Começarei por dizer que o texto seguinte é apenas um relembrar do facto por vezes esquecido de que nada no mundo é imutável, incluindo a nossa língua. E não são apenas os vocábulos importados que contam para as mudanças linguísticas. É perfeitamente legítimo que tentemos enriquecer o nosso idioma com léxicos alternativos. Hoje, com a necessária brevidade que um blogue exige, gostaria de abordar a capacidade que o português tem de sintetizar, normalmente em verbos, algumas acções que são habitualmente expressas de forma mais alongada.
Sabia que um livro de 500 páginas em inglês poderá dar, na sua tradução para português, qualquer coisa como 650 páginas? Porquê? Porque inglês e português são duas línguas estruturalmente diferentes em vários aspectos. Na vertente germânica das suas origens, o inglês é mais sintético, o português mais verboso. Nada disso representa superioridade de uma língua sobre a outra, nem é isso que está em questão. Contudo, pode considerar-se existir, à partida, uma produtividade maior no inglês. Ora, o português consegue também facilmente melhorar a sua produtividade. Permito-me dar uma dezena dos milhares de exemplos possíveis.
O título desde texto - "sucintando o assunto" - é um primeiro exemplo. Por que motivo dizemos normalmente "Escreva sucintamente a sua opinião" e não apenas "Sucinte a sua opinião"? (o computador não me aceita o verbo "sucintar", sublinhando a palavra a vermelho, mas permite-me democraticamente a adição do termo ao seu dicionário incorporado, o que faço). Dir-se-á: podemos dizer "resumindo o assunto". É um facto. Mas, se a "resumir" acrescentarmos "sucintar", não estaremos a empobrecer a língua. Estaremos, de facto, a fornecer-lhe mais uma alternativa.
Na mesma linha, porque não dizer, alternativamente a "os campos começam a ganhar erva" que "os campos começam a ervar"? Ganha-se alguma coisa.
Se há praias com uma passarela feita de uma sucessão de tábuas para que a areia quente não queime a planta dos pés dos banhistas, porque não dizer que "uma parte da praia está tabuada?"
Noutro aspecto, porque não alternar "fronteira terrestre" e "fronteira marítima" (substantivo + adjectivo) com fronteira-terra e fronteira-mar?
Se alguém repete uma frase pausadamente ou apenas mais devagar do que anteriormente, porque não criar a possibilidade de dizer "ele vagarou a frase"? Esquisito? Como a Coca-Cola na versão pessoana: primeiro estranha, depois entranha.
Porque não dizer, em aditamento a falar na colocação de postes de iluminação com candeeiros para iluminar um caminho, "candeeirar uma rua"? Lembremo-nos que dizemos "asfaltar" e "alcatroar" uma estrada.
E palmeirar uma avenida, como o Isaltino gosta de fazer no seu concelho de Oeiras?
Podemos pensar em "pontar um rio" - construir uma ponte que lhe ligue as duas margens?
E em dizer "paular um indivíduo", se ele for agredido à paulada?
E em "farolar a costa", se foram colocados faróis ao longo da costa?
E em "biclar no parque", quando lá andamos de bicicleta?
Ou em "melar o leite", se lhe adicionamos mel?
A não-sintetização da língua talvez comece desde a infância mais tenra. Talvez se procedêssemos de outra forma as crianças fossem mais inventivas e inovadoras perante o seu idioma. Sendo a maioria das palavras para os infantes com sílabas repetidas, como chichi, cocó, tautau, porque meter o verbo "fazer" em tudo obrigatoriamente? Fazer chichi, fazer cocó? Porque não chichiar, cocoar e permitir que a mãe diga à pobre criança "Se não comes a sopa, eu tautauo-te"?
Chegado aqui, acho que o melhor é mesmo eu pisgar-me, para que ninguém pense em facar-me ou pistolar-me.
1/28/2007
1/23/2007
Os dois lados da barricada
Durante a minha longa actividade no sector da educação, desfrutei de um considerável privilégio: pude trabalhar, no âmbito do ensino superior, tanto no sector privado como na função pública. Isso deu-me a possibilidade de conhecer com razoável profundidade ambos os lados, com os seus pontos fortes e fracos. Daqui resultou para mim uma visão mais abrangente e relativizada, que utilizei numerosas vezes para lançar sugestões e fazer recomendações tanto na escola privada como na pública.
