12/12/2010

De Jacob a Diogo


"As palavras são como cómodas. Têm imensas gavetas e gavetões para abrir". Alexandre O’Neill tinha toda a razão ao reflectir desta maneira. Todos nós sabemos que as palavras têm vida própria, mudam de significado - às vezes até para o seu oposto - e apresentam uma evolução onde cabem as tais gavetas e os tais gavetões. Com nomes próprios podem igualmente suceder coisas estranhas.
Ainda hoje me lembro do dia, já há muitos anos, em que fiquei intrigado ao ouvir falar de Jacobeu a propósito das peregrinações a Santiago de Compostela. Porquê Jacobeu? Logo me explicaram: "É declarado Ano Jacobeu todo aquele em que o dia 25 de Julho, dia da Festa do Santo, coincide com um domingo." Aquilo que eu pretendia, porém, era saber por que razão se dizia Jacobeu. "Diz-se Jacobeu por causa de Santiago". Repita lá isso!?! Onde é que está a ligação entre a palavra Santiago e o termo Jacobeu? Só um milagre é que poderia fazer com que, etimologicamente, Jacobeu tenha alguma coisa a ver com Santiago.
Todavia, talvez eu estivesse enganado. Milagres desta ordem se calhar existem mesmo. Os nomes Tiago e Jaime derivam indirectamente do latim Iacobus. Este é, por sua vez, a latinização do nome hebraico Jacob. Ora, como Jacob é um personagem bíblico (foi o terceiro e último patriarca do povo judeu), o seu nome foi adoptado em vários países do Ocidente. De maneira uniforme? Nem pensar! Se nos lembrarmos que o canto do galo é ouvido como cócorocó em Portugal, côcoricô em França e cock-a-doodle-do em Inglaterra, passaremos a admirar-nos menos da estranha evolução do nome Jacob.
Os alemães mantiveram-se fiéis e conservaram Jakob, mas os ingleses tranformaram Jacob em James, enquanto os franceses enveredaram por uma via diferente e lhe chamaram Jacques. Na Península Ibérica as divergências não foram menores. Na zona da Catalunha, portanto na parte leste da Península, Jacob evoluiu para Jácome, Jaume e Jaime; em Castela, na Galiza e em Portugal, o nome evoluiu para Iago.
A figura santificada que hoje é denominada Santiago, em Compostela, na Galiza, provém de Iago. Esta é, portanto, uma forma abreviada de Jacob. O problema para nós, portugueses, é que mantivemos a forma Jacob, a qual pronunciamos Jacó (pelo menos antigamente, chamava-se popularmente Jacó aos papagaios, pelo seu nariz adunco à maneira dos judeus).
Se disséssemos Jácobe, tal como dizemos Jácome, já compreenderíamos melhor o Iago. Aliás, para o leitor de Shakespeare, Iago é um nome saliente e altamente vilão na peça Otelo, logo torna-se de certa maneira familiar. Mas o que sucede quando um homem chega à Galiza como Iago e o intitulam de Santo? Passa a Santo Iago, primeiro, e depois a Santiago, mais ou menos do mesmo modo que São Pelayo passou a Sampaio.
Já santificado, o nome Santiago passou da santidade para nome comum e dele despegou o –t- de Santo. Ficámos com Tiago em vez de Iago. Além disso, ficámos também com o nome Santiago. Entretanto, o Iago desapareceu destas bandas.
Já como nome independente, Tiago cedo criou o derivativo Diego, que se entende perfeitamente à luz da linguística (o –t- passa a –d- muito frequentemente, como em matéria>madeira, e a passagem da pronúncia –á- a –é- constitui uma evolução natural - os ardinas que apregoavam o Diário Popular, por exemplo, costumavam dizer Diério no seu pregão. O Diego foi ouvido como Diogo em português e assim se manteve até aos dias de hoje. Ficámos assim com Tiago e Diogo. A cidade de San Diego, na antiga Alta Califórnia do México e hoje nos Estados Unidos, e a capital do Chile, Santiago, mostram a importância do santo.
Em França, já vimos que a evolução redundou em Jacques. Assim, por exemplo as nossas deliciosas "vieirinhas" (a vieira é um dos símbolos de São Tiago quando arribou à Galiza), são em francês coquilles de Saint Jacques e em inglês Saint Jacques’ shells (os ingleses copiaram muita coisa da comida francesa, que era bem melhor do que a sua). Contudo, mesmo os franceses mantiveram o original Jacob, a par do Jacques muitíssimo mais comum. Daqui resultou por exemplo o Club des Jacobins, donde vieram os famosos jacobinos no tempo da Revolução Francesa. Algo confuso, não é?
Entramos em Inglaterra e as dúvidas avolumam-se. Então não existe o nome Tiago? É verdade há o Iago, mas este de transformado em tão grande vilão pelo velho Bill Shakespeare, não alcançou grande popularidade, o que é compreensível. Como se traduzem então para inglês os nomes Tiago e Diogo? James. Como??! Eu já sabia que o actual Thames (Tamisa) de Londres tinha em tempos muito remotos tido o mesmo nome do nosso romano e transmontano rio Tâmega, mas ver-me forçado a comparar esta passagem de Tâmega a Thames para explicar, de forma imperfeita, o Jacob para James, parece-me uma tarefa difícil. Difícil, ou não, é oficial. E a verdade é que há o exemplo catalão.
Por aqui me fico. Só um santo autêntico pode fazer milagres linguísticos deste estilo.

P.S. Entretanto, para aumentar um pouco a confusão, acrescente-se que Jacob, último patriarca dos judeus, viu mais tarde o seu nome transformado em... Israel! Na realidade, não sei de outro nome que tenha conhecido tantas aventuras e alterações como este. Um case study típico.

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