12/29/2010

Zero por cento


Se eu tivesse que fazer um resumo do ano de 2010 que agora finda, diria que a grande questão foi a de nele se ter vivido antecipadamente 2011, que ainda não começou. Depois de alternadas ondas bipolares de euforia e depressão, entrou-se num negativismo de medo, de forças anónimas que nos querem destruir, de salários que vão baixar, de pensões de reforma que vão descer, de impostos que vão aumentar, de serviços sociais que vão desaparecer ou serão severamente limitados. Estamos a viver dois anos num e, como a tendência é negativa, isso é tudo menos bom. Se a tendência fosse para antegozar uma melhoria, viver dois anos num seria naturalmente bem diferente!
Neste domínio, não posso deixar de considerar como muito interessante e comercialmente um trunfo de mão-cheia aquilo que a cadeia Pingo Doce decidiu prometer: não fazer reflectir sobre os clientes a elevação dos preços que seria natural dada a passagem do IVA de 21 para 23 por cento. Grande marketing! (Quem agora prometer o mesmo que o Pingo Doce já é apenas macaquinho de imitação, não apresenta qualquer novidade.) Através da não-evolução do preço, esta cadeia de supermercados procura obviamente um aumento do volume de vendas que irá compensar, e possivelmente até ultrapassar, o sacrifício monetário que a si mesma impôs.
É gratificante ver como a cadeia Pingo Doce trabalha bem, com gente profissionalmente muito competente. A imagem de marca funciona de forma tão correcta que acabou por destronar uma outra marca da mesma firma que era usada para os estabelecimentos de maiores dimensões: os Feira Nova.
Há anos que o Pingo Doce realiza óptimas campanhas e, o que é mais, sempre positivas. As receitas culinárias na televisão, que anunciam apetitosos pratos confeccionados com produtos que podem ser adquiridos "no sítio do costume", foram um esplêndido começo. Depois, a entrada fortíssima nos bairros citadinos trouxe o supermercado para o pé do residente; o acento q.b. nos produtos nacionais levantou o moral nacionalista nas compras; a venda de uma já considerável gama de produtos brancos com a marca Pingo Doce, sempre mais económicos, pretendeu mostrar que a empresa estava claramente do lado do cliente, posicionamento que culmina na presente campanha. No seu todo, trata-se de uma estratégia concebida e implementada de forma inteligente e bem estruturada. Tem de longe batido a concorrência, nomeadamente a de bairro.
Para um público mais elitista, digamos assim, a empresa criou a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que não só fornece estatísticas o mais actualizadas possível sobre os dados do país (Pordata) nos campos da Saúde, Economia, Educação, etc., como também já conduziu à publicação de vários pequenos livros muito interessantes e instrutivos com estudos originais sobre a realidade portuguesa e não só. Estes livros, vendidos no espaço comercial a preços extremamente acessíveis, têm sido apresentados em espaço público pelos respectivos autores, acompanhados de debate moderado por pessoas de renome.
Por tudo isto e possivelmente muito mais que agora não me ocorre, torna-se sociologicamente muito curioso notar que a publicidade positiva confere bons dividendos e, em momentos de crise, é especialmente bem vinda. É certamente uma maneira de aliviar o stress com um pingo doce, numa altura em que o ano de 2011 que aí vem ameaça acarretar consigo pingos bem amargos.

