11/07/2005

Histórias à volta de um teimoso défice

Imagine-se pai ou mãe de uns três viçosos filhos, todos a estudar. O ano correu-lhe economicamente bem, foi aquilo a que se chama um ano de vacas gordas. Já o ano anterior tinha sido muito razoável. Você decidiu colocar os seus três filhos numa das melhores escolas de Lisboa. Aumentou-lhes também a mesada dos 100 euros habituais para 300 euros. Nivelou por cima, porque admite que o mais novo não precisa desse montante, mas não quis fazer descriminações. Viajou, ainda, pela Europa com toda a família no novo carro, o qual vai pagar a prestações. Uma entrada para uma casa nova, que ainda não está pronta, foi o seu acto de maior relevo. Tudo foi feito com a intenção de dar satisfação à família e a si próprio.
A crise económica que agora aí está não era exactamente esperada. Mas está aí. Você entrou em dificuldades. Tem um fundo de reserva mas, se as coisas continuarem assim, ele esgotar-se-á num ápice. Você tem os seus compromissos fixos: a casa, o carro, a escola dos garotos. Até a mesada! "Quem é que me mandou aumentá-la? Devia estar a dormir quando fiz isso!"
São assim as coisas nas famílias. Podem ser assim, também, no governo de uma nação. Quando não se aproveita os anos das vacas gordas para juntar umas reservas que dêem para os anos maus e, pelo contrário, se assinam compromissos que há que cumprir, a coisa pode tornar-se preta. É verdade que os governos têm que apresentar todos os anos um orçamento aos deputados e que estes o devem aprovar. Mas, com votos contra e abstenções, ele passa na mesma. Por outro lado, um orçamento nunca diz tudo. Tem muita coisa encapotada, coisas que só anos depois, quando já são outros os governantes, se vêm a descobrir.
A pergunta mais importante a colocar é: pode gastar-se mais do que aquilo que se arrecada? Pode, claro que sim, mas não se deve. A excepção será quando aquilo que se gasta a mais irá ter um valor reprodutivo certo num futuro próximo. É o chamado défice virtuoso. Outra pergunta que deve ser colocada: por que razão se irá gastar de mais? No seu caso, acima, era para dar satisfação à família. E no caso do Estado? Bem, será muitas vezes para parecer mais um Midas do que um verdadeiro gestor, que quer agradar a um maior número possível de pessoas para que essas mesmas pessoas, como votantes, possam garantir a sua reeleição. O poder é algo que um governo detesta perder.
Publicou há dias o jornal Público uma interessante análise dos défices registados entre 1980 e 2004. Não houve ano que não apresentasse défice. Para começar, deverá estranhar-se a existência invariável desse défice. Então não é verdade que, para mais, fomos o país mais ajudado pela União Europeia através de diversos fundos? É. Mas quando se trata de dinheiro fácil, também fácil se torna gastá-lo. Além daquela história das reeleições. História que é decisiva.
Nestes últimos 24 anos, os défices mais baixos ocorreram em 1999 e 2000. Foi aquando da nossa candidatura ao euro. O governo declarou défices de 2,9 por cento, resvés com o máximo permitido: 3 por cento. E os mais elevados? Bem, esses chegaram aos 9 por cento (!) e ocorreram em 1981 e 1985. Em 1981, na sequência da morte de Sá Carneiro houve várias eleições. Em 1985 foram concedidas múltiplas benesses. Dois anos depois, com importantes eleições legislativas a realizarem-se, o défice atingiu outro número elevado: 7,2 por cento. Em 1991, quatro anos depois, com novas eleições para o parlamento, o défice pulou para 7,6 por cento. Este pai a gastar o que não podia nem devia! E ele que, como primeiro-ministro, até devia saber, porque a sua formação era em Finanças e gabava-se disso. Dir-se-á: não se seja injusto! Então, e as crises económicas? Qual crise económica! As condições de escudo baixo e petróleo barato até davam para produzir e vender mais! E, na realidade, verifiquemos que houve sempre um saldo positivo do lado económico, o famoso PIB: em 1981 foi de 1,6 por cento, número que em 1985 cresceu para 2,8 por cento, em 1987 cresceu ainda mais para 6,4 e em 1991 desceu, mas para uns ainda confortáveis 4,4 por cento. Pois mesmo assim o Estado gastou mais do que arrecadou!
Quando chegar a factura para pagar, o que virá a suceder a partir do ano que vem, ela será pesada. E longa na sua duração.
Esta é uma breve história que ilustra como o amor é cego. Tanto o amor aos filhos como ao poder. Um tem laços sanguíneos e desculpa-se mais. O outro não tem perdão. É também um dos pontos fracos do regime democrático.

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