou por lhe fazer o mesmo que ele fazia aos viandantes.

Esta história de Procrusto parece-me uma boa metáfora do que se passa com a inserção das mulheres no mundo laboral. As mulheres que têm profissões tradicionalmente masculinas e aspirações a uma carreira, quero dizer.

É consabido (e aceite como indiscutível) que os homens são racionais, as mulheres emocionais. Nada que possa ser mais falsamente generalizável! Obviamente, homens e mulheres têm as duas facetas, desigualmente ponderadas, mas essa diferença não se manifesta necessariamente e apenas em função do sexo: não é difícil pensarmos em homens incontestavelmente viris e mais sensíveis do que algumas mulheres, e não é difícil justamente porque é frequente.

Reservando, assim, a emotividade para as mulheres, o mundo empresarial ? mundo de homens, como se sabe - veda-lhes, profissionalmente, o uso das emoções.

Que se passa, então? Submetem-se as candidatas à cama de Procrusto: bane-se a emotividade porque excede a dimensão da cama, e puxa-se a frieza, a falta de compaixão, até que fiquem à medida pré-estabelecida. Qual das mulheres empenhadas numa carreira profissional (e também os homens mais emotivos, sejamos justos?) não ouviram já de algum colega ou superior hierárquico frases como estas?:
- seja dura!; não chore com as dores dos outros; a moral não é para aqui chamada; quero lá saber que isso não seja verdade: é preciso que seja!; páre de ser boazinha; as emoções ficam em casa; o problema não é nosso (quando, de facto, é!)

Pior do que isso, há muito bom gestor de recursos humanos e director de serviços que, ?na sua grande experiência de lidar com pessoas? vê mesmo indícios de sensibilidade como desequilíbrio emocional, fraqueza de espírito e incapacidade para tomar decisões.

É assim, com a balança a pender fortemente para os valores masculinos, que as mulheres são avaliadas e estão sujeitas à progressão nas carreiras: mesmo pondo de parte eventuais situações de injustiça, essa avaliação é necessariamente desfavorável, porque feita por quem à partida não entende (nem pratica) parte do seu mundo. Resulta daqui que muitas mulheres, por feitio, por ambição, por necessidade, seja pelo que for, acabam por se masculinizar. Essas são, em regra, as mulheres de sucesso do nosso mundo empresarial: o seu modelo de chefia é o masculino, os seus valores os dos homens. Repito: em regra, porque há verdadeiras líderes. E essas são as que renunciam à cama de Procrusto, as que são capazes de se afirmar sem amputar a sua feminilidade.

Há tempos foi publicado um inquérito realizado nos EUA sobre os estilos de liderança imprimidos por homens e mulheres. E o inquérito concluía, com espanto (oh, santa ingenuidade!) que o tipo de liderança que conduzia a melhores níveis de desempenho era o estilo feminino, por ser mais maleável, mais adaptável às diferenças existentes entre as pessoas. Segunda conclusão importante do mesmo inquérito: que as mulheres que tinham um tipo de liderança baseado nos valores masculinos, convencidas que num mundo de homens teriam que usar as armas dos homens, obtinham os piores resultados da avaliação (abaixo, portanto, da liderança feita por homens).

O que tento deixar como tema de dabate é que, entre a inqualificável prática da excisão feminina e a ingénua e politicamente incorrecta terminologia linguística que adopta o género masculino para referir as duas metades da humanidade, há todo um mundo de discriminações exercidas sobre as mulheres, e que, mesmo em países ocidentais e em classes sociais mais favorecidas, a tão propalada ?igualdade? está longe de ser um dado adquirido. Não é, pois, suficiente -embora seja forçoso admitir como benefício que não está ao alcance de todas- achar que não estamos mal pelo facto de não sermos obrigadas a usar burka.

11/12/2004

Feminismo linguístico precisa-se!