12/28/2010

Autoridade

Quando oiço pessoas dizer "Então, essa telenovela dos Wikileaks ainda não acabou?", já tenho pensado para mim próprio: se calhar nem imaginam o quanto de comum existe entre a divulgação destes segredos diplomáticos e as telenovelas. Para mim pelo menos, existem claros pontos de contacto entre as telenovelas e as fugas de informação de documentos secretos ou confidenciais de múltiplos países, com grande relevo para os Estados Unidos.
Recordo-me bem do que sucedeu quando as telenovelas brasileiras entraram em força no nosso país. Não estou a falar apenas daquele caso, poucos anos após o 25 de Abril, em que o Parlamento português interrompeu os seus trabalhos para que os deputados eleitos pela Nação pudessem acompanhar o desenlace de uma telenovela que estava realmente a entusiasmar os espectadores nacionais. Refiro-me a outros aspectos que me parecem, à la longue, bem mais importantes. Nomeadamente aquilo que me chamou a atenção e que várias vezes debati em inglês com alunas de um curso que eu então leccionava, todas elas com 18 anos ou mais, foi a duplicidade do discurso das pessoas.
Para entendermos melhor a questão, devemos recuar até 1974. Até então, e assim sucedia há várias décadas, a autoridade era um factor bem presente na sociedade portuguesa. Não se punha em questão, a não ser em casos excepcionais e nunca com a aprovação geral, a autoridade dos pais, a autoridade dos professores ou a autoridade do bispo. Quando Salazar se referiu ao Ultramar português nos anos 60, uma das suas frases mais marcantes foi "O Ultramar não se discute: cumpre-se." Era o dogma, tão frequente na prática da dominante Igreja Católica, a passar da religião para a política. As reguadas na escola primária eram aceites porque o professor lá sabia o que fazia. E se o pai dava umas boas palmadas no rapaz era porque ele as merecia. Não se admitia pôr em causa a autoridade do pai, a não ser que ele estivesse a agir sob a influência do vinho. Aí a questão mudava de figura e a vizinhança podia intervir, mas no restante a autoridade do pai era inquestionável. Também ela não se discutia. Dogmaticamente, cumpria-se.
A telenovela brasileira contribuiu, e de que maneira!, para mostrar que os ídolos têm pés de barro. O pai que parecia um poço de virtudes mas que, afinal, andava metido numas jogatanas que lhe rendiam bastante dinheiro por fora, o professor que mantinha um ar austero na sala de aula mas depois se juntava muitas vezes à noite com a amante, deixando a pobre da Dona Justina sozinha a fazer bordados para ajuda do orçamento familiar, o padre que se metia com mulheres casadas, tudo isso vinha ao de cima na telenovela "transmitida em horário nobre", isto é, a horas em que ainda podia ser vista por crianças e adolescentes. Via-se a conversa que os pais tinham com os filhos à mesa; posteriormente, no quarto, os pais voltavam a tocar no assunto, mas agora já sob uma perspectiva diferente, mostrando que afinal não tinham sido sinceros e verdadeiros para com os seus rebentos. Tudo isso e muito mais a câmara de filmar revelava. A porta do quarto que, na casa real, permanecia fechada era escancarada na telenovela. As expressões das "autoridades", as suas palavras, os seus gestos, tudo isso vinha com o cunho da genuína e vera verdade testemunhada que o espectador-voyeur bebia, extasiado. Deixava de acreditar naquela autoridade, como era evidente. Porém, era a autoridade no seu todo que ficava minada. Tudo era igualado na dúvida e, porque não dizê-lo, numa certa baixeza de dizer uma coisa em público e outra em privado. O mito quebrava-se. Agora cada um podia pensar pela sua cabeça. Qual respeito, qual carapuça!
As fugas de informação dos serviços secretos, das malas diplomáticas, dos intocáveis embaixadores, tal como reveladas pelos documentos divulgados pelo site Wikileaks, mostram-nos, afinal, algo muito idêntico, embora a uma outra escala. Não se pode acreditar na palavra dos políticos e dos homens de uma maneira geral – "só dantes é que a palavra de honra de uma pessoa tinha valor". Agora é tudo muito igual; talvez alguns se safem, mas são uma minoria. "O jornal disse isso ontem; não acredito que não seja verdade. Está escrito." "Talvez tenhas razão, mas o mais natural é que seja mais um caso de mentira mascarada de verdade. A informação agora não é interessante, mas sim interessada e interesseira. Acreditar neles para quê? Patranhas é o que eles inventam. Vais ver que daqui a uns meses vêm com outra verdade contrária à de hoje!"
E assim temos a dúvida instalada, a incerteza enraizada, a precariedade da verdade a entrar dentro de nós. "É o preço a pagar pela liberdade de pensamento e de expressão." Será?
Mas há uma pergunta que se impõe: aproveita a alguém este estado de coisas? A resposta parece-me óbvia. As situações, por muito estranhas que se mostrem, oferecem sempre a possibilidade de um lado negativo e outro positivo, o que não quer dizer que cada um dos lados tenha a mesma dimensão. No caso presente, este vazio de autoridade aproveita muito aos mais fortes. Quem é mais forte adora que não haja verdades categóricas. Se alguém disser, por exemplo, que a colocação de dinheiros privados em centros offshore representa uma falta de ética, qual é a autoridade – possivelmente ela também de certa forma comprometida com os ditos centros – que se atreve a ser peremptória na sua afirmação? Quem é o dono da verdade?, alguém perguntará.
Assim, os mais poderosos, impantes pela ausência de controle, continuarão a agir como até agora, isto é, a pagar os mínimos no seu país e a ficar isentos da sua contribuição para o bem-estar social: fazem tudo redundar em benefício do seu bem-estar pessoal. Este é um exemplo entre muitos. A liberalização ou, como os neoliberais preferem, a não-regulação, leva a extremos desta ordem. De facto, a alguém aproveita a situação. Daí que as diferenças entre ricos e pobres tendam cada vez mais a aumentar e não a diminuir. Daí as tensões sociais que se registam. Por outro lado, tornou-se penoso para a maioria das pessoas defender a necessidade de existência de autoridade. É que a conciliação entre liberdade e autoridade é tão difícil como a que existe entre liberdade e segurança. Onde é que se coloca a linha divisória que não se pode nem deve ultrapassar?