Dentro dessa actividade, traduzi em tempos vários documentos oriundos de uma conhecida instituição internacional em que era referida a necessidade de apoio a Moçambique através da formação de técnicos de Contabilidade. Um dos relatórios descrevia a difícil situação do Estado moçambicano no que respeita à cobrança de impostos, na medida em que as grandes empresas, aquelas que mais impostos geram, contavam com técnicos melhores do que os do Estado. Aliás, algumas dessas empresas contratavam com ordenados mais elevados alguns técnicos mais conhecedores da Função Pública.
Menciono estes dois pontos a propósito da situação do actual Director-Geral da D.G.C.I., Paulo Macedo, acerca do qual recentemente muito se escreveu devido ao seu salário elevado. Não é esse o ponto que me interessa neste momento. O que se nota é que o Dr. Paulo Macedo possui uma ampla visão conjugada dos sectores empresariais e públicos, que tão útil é para um trabalho eficaz. Homem da banca, é conhecedor de muitas das artimanhas do sector financeiro para fugir ao fisco. Desde 2003 até agora já fez muito. Há quem tema que ele avance mais, imparável. É que se trata de um Director-Geral que conhece bem os dois lados da barricada. Talvez por isso tenham começado a surgir, vindos não se sabe de onde, comentários ácidos sobre o seu proibitivo salário. Apetece-me dizer que, a partir deste momento, quanto mais o MACEDO for bem sucedido, tanto MAis CEDO ele será varrido. "Foi uma mera coincidência", dirá alguém um dia mais tarde.
Dentro dessa actividade, traduzi em tempos vários documentos oriundos de uma conhecida instituição internacional em que era referida a necessidade de apoio a Moçambique através da formação de técnicos de Contabilidade. Um dos relatórios descrevia a difícil situação do Estado moçambicano no que respeita à cobrança de impostos, na medida em que as grandes empresas, aquelas que mais impostos geram, contavam com técnicos melhores do que os do Estado. Aliás, algumas dessas empresas contratavam com ordenados mais elevados alguns técnicos mais conhecedores da Função Pública.
Menciono estes dois pontos a propósito da situação do actual Director-Geral da D.G.C.I., Paulo Macedo, acerca do qual recentemente muito se escreveu devido ao seu salário elevado. Não é esse o ponto que me interessa neste momento. O que se nota é que o Dr. Paulo Macedo possui uma ampla visão conjugada dos sectores empresariais e públicos, que tão útil é para um trabalho eficaz. Homem da banca, é conhecedor de muitas das artimanhas do sector financeiro para fugir ao fisco. Desde 2003 até agora já fez muito. Há quem tema que ele avance mais, imparável. É que se trata de um Director-Geral que conhece bem os dois lados da barricada. Talvez por isso tenham começado a surgir, vindos não se sabe de onde, comentários ácidos sobre o seu proibitivo salário. Apetece-me dizer que, a partir deste momento, quanto mais o MACEDO for bem sucedido, tanto MAis CEDO ele será varrido. "Foi uma mera coincidência", dirá alguém um dia mais tarde.
1/20/2007
Gasolina é fogo para a carteira dos cidadãos
Quando, já há largos anos, houve um significativo aumento do preço da gasolina nos Estados Unidos, foi criado o slogan Save a liter, write a letter. Hoje, com e-mails e outros meios céleres de comunicação, já ninguém usaria o antigo slogan, mas o certo é que a gasolina voltou a estar bastante cara.
Um estudo recentemente publicado na separata Dia D do Público informa-nos com algum detalhe da razão pela qual pagamos um preço tão elevado. Porque alguns dos habituais leitores do blogue podem não ter visto esta informação, passo a resumi-la.
Considerando que o preço actual é de 1,238 euros, verificamos que o mesmo corresponde a 248 escudos antigos. Uma enormidade! Este preço que pagamos é o resultado da soma de três partes distintas: a primeira, a que mais facilmente entendemos e aceitamos, inclui o custo da matéria-prima, a refinação, a distribuição, o marketing e a margem de lucro da gasolineira. Por esta panóplia de factores pagamos em cada litro 0,44019 euros, o equivalente a 88 escudos. Entre este valor e o preço final pagamos apenas impostos para o Estado.