Ingleses e americanos concordam, dentro da era do politicamente correcto, que a sua língua possui alguma orientação excessiva para o masculino. Assim, palavras como "mankind" e "Mrs" têm vindo a ser substituídas respectivamente por "humanity" e "Ms". Humaniza-se "mankind", cujo elemento "man" não pode representar homem e mulher. Quanto a "Ms", substitui tanto "Mrs" como "Miss", pois se um homem não vê a sua condição de casado expressa por uma designação prévia -- "Mr" mantém-se para homem solteiro ou casado -- , por que razão não deverá o mesmo acontecer com uma mulher?
Dentro da mesma linha, também "chairman" tem vindo a perder popularidade, sendo frequentemente substituído por "chairperson", termo que acomoda com maior facilidade masculino e feminino.
Basta considerarmos alguns pares de palavras como master/mistress, bachelor/spinster, courtier/courtesan, para vermos que existe uma conotação depreciativa clara nos termos femininos. (Aliás, mesmo em português o último dos pares -- "cortesão/cortesã" -- introduz uma conotação negativa no feminino que o masculino não possui.) Expressões como "to each his own" ("a César o que é de César") ao incluírem "his" trazem toda a conotação para o masculino. E o que se poderá dizer de chamar aos antepassados "forefathers", relegando as "mothers" para um injusto oblívio? Uma expressão como "man-made changes" esquece igualmente o papel, quantas vezes decisivo, das mulheres.
Se os americanos e britânicos pensam isto da sua língua, o que diriam se estudassem o português? No nosso idioma, o elemento feminino é claramente ignorado num vastíssimo número de casos. Notem-se expressões que empregamos todos os dias, como "os meus pais", "os meus irmãos" ("my brothers and sisters", em inglês), "os meus tios" ("my uncle and aunt"), "os meus sobrinhos". Deixar as mães, as irmãs, as tias e as sobrinhas de fora parece ser uma questão de somenos para os portugueses. Na realidade, este facto mostra apenas que o homem, como elemento pretensamente dominante da sociedade, coloca a mulher num injusto segundo plano. Dizer "os reis de Portugal" inclui obviamente (?!) as rainhas, mas elas não se vêem na expressão, só eles. Frases em que o termo "homem" engloba conceptualmente as mulheres mas despreza-as nominalmente são inúmeras. Dois exemplos apenas: "O homem põe, Deus dispõe", "O Natal é sempre que um homem quiser".
Só para concluir: não é aviltante que a enunciação das pessoas verbais se faça sempre pela ordem "eu", "tu", "ele", "ela", "nós", ... colocando a mulher invariavelmente depois do homem? Talvez a língua portuguesa esteja a precisar de um abanão!

11/08/2004

América II - O Outro

No seu último livro, Who Are We?, Samuel Huntington, o autor de Choque de Civilizações, defende que os Estados Unidos correm sérios riscos e alerta para esses perigos. O perigo número um, escreve, é o facto de presentemente os Estados Unidos não terem um outro país com o qual se vejam na necessidade de competir. De facto, desmembrada a União Soviética -- a grande rival e concorrente do período denominado de Guerra Fria --, os EUA vêem-se isolados na frente, muito na frente em matéria de poderio militar e hegemónicos em diversas outras áreas. A necessidade de "um outro", de um émulo verdadeiro, sempre foi o que encontrámos na grandeza do Superhomem, a ter de combater contra inúmeras e aparentemente imbatíveis forças do mal. O émulo possuidor de uma super-inteligência maligna foi também o que invariavelmente encontrámos nas aventuras de Batman. Superando-se sempre, fazendo uso de todas as suas energias visíveis e ocultas, tanto o Superhomem como o Batman acabavam naturalmente por vencer. Outros perigos estariam entretanto prontos para surgir no horizonte...
Ao identificarem-se com estes heróis e tantos outros, os americanos fortaleciam-se e auto-educavam-se: era preciso lutar continuamente, o mal espreita a cada esquina e baixar os braços é o maior de todos os pecados. A velha máxima latina "altius, fortius" -- mais alto, mais forte -- era posta em execução prática. A banda desenhada, os livros, os filmes tornaram-se livros de autêntica doutrinação, deixando porventura indelevelmente gravada no cérebro de muitos cidadãos americanos a necessidade de lutar e mostrar a sua excelência.
Tão importante como este aspecto era a necessidade de união. Dificilmente haverá países que careçam mais de espírito de união nacionalista do que a América, criada na base de emigrantes provindos de todas as partes do globo. Essa união cimentou-se na diversidade assumida e no objectivo comum de emulação contra os concorrentes, entre os quais estão os agentes do mal.
Presentemente, a própria hegemonia mundial dos Estados Unidos vira-se contra a nação. Erros de apreciação e decisões demasiado egoístas e materialistas tornaram o país na nação mais odiada do planeta. Marcas comerciais americanas, como a Nike, Reebok, McDonald's e outras têm-se ressentido nas suas vendas da má imagem do país. Internamente surgem dissenções. A recente vitória de Bush não esconde que opiniões encarniçadamente contrárias dentro do país são defendidas por cerca de 48 por cento do universo dos votantes. E falta algo crucial: um "inimigo" que estimule o desenvolvimento da nação, que a leve a lutar para se tornar sempre "mais alta e mais forte". O Iraque, ou mesmo numa visão mais lata, todo o "eixo do mal", não são competidores reais. São elementos desgastantes, dispendiosos, mas não concorrentes. Há um número demasiado grande de gente pobre a ser sacrificada. No caso do Iraque já cerca de cem milhares de pessoas morreram. Para que tenhamos uma ideia comparativa, tomemos dois dos nossos recentes estádios, o do Porto e o do Sporting, cheios a abarrotar de homens, mulheres e crianças iraquianas. Depois, fechemos os olhos e imaginemos todas essas pessoas mortas. É algo que incomoda o próprio vencedor. Mesmo para a conquista de petróleo é um preço demasiado alto.
É a rivalidade que produz a união de esforços na medida em que define objectivos que todos entendem. Qual será à la longue o rival de que os Estados Unidos precisam? A União Europeia? A China? Dos dois o mais provável é sem dúvida a União Europeia. A guerra entre o dólar e o euro já começou há muito. Sob o ponto de vista militar, as diferenças entre os dois blocos são abissais. Mas sob o ponto de vista económico e educacional, os desníveis tendem a esbater-se.
Esta é uma história que está a fazer-se. Somos espectadores e intervenientes. Foi por esta razão e por outras que as eleições da passada semana nos interessaram tanto.