12/26/2010

Mandamentos




Após uma quadra essencialmente religiosa como é a do Natal, a que se junta a humana comunidade das famílias, pareceu-me interessante esta brevíssima reflexão:

Os Mandamentos da Lei de Deus são essencialmente um código de regras destinado a servir de guião espiritual para a conduta do homem. No mundo católico ocidental onde eles vigoram, os mandamentos, produto de cabeças pensantes que mostraram conhecer razoavelmente bem a natureza humana, são tratados como referência para a perfeição - sendo esta de antemão considerada inatingível, a não ser por alguns seres humanos altamente privilegiados e excepcionais, a quem a Igreja posteriormente designará como "santos".
Este decálogo de referência é notável sob muitos aspectos. Platónico na sua essência - mostrando o ideal, de que apenas nos aproximaremos ou afastaremos consoante os nossos actos e pensamentos - ele pode tornar-se num livro de contabilidade terrestre, com o nosso activo e passivo, com todo o deve e o haver. A grandeza do saldo é a indicação final da nossa conduta. Desse balanço resultará a decisão do Grande Juiz, que considerará o homem dentro do campo da excelência (céu), dentro da órbita do défice (inferno) ou num meio-termo sem contornos nítidos (purgatório).
Os Mandamentos valem muito como tratado de psicologia humana. Embora nunca se refiram ao homem como ser isolado - pelo menos Deus estará sempre presente - debruçam-se tanto sobre o pensamento e o sentir, que são porventura mais individuais, como sobre os actos, que afectam mais a sociedade. Entre um "amarás a Deus acima de todas as coisas" e um "não matarás" ou "não cometerás adultério" vai uma distância considerável; os dois últimos incidem claramente sobre o comportamento eventualmente pecaminoso do homem na sociedade.
Sob este aspecto, os Mandamentos podem proporcionar um óptimo ponto de partida para reflexões sobre a natureza humana. Quiçá a determinação mais difícil de atingir é a do "amarás o próximo como a ti mesmo". De facto, o homem, como ser, precisa de uma identificação. Não é apenas um nome diferente que o torna mais diverso dos seus semelhantes, ou ainda um bilhete de identidade. O homem aprende a conhecer-se em confronto com os outros que o rodeiam.

12/18/2010

Cinco URLs

Agora que nos aproximamos rapidamente do Natal, venho aqui desejar a todos os amigos que iniciaram este http://azweblog.blogspot.com e aos seus leitores, igualmente amigos, Boas Festas e um óptimo Ano em 2011.
Possivelmente alguns dos temas abaixo, a clicar, são já conhecidos de alguns, mas isso é algo que quase sempre sucede, portanto...