Assim, logo à partida, o imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) custa-nos 0,582950 euros (i.e. 117 escudos), bem mais do que o somatório dos outros factores atrás mencionados. Aplicada sobre o preço conjunto das duas partes referidas, vem depois a terceira parte: o IVA. Como a sua taxa é de 21 por cento, resultam daí mais 0,21486 euros (= 43 escudos). Tudo somado dá o lindo preço de um euro vírgula 238 por litro.
Em termos percentuais, a matéria-prima posta na bomba de gasolina não ultrapassa 36 por cento do preço final. Os restantes 64 por cento vão para impostos que o Estado cobra. Embora se saiba que um preço baixo iria naturalmente aumentar o consumo, com todos os inconvenientes que isso acarretaria, não deixam de ter razão alguns sheiks de países produtores de petróleo que afirmam que os estados europeus tiram mais benefícios do seu produto do que eles próprios.
Um estudo recentemente publicado na separata Dia D do Público informa-nos com algum detalhe da razão pela qual pagamos um preço tão elevado. Porque alguns dos habituais leitores do blogue podem não ter visto esta informação, passo a resumi-la.
Considerando que o preço actual é de 1,238 euros, verificamos que o mesmo corresponde a 248 escudos antigos. Uma enormidade! Este preço que pagamos é o resultado da soma de três partes distintas: a primeira, a que mais facilmente entendemos e aceitamos, inclui o custo da matéria-prima, a refinação, a distribuição, o marketing e a margem de lucro da gasolineira. Por esta panóplia de factores pagamos em cada litro 0,44019 euros, o equivalente a 88 escudos. Entre este valor e o preço final pagamos apenas impostos para o Estado.
Assim, logo à partida, o imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) custa-nos 0,582950 euros (i.e. 117 escudos), bem mais do que o somatório dos outros factores atrás mencionados. Aplicada sobre o preço conjunto das duas partes referidas, vem depois a terceira parte: o IVA. Como a sua taxa é de 21 por cento, resultam daí mais 0,21486 euros (= 43 escudos). Tudo somado dá o lindo preço de um euro vírgula 238 por litro.
Em termos percentuais, a matéria-prima posta na bomba de gasolina não ultrapassa 36 por cento do preço final. Os restantes 64 por cento vão para impostos que o Estado cobra. Embora se saiba que um preço baixo iria naturalmente aumentar o consumo, com todos os inconvenientes que isso acarretaria, não deixam de ter razão alguns sheiks de países produtores de petróleo que afirmam que os estados europeus tiram mais benefícios do seu produto do que eles próprios.
1/18/2007
O próximo referendo
Infelizmente, constata-se que um número significativo de sinais aponta para um mesmo facto: a liberalização do aborto não passará de novo desta vez. Assumo-me claramente a favor do "sim", mas não posso deixar de verificar a existência de uma enorme onda de "nãos" e outra de abstenções pelos mais diversos motivos.
A condenação pela Ordem dos Médicos - embora não disciplinar - dos clínicos que "sujem" as suas mãos é um entrave de tomo. Tem estado na base de procedimentos opostos em Portugal e Espanha com base em leis muito idênticas. Já o posicionamento da Igreja não surpreende ninguém. Tem sido conservadora e assim continuará. Um bispo das remotas regiões do nordeste ousou comparar o aborto à execução de Saddam Hussein. Saberá o bispo em questão que o ridículo mata? Existem mesmo assim numerosas excepções nalguns sectores dos católicos praticantes, mas aparentemente as outras vozes soam mediaticamente mais fortes. Convém sempre não esquecer que não se pode destruir com a razão convicções que derivam da fé, seja esta qual for. A razão é geralmente impotente perante a paixão.
Oiço, aqui e ali, argumentos que não ajudam. "Então não há assuntos mais importantes para debater neste país do que o aborto? Ponham mas é a economia a funcionar melhor, que isto está uma desgraça!" Outros clamam: "Já somos poucos, o país está cheio de imigrantes, se vamos liberalizar o aborto qualquer dia ainda somos menos."
O aborto é algo estritamente do foro individual. Pretende-se apenas que, para uma mulher que está com uma gravidez que não deseja, exista a possibilidade de ser legalmente atendida num hospital antes de findo um prazo de dez semanas. Escreve-me uma boa amiga: "Nenhuma mulher aborta de ânimo leve. É uma decisão muito dificil que só acontece em último caso. O peso dessa decisão já é um fardo difícil de carregar. Pelo menos que lhe sejam dadas as condições para fazê-lo em segurança e não lhe ponham ainda em cima a carga de um processo judicial."
