12/28/2010

Autoridade

Quando oiço pessoas dizer "Então, essa telenovela dos Wikileaks ainda não acabou?", já tenho pensado para mim próprio: se calhar nem imaginam o quanto de comum existe entre a divulgação destes segredos diplomáticos e as telenovelas. Para mim pelo menos, existem claros pontos de contacto entre as telenovelas e as fugas de informação de documentos secretos ou confidenciais de múltiplos países, com grande relevo para os Estados Unidos.
Recordo-me bem do que sucedeu quando as telenovelas brasileiras entraram em força no nosso país. Não estou a falar apenas daquele caso, poucos anos após o 25 de Abril, em que o Parlamento português interrompeu os seus trabalhos para que os deputados eleitos pela Nação pudessem acompanhar o desenlace de uma telenovela que estava realmente a entusiasmar os espectadores nacionais. Refiro-me a outros aspectos que me parecem, à la longue, bem mais importantes. Nomeadamente aquilo que me chamou a atenção e que várias vezes debati em inglês com alunas de um curso que eu então leccionava, todas elas com 18 anos ou mais, foi a duplicidade do discurso das pessoas.
Para entendermos melhor a questão, devemos recuar até 1974. Até então, e assim sucedia há várias décadas, a autoridade era um factor bem presente na sociedade portuguesa. Não se punha em questão, a não ser em casos excepcionais e nunca com a aprovação geral, a autoridade dos pais, a autoridade dos professores ou a autoridade do bispo. Quando Salazar se referiu ao Ultramar português nos anos 60, uma das suas frases mais marcantes foi "O Ultramar não se discute: cumpre-se." Era o dogma, tão frequente na prática da dominante Igreja Católica, a passar da religião para a política. As reguadas na escola primária eram aceites porque o professor lá sabia o que fazia. E se o pai dava umas boas palmadas no rapaz era porque ele as merecia. Não se admitia pôr em causa a autoridade do pai, a não ser que ele estivesse a agir sob a influência do vinho. Aí a questão mudava de figura e a vizinhança podia intervir, mas no restante a autoridade do pai era inquestionável. Também ela não se discutia. Dogmaticamente, cumpria-se.
A telenovela brasileira contribuiu, e de que maneira!, para mostrar que os ídolos têm pés de barro. O pai que parecia um poço de virtudes mas que, afinal, andava metido numas jogatanas que lhe rendiam bastante dinheiro por fora, o professor que mantinha um ar austero na sala de aula mas depois se juntava muitas vezes à noite com a amante, deixando a pobre da Dona Justina sozinha a fazer bordados para ajuda do orçamento familiar, o padre que se metia com mulheres casadas, tudo isso vinha ao de cima na telenovela "transmitida em horário nobre", isto é, a horas em que ainda podia ser vista por crianças e adolescentes. Via-se a conversa que os pais tinham com os filhos à mesa; posteriormente, no quarto, os pais voltavam a tocar no assunto, mas agora já sob uma perspectiva diferente, mostrando que afinal não tinham sido sinceros e verdadeiros para com os seus rebentos. Tudo isso e muito mais a câmara de filmar revelava. A porta do quarto que, na casa real, permanecia fechada era escancarada na telenovela. As expressões das "autoridades", as suas palavras, os seus gestos, tudo isso vinha com o cunho da genuína e vera verdade testemunhada que o espectador-voyeur bebia, extasiado. Deixava de acreditar naquela autoridade, como era evidente. Porém, era a autoridade no seu todo que ficava minada. Tudo era igualado na dúvida e, porque não dizê-lo, numa certa baixeza de dizer uma coisa em público e outra em privado. O mito quebrava-se. Agora cada um podia pensar pela sua cabeça. Qual respeito, qual carapuça!
As fugas de informação dos serviços secretos, das malas diplomáticas, dos intocáveis embaixadores, tal como reveladas pelos documentos divulgados pelo site Wikileaks, mostram-nos, afinal, algo muito idêntico, embora a uma outra escala. Não se pode acreditar na palavra dos políticos e dos homens de uma maneira geral – "só dantes é que a palavra de honra de uma pessoa tinha valor". Agora é tudo muito igual; talvez alguns se safem, mas são uma minoria. "O jornal disse isso ontem; não acredito que não seja verdade. Está escrito." "Talvez tenhas razão, mas o mais natural é que seja mais um caso de mentira mascarada de verdade. A informação agora não é interessante, mas sim interessada e interesseira. Acreditar neles para quê? Patranhas é o que eles inventam. Vais ver que daqui a uns meses vêm com outra verdade contrária à de hoje!"
E assim temos a dúvida instalada, a incerteza enraizada, a precariedade da verdade a entrar dentro de nós. "É o preço a pagar pela liberdade de pensamento e de expressão." Será?
Mas há uma pergunta que se impõe: aproveita a alguém este estado de coisas? A resposta parece-me óbvia. As situações, por muito estranhas que se mostrem, oferecem sempre a possibilidade de um lado negativo e outro positivo, o que não quer dizer que cada um dos lados tenha a mesma dimensão. No caso presente, este vazio de autoridade aproveita muito aos mais fortes. Quem é mais forte adora que não haja verdades categóricas. Se alguém disser, por exemplo, que a colocação de dinheiros privados em centros offshore representa uma falta de ética, qual é a autoridade – possivelmente ela também de certa forma comprometida com os ditos centros – que se atreve a ser peremptória na sua afirmação? Quem é o dono da verdade?, alguém perguntará.
Assim, os mais poderosos, impantes pela ausência de controle, continuarão a agir como até agora, isto é, a pagar os mínimos no seu país e a ficar isentos da sua contribuição para o bem-estar social: fazem tudo redundar em benefício do seu bem-estar pessoal. Este é um exemplo entre muitos. A liberalização ou, como os neoliberais preferem, a não-regulação, leva a extremos desta ordem. De facto, a alguém aproveita a situação. Daí que as diferenças entre ricos e pobres tendam cada vez mais a aumentar e não a diminuir. Daí as tensões sociais que se registam. Por outro lado, tornou-se penoso para a maioria das pessoas defender a necessidade de existência de autoridade. É que a conciliação entre liberdade e autoridade é tão difícil como a que existe entre liberdade e segurança. Onde é que se coloca a linha divisória que não se pode nem deve ultrapassar?

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