UMA BOA QUADRA NATALÍCIA!


Baptista Bastos (artigo sobre o Estado da Nação e o capitalismo)

Marcelo (alta comédia!)

ópera (canto no shopping)

Catedral (Catedral de Estrasburgo em 3D)

Xangai (filme presentemente a ser exibido no Pavilhão Português, a ver até ao fim)

12/12/2010

De Jacob a Diogo


"As palavras são como cómodas. Têm imensas gavetas e gavetões para abrir". Alexandre O’Neill tinha toda a razão ao reflectir desta maneira. Todos nós sabemos que as palavras têm vida própria, mudam de significado - às vezes até para o seu oposto - e apresentam uma evolução onde cabem as tais gavetas e os tais gavetões. Com nomes próprios podem igualmente suceder coisas estranhas.
Ainda hoje me lembro do dia, já há muitos anos, em que fiquei intrigado ao ouvir falar de Jacobeu a propósito das peregrinações a Santiago de Compostela. Porquê Jacobeu? Logo me explicaram: "É declarado Ano Jacobeu todo aquele em que o dia 25 de Julho, dia da Festa do Santo, coincide com um domingo." Aquilo que eu pretendia, porém, era saber por que razão se dizia Jacobeu. "Diz-se Jacobeu por causa de Santiago". Repita lá isso!?! Onde é que está a ligação entre a palavra Santiago e o termo Jacobeu? Só um milagre é que poderia fazer com que, etimologicamente, Jacobeu tenha alguma coisa a ver com Santiago.
Todavia, talvez eu estivesse enganado. Milagres desta ordem se calhar existem mesmo. Os nomes Tiago e Jaime derivam indirectamente do latim Iacobus. Este é, por sua vez, a latinização do nome hebraico Jacob. Ora, como Jacob é um personagem bíblico (foi o terceiro e último patriarca do povo judeu), o seu nome foi adoptado em vários países do Ocidente. De maneira uniforme? Nem pensar! Se nos lembrarmos que o canto do galo é ouvido como cócorocó em Portugal, côcoricô em França e cock-a-doodle-do em Inglaterra, passaremos a admirar-nos menos da estranha evolução do nome Jacob.
Os alemães mantiveram-se fiéis e conservaram Jakob, mas os ingleses tranformaram Jacob em James, enquanto os franceses enveredaram por uma via diferente e lhe chamaram Jacques. Na Península Ibérica as divergências não foram menores. Na zona da Catalunha, portanto na parte leste da Península, Jacob evoluiu para Jácome, Jaume e Jaime; em Castela, na Galiza e em Portugal, o nome evoluiu para Iago.
A figura santificada que hoje é denominada Santiago, em Compostela, na Galiza, provém de Iago. Esta é, portanto, uma forma abreviada de Jacob. O problema para nós, portugueses, é que mantivemos a forma Jacob, a qual pronunciamos Jacó (pelo menos antigamente, chamava-se popularmente Jacó aos papagaios, pelo seu nariz adunco à maneira dos judeus).
Se disséssemos Jácobe, tal como dizemos Jácome, já compreenderíamos melhor o Iago. Aliás, para o leitor de Shakespeare, Iago é um nome saliente e altamente vilão na peça Otelo, logo torna-se de certa maneira familiar. Mas o que sucede quando um homem chega à Galiza como Iago e o intitulam de Santo? Passa a Santo Iago, primeiro, e depois a Santiago, mais ou menos do mesmo modo que São Pelayo passou a Sampaio.
Já santificado, o nome Santiago passou da santidade para nome comum e dele despegou o –t- de Santo. Ficámos com Tiago em vez de Iago. Além disso, ficámos também com o nome Santiago. Entretanto, o Iago desapareceu destas bandas.
Já como nome independente, Tiago cedo criou o derivativo Diego, que se entende perfeitamente à luz da linguística (o –t- passa a –d- muito frequentemente, como em matéria>madeira, e a passagem da pronúncia –á- a –é- constitui uma evolução natural - os ardinas que apregoavam o Diário Popular, por exemplo, costumavam dizer Diério no seu pregão. O Diego foi ouvido como Diogo em português e assim se manteve até aos dias de hoje. Ficámos assim com Tiago e Diogo. A cidade de San Diego, na antiga Alta Califórnia do México e hoje nos Estados Unidos, e a capital do Chile, Santiago, mostram a importância do santo.
Em França, já vimos que a evolução redundou em Jacques. Assim, por exemplo as nossas deliciosas "vieirinhas" (a vieira é um dos símbolos de São Tiago quando arribou à Galiza), são em francês coquilles de Saint Jacques e em inglês Saint Jacques’ shells (os ingleses copiaram muita coisa da comida francesa, que era bem melhor do que a sua). Contudo, mesmo os franceses mantiveram o original Jacob, a par do Jacques muitíssimo mais comum. Daqui resultou por exemplo o Club des Jacobins, donde vieram os famosos jacobinos no tempo da Revolução Francesa. Algo confuso, não é?
Entramos em Inglaterra e as dúvidas avolumam-se. Então não existe o nome Tiago? É verdade há o Iago, mas este de transformado em tão grande vilão pelo velho Bill Shakespeare, não alcançou grande popularidade, o que é compreensível. Como se traduzem então para inglês os nomes Tiago e Diogo? James. Como??! Eu já sabia que o actual Thames (Tamisa) de Londres tinha em tempos muito remotos tido o mesmo nome do nosso romano e transmontano rio Tâmega, mas ver-me forçado a comparar esta passagem de Tâmega a Thames para explicar, de forma imperfeita, o Jacob para James, parece-me uma tarefa difícil. Difícil, ou não, é oficial. E a verdade é que há o exemplo catalão.
Por aqui me fico. Só um santo autêntico pode fazer milagres linguísticos deste estilo.