É nestes temas que surge o lado conservador da sociedade portuguesa em toda a sua intolerância, com o seu indisfarçável autoritarismo e anti-liberalismo. Quer impor tudo a todos. A sua intolerância revela-se exactamente em casos como este do aborto, da liberalização das drogas leves e até das touradas (não das guerras, que essas serão necessárias para purificar o planeta). Deixar o aborto ao livre arbítrio da mulher, mesmo que dentro de um determinado número de semanas de gravidez, é intolerável para essas pessoas. É a sociedade virtuosa que assim fala. Que pretende impor o medo aos outros. Que gosta de falar em termos de vingança divina e de inferno. A sociedade virtuosa, que não se importa de enganar o fisco por múltiplas razões, mas que nisto é implacável. Na realidade, pouco mudou no seu moralismo desde o 25 de Abril. Muitos ficaram até mais encarniçados na sua luta. A religião continua a ser uma das instituições que definem este lado conservador da sociedade. E não se julgue que, em termos partidários, este conservadorismo é apanágio do CDS. Será muito do CDS, de facto, mas também muitíssimo do PSD, além de ser igualmente de uma parte significativa do PS.
Quer queiramos, quer não, estamos em face do mesmo Portugal hipócrita de Salazar, que exige dos outros o cumprimento de preceitos que os próprios nem sempre cumprem. O Portugal da justiça dúbia do caso Casa Pia. O tema do aborto inclui todos estes ingredientes. É a cultura funda, o povo sem máscara, o Salazar do catecismo e dos bons costumes. Se, nas votações políticas, os candidatos não sabem em quem se votou secretamente, num caso como este do aborto, é Deus quem tudo vigia! E tudo muda de figura. É por isso que se torna tão difícil fazer passar em referendo o aborto em Portugal. "Atentar contra a vida humana, nunca!" Depois, algo contraditoriamente com a violência demonstrada nas palavras e possivelmente pensando que os próprios ou seus familiares podem um dia ser apanhados nas mesmas malhas, "mas fazer as mulheres ir para a prisão! Não, isso não!" Uma no cravo, outra na ferradura. O país do "nim" e do "talvez".
Junte-se a isto o facto de o referendo só ser válido com a afluência às urnas de mais de 50 por cento dos eleitores. Atente-se que, apesar de as listas eleitorais já terem sido expurgadas de muitos mortos e emigrantes, continuam naturalmente a contar com mais eleitores nominais do que os reais. E é relativamente aos nominais que é preciso chegar aos 50 por cento!
Por tudo isto, parece difícil que o "sim" ganhe. Uma vez que os dirigentes do PS votam oficialmente "sim", uma abstenção ou um "não" até constituem uma boa maneira de mostrar descontentamento para com a governação.
Este conjunto de factores leva-me a crer que vai suceder ao "sim" do referendo sobre o aborto o mesmo que sucedeu à Constituição Europeia: não passará. Tudo vem mostrar que, apesar de Portugal ter mudado muito no aspecto das suas vilas e cidades, nas suas estradas e transportes, manteve-se muito perto do que era antigamente na sua mentalidade mais profunda. Será esta, possivelmente, a única vantagem do referendo: dar-nos o retrato real do nosso país. Triste consolação para um problema que há muito deveria ter deixado de o ser.
A condenação pela Ordem dos Médicos - embora não disciplinar - dos clínicos que "sujem" as suas mãos é um entrave de tomo. Tem estado na base de procedimentos opostos em Portugal e Espanha com base em leis muito idênticas. Já o posicionamento da Igreja não surpreende ninguém. Tem sido conservadora e assim continuará. Um bispo das remotas regiões do nordeste ousou comparar o aborto à execução de Saddam Hussein. Saberá o bispo em questão que o ridículo mata? Existem mesmo assim numerosas excepções nalguns sectores dos católicos praticantes, mas aparentemente as outras vozes soam mediaticamente mais fortes. Convém sempre não esquecer que não se pode destruir com a razão convicções que derivam da fé, seja esta qual for. A razão é geralmente impotente perante a paixão.