11/07/2004

América - Pontos de Vista

Duas religiões, duas formas de olhar a vida. Meados dos anos 80, Boston, Massachusetts. Casa da Cláudia e do Bill. O Bill é um democrata americano, moderadamente de esquerda. A Cláudia é nicaraguense, de família enraizadamente católica. Quando estive em casa deles, encantou-me um pormenor no seu pequeno jardim: uma caixinha rectangular de madeira, posta num pequeno pedestal, com um vidro na parte da frente. A caixa tinha uma finalidade específica: era nela que punham alpista para os pássaros que voavam por aqueles lados. Pousando no pequeno rebordo junto ao vidro por debaixo do qual deslizavam grãos de alpista, os passaritos iam ali alimentar-se com gosto. Alegravam também o jardim com os seus chilreios. Achei uma delícia e fiquei encantado com a ideia que, mal ou bem, considerei típica da sociedade americana. Admito que nunca tinha visto aquele sistema.
Tão encantado fiquei com aquela novidade que, de volta a Portugal, decidi pedir ao meu sogro, habilidoso em todos os trabalhos em madeira, para me fazer uma caixinha mais ou menos igual. Pintei-a depois, pus-lhe alpista dentro e pendurei-a no exterior da minha casa de Lisboa. Foi um prazer ver os passarinhos virem lá debicar a alpista que lhes era oferecida.
Anos mais tarde, em conversa com a Cláudia mencionei-lhe a caixa e contei-lhe que fora um dos encantos da minha estada nos Estados Unidos, terra onde aliás aprendera variadíssimas coisas. "Ah, a caixa ..." fez ela. Não mostrava o mínimo entusiasmo. "Já não a tenho!" Perante o meu espanto, explicou-me cordatamente que havia uma corrente muito forte na sociedade americana que era contra esse género de facilitismos. Por outras palavras: ao usar a generosa caixa no seu jardim ela estaria a facilitar demasiado a vida aos pássaros. Se um dia ela faltasse, se um dia mudasse para outro local, era possível que os passarinhos não soubessem ir procurar comida e ficassem confundidos, acabando por morrer à fome! As caixas eram, afinal, absolutamente contraproducentes. A fim de não ferir susceptibilidades e ouvir remoques eventualmente pouco simpáticos de amigos que fossem lá a casa, a Cláudia desfez-se da caixa e passou assim a contribuir conscientemente para que os pássaros aprendessem a lutar pela vida e a ganhar o seu pão.
Esta foi, para mim, mais uma lição da América. Os WASP (White Anglo-Saxon Protestants) mostram constantemente quem manda no país, quem diz o que é correcto e o que não é. Os católicos e os outros devem obedecer. A versão dos pássaros é, como se torna evidente, apenas o outro lado da educação a dar aos filhos; o incutir neles a noção do dever, da responsabilidade, da necessidade de procurarem ser independentes; é algo muito mais imperioso do que a bem intencionada e amparante caridade católica. O Puritanismo e o Catolicismo encontram-se em terras americanas, como se têm encontrado nesta imensa globalização que nos atinge em muitos lugares do planeta. Encontram-se e entram em confronto. Se os confrontos fossem apenas a propósito de pardalitos ...

11/03/2004

Jovens pacifistas

Apesar do conhecido slogan europeu "Bosch é bom, Bush é mau", os eleitores americanos votaram no "mau" com uma margem que lhe foi favorável por mais de 3,5 milhões.
Não consegui entender a posição dos analistas políticos que entreviram uma vantagem para Kerry no grande número de jovens que participaram nesta eleição. Ou eu estou enganado nas minhas premissas -- o que é possível, evidentemente --, ou os jovens adolescentes teriam toda a razão em votar Bush e não Kerry. É verdade que Bush defende a guerra, mas não é menos verdade que recusa o serviço militar obrigatório, contrariamente a Kerry. Consequentemente, com Bush só vai para o Iraque quem quer um emprego de risco mas relativamente bem pago. Com Kerry, nada garantiria aos jovens que não seriam eventualmente recrutados para servir a pátria num teatro de guerra estrangeiro. Entre as duas hipóteses, é fácil de imaginar que os jovens preferiram jogar pelo seguro. "A guerra do Bush pode ser má, mas desde que não seja para nós, tudo bem!"

11/01/2004

Conteúdos

Às feministas deste país -- que são, geralmente, mulheres inteligentes e batalhadoras -- gostaria de chamar a atenção para algo que possivelmente nunca notaram e que atesta, sem margem para dúvidas, a superioridade envolvente da mulher sobre o homem. Na língua mais falada do mundo, o inglês, o "he" está, de facto e naturalmente, dentro de "she". O mesmo "he" está, aliás, dentro de "her". E, como corolário, é indesmentível que "man" está dentro de "woman".

É aí que o homem se sente melhor: primeiro como bébé, mais tarde como adulto.