P.S. Entretanto, para aumentar um pouco a confusão, acrescente-se que Jacob, último patriarca dos judeus, viu mais tarde o seu nome transformado em... Israel! Na realidade, não sei de outro nome que tenha conhecido tantas aventuras e alterações como este. Um case study típico.

12/08/2010

Post número 1000

Dizem-nos que os números mágicos são o 3 (a conta que Deus fez), o 7 (das sete quintas e do diabo-a-sete). Dizem-nos também que o número mais perfeito é o 14, múltiplo de 7, e que o mais imperfeito é o 14 menos 1, i.e. o treze. Três vezes 7, i.e. 21, é ainda muito usado em cerimónias como número ideal para salvas de tiros. O 28, quatro vezes 7, está todo ligado à lua e ao renovar das suas quatro fases.
Depois desta magia toda, como que a ignoramos quando nos pomos a fazer contas pelos dedos das mãos, como fizemos quando éramos miúdos e como os miúdos de hoje ainda fazem. E é aí que, esvanecendo-se embora alguma magia, surge o sistema decimal, baseado na soma dos dedos das mãos. É prático. A brincar, a brincar, é um sistema que condiciona bastante o nosso conceito de numerologia. No casamento, comemoramos os 25 anos e, se lá chegarmos, os 50 ou mesmo os 75, celebramos os 100 anos da República, os 800 anos da Pátria.
Ia eu hoje a colocar um novo post neste blogue quando notei que a contagem feita automaticamente pelo computador me anunciava que o próximo seria o meu texto número mil. Não é nada de especial, como é óbvio; significa em primeiro lugar que já chateei um número considerável de pessoas com muita parra e pouca uva, embora eu tentasse o contrário. Como sucederá a toda a gente, os textos são-me ditados pela necessidade de desembaraço de uma ideia que me está a atafulhar o cérebro e a acastelar-se como nuvem cinzenta que precisa urgentemente de deitar chuva cá para baixo. Uma vez desembaraçada a cabeça, sinto-me mais liberto. Aos poucos, porém, lá se vai formando uma outra enxurrada de ideias desencontradas que precisam de alguma concatenação e, nomeadamente, ordem. Nesse aspecto, o blogue tem sido para mim uma óptima ferramenta.
Quando começou, este blogue era bem mais concorrido. As letras de A a Z não diziam apenas respeito à variedade de temas, mas também às diferentes mentalidades das pessoas que aqui colocavam as suas ideias. Circunstâncias várias, diferentes para cada um dos amigos que iniciaram este blogue, fizeram com que o seu número efectivo se reduzisse muito. O João Miguel (o João Ratão) mantém as suas brilhantes Sugestões, a Isabel (Ariadne) colabora com alguma assiduidade tanto nos posts como nos comentários, mas creio que os restantes, que continuam amigos, se transformaram em meros leitores. Quero aproveitar este meu post número 1000 para os incitar a regressar à situação de colaboradores efectivos. O AZ ganharia imenso com o seu regresso.