Oiço, aqui e ali, argumentos que não ajudam. "Então não há assuntos mais importantes para debater neste país do que o aborto? Ponham mas é a economia a funcionar melhor, que isto está uma desgraça!" Outros clamam: "Já somos poucos, o país está cheio de imigrantes, se vamos liberalizar o aborto qualquer dia ainda somos menos."
O aborto é algo estritamente do foro individual. Pretende-se apenas que, para uma mulher que está com uma gravidez que não deseja, exista a possibilidade de ser legalmente atendida num hospital antes de findo um prazo de dez semanas. Escreve-me uma boa amiga: "Nenhuma mulher aborta de ânimo leve. É uma decisão muito dificil que só acontece em último caso. O peso dessa decisão já é um fardo difícil de carregar. Pelo menos que lhe sejam dadas as condições para fazê-lo em segurança e não lhe ponham ainda em cima a carga de um processo judicial."
É nestes temas que surge o lado conservador da sociedade portuguesa em toda a sua intolerância, com o seu indisfarçável autoritarismo e anti-liberalismo. Quer impor tudo a todos. A sua intolerância revela-se exactamente em casos como este do aborto, da liberalização das drogas leves e até das touradas (não das guerras, que essas serão necessárias para purificar o planeta). Deixar o aborto ao livre arbítrio da mulher, mesmo que dentro de um determinado número de semanas de gravidez, é intolerável para essas pessoas. É a sociedade virtuosa que assim fala. Que pretende impor o medo aos outros. Que gosta de falar em termos de vingança divina e de inferno. A sociedade virtuosa, que não se importa de enganar o fisco por múltiplas razões, mas que nisto é implacável. Na realidade, pouco mudou no seu moralismo desde o 25 de Abril. Muitos ficaram até mais encarniçados na sua luta. A religião continua a ser uma das instituições que definem este lado conservador da sociedade. E não se julgue que, em termos partidários, este conservadorismo é apanágio do CDS. Será muito do CDS, de facto, mas também muitíssimo do PSD, além de ser igualmente de uma parte significativa do PS.
Quer queiramos, quer não, estamos em face do mesmo Portugal hipócrita de Salazar, que exige dos outros o cumprimento de preceitos que os próprios nem sempre cumprem. O Portugal da justiça dúbia do caso Casa Pia. O tema do aborto inclui todos estes ingredientes. É a cultura funda, o povo sem máscara, o Salazar do catecismo e dos bons costumes. Se, nas votações políticas, os candidatos não sabem em quem se votou secretamente, num caso como este do aborto, é Deus quem tudo vigia! E tudo muda de figura. É por isso que se torna tão difícil fazer passar em referendo o aborto em Portugal. "Atentar contra a vida humana, nunca!" Depois, algo contraditoriamente com a violência demonstrada nas palavras e possivelmente pensando que os próprios ou seus familiares podem um dia ser apanhados nas mesmas malhas, "mas fazer as mulheres ir para a prisão! Não, isso não!" Uma no cravo, outra na ferradura. O país do "nim" e do "talvez".
Junte-se a isto o facto de o referendo só ser válido com a afluência às urnas de mais de 50 por cento dos eleitores. Atente-se que, apesar de as listas eleitorais já terem sido expurgadas de muitos mortos e emigrantes, continuam naturalmente a contar com mais eleitores nominais do que os reais. E é relativamente aos nominais que é preciso chegar aos 50 por cento!
Por tudo isto, parece difícil que o "sim" ganhe. Uma vez que os dirigentes do PS votam oficialmente "sim", uma abstenção ou um "não" até constituem uma boa maneira de mostrar descontentamento para com a governação.
Este conjunto de factores leva-me a crer que vai suceder ao "sim" do referendo sobre o aborto o mesmo que sucedeu à Constituição Europeia: não passará. Tudo vem mostrar que, apesar de Portugal ter mudado muito no aspecto das suas vilas e cidades, nas suas estradas e transportes, manteve-se muito perto do que era antigamente na sua mentalidade mais profunda. Será esta, possivelmente, a única vantagem do referendo: dar-nos o retrato real do nosso país. Triste consolação para um problema que há muito deveria ter deixado de o ser.
1/14/2007
O descalçar da bota
Calçar uma bota é geralmente mais simples do que descalçá-la. Há mulheres e homens que recorrem frequentemente ao auxílio de outrem para retirar da perna e do pé uma bota de cano alto que já tenha entrado com algum custo.