12/06/2010

Quem adivinha?

Li há dias dois breves apontamentos que achei curiosos. Eis o primeiro:

O nosso passado está cheio de beleza, de rasgos, mas tem-nos faltado, sobretudo no último século, um esforço menos brilhante mas mais tenaz, menos espectaculoso e com maior perspectiva (...). É essa a razão por que nós somos um povo eternamente saudoso, longe das realidades por termos, em certos momentos, vivido demasiado uma realidade heróica mas falsa.

Eis o segundo passo, em que o mesmo autor tira mais umas tantas ilacções sobre o povo português:

Excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção. A própria facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e brilho da sua inteligência.

Já agora, um pequeno teste e uma opinião: de quem são estes dois parágrafos? Embora escritos no passado, serão ainda relativamente válidos no presente?

12/02/2010

SAIAS


Devido a uma conversa muito recente, quando hoje de manhã tive que ir à Baixa aqui em Lisboa procurei descobrir qual seria aproximadamente a percentagem das mulheres que usavam saias. Viajei de metro, como habitualmente. Conforme seria previsível, cruzei-me com centenas de pessoas, tanto homens como mulheres. Os adolescentes que encontrei é que foram relativamente poucos, porque estariam nas suas escolas em aulas. Posso dizer que olhei com atenção. Querem crer que não encontrei uma única mulher de saias?! Entretanto, não me admirarei de todo se daqui a pouco voltar à rua e encontrar cinco ou seis – como frequentemente sucede quando procuramos impacientemente um lugar nas ruas para estacionar o carro e, depois de finalmente encontrarmos um, bem longe de casa, perto da nossa porta deparamos com um lugar vazio. Mas não misturemos os assuntos. As saias estarão mesmo fora de moda?
Admito que é perfeitamente racional que as mulheres usem calças nesta altura. Dado que a temperatura está baixa, as saias são com certeza menos quentes. Mas, caramba, costumávamos ver collants e coisas do género. Agora, não. Mesmo sexagenárias e heptagenárias não hesitam em usar calças de fazenda, sobre as quais cai um casaco comprido que poderá dar a ideia de roda de saia. Seja como for, é uma revolução silenciosa. E assim, com uma percentagem elevadíssima – como digo, o que eu vi foi cem por cento! – é de ficar estupefacto.
Não me esqueço da vez em que, pelos meados dos anos sessenta, entrei com uma amiga num café em Castelo de Vide. Hoje parecerá quase impossível de acreditar, mas os homens que eram os únicos ocupantes do café puseram-se a olhar: ela ia de calças. Aliás, nas ruas da vila as mulheres olhavam para ela da mesma forma. Não há dúvida de que a sociedade mudou mesmo muito! Então, e agora que fazer ao "lagarto pintado da saia da Carolina"? E aos rabos de saia? E, mais prosaicamente, aos cabides para saias?
Isto é conversa mole. Mulheres de saias voltarão a aparecer logo que regressem os raios de um sol mais quentinho. E reaparecerão igualmente os calções. Mas, seja como for, ir para a rua e não deparar nem com uma saia foi para mim algo verdadeiramente inédito.