De minha experiência pessoal, o caso mais gritante - e este qualificativo tem significado real - foi o do Brito, soldado de um pelotão que eu comandava na guerra colonial em Angola. Estando nós já muito em vésperas de embarcar de regresso a Lisboa depois de mais de dois anos em África, meteu-se na cabeça do referido soldado que aquela última patrulha que íamos fazer pelo mato lhe iria ser fatal. Após tantas situações de fogo de que felizmente escapara ileso!
De madrugada, estávamos todos prontos para partir quando de súbito ouvimos um tiro imediatamente seguido de um grito desesperado. Acorremos e vimos o pobre do Brito no chão, a contorcer-se com dores e a dizer mal da sua vida. Apurar de pronto exactamente o que se passara não foi de todo fácil, mas acabou por se descobrir. Para evitar ir à patrulha que pretendíamos fazer, o soldado tinha mentalmente urdido um esquema que só tinha que dar certo. Não deu. Encostou o cano da espingarda à bota do pé direito, calculando o espaço entre o dedo grande e o que está a seu lado. Era aí que a bala devia passar, causando-lhe um ferimento ligeiro mas suficiente para o impedir de andar. As coisas correram-lhe mal. A bala acabou por penetrar-lhe num dos dedos.
Agora, havia que descalçar-lhe a bota, o que se provou impossível pelas dores que ele manifestamente tinha. A bota teve que ser rapidamente cortada o melhor que pudemos, até que acabou por sair. O pé, todo ensanguentado, recebeu um primeiro tratamento. Restou-nos depois evacuar o soldado para o hospital, onde esteve internado alguns dias.
Este caso da auto-infligida bota-difícil-de-descalçar ocorre-me frequentemente a propósito dos americanos no Iraque. O cego e auto-assumido superiorismo americano à escala mundial fez a América entrar unilateralmente na sua grande aventura do Médio Oriente rico em recursos energéticos que lhe são essenciais. E agora, George? Mesmo rasgando-a, a bota sairá? E a que preço? Infelizmente, muito sangue, demasiado sangue já correu. Quanto tempo demorará o internamento hospitalar até o pé ficar definitivamente curado aos olhos do mundo? E terá cura?
De minha experiência pessoal, o caso mais gritante - e este qualificativo tem significado real - foi o do Brito, soldado de um pelotão que eu comandava na guerra colonial em Angola. Estando nós já muito em vésperas de embarcar de regresso a Lisboa depois de mais de dois anos em África, meteu-se na cabeça do referido soldado que aquela última patrulha que íamos fazer pelo mato lhe iria ser fatal. Após tantas situações de fogo de que felizmente escapara ileso!
De madrugada, estávamos todos prontos para partir quando de súbito ouvimos um tiro imediatamente seguido de um grito desesperado. Acorremos e vimos o pobre do Brito no chão, a contorcer-se com dores e a dizer mal da sua vida. Apurar de pronto exactamente o que se passara não foi de todo fácil, mas acabou por se descobrir. Para evitar ir à patrulha que pretendíamos fazer, o soldado tinha mentalmente urdido um esquema que só tinha que dar certo. Não deu. Encostou o cano da espingarda à bota do pé direito, calculando o espaço entre o dedo grande e o que está a seu lado. Era aí que a bala devia passar, causando-lhe um ferimento ligeiro mas suficiente para o impedir de andar. As coisas correram-lhe mal. A bala acabou por penetrar-lhe num dos dedos.
Agora, havia que descalçar-lhe a bota, o que se provou impossível pelas dores que ele manifestamente tinha. A bota teve que ser rapidamente cortada o melhor que pudemos, até que acabou por sair. O pé, todo ensanguentado, recebeu um primeiro tratamento. Restou-nos depois evacuar o soldado para o hospital, onde esteve internado alguns dias.
Este caso da auto-infligida bota-difícil-de-descalçar ocorre-me frequentemente a propósito dos americanos no Iraque. O cego e auto-assumido superiorismo americano à escala mundial fez a América entrar unilateralmente na sua grande aventura do Médio Oriente rico em recursos energéticos que lhe são essenciais. E agora, George? Mesmo rasgando-a, a bota sairá? E a que preço? Infelizmente, muito sangue, demasiado sangue já correu. Quanto tempo demorará o internamento hospitalar até o pé ficar definitivamente curado aos olhos do mundo? E terá cura?
1/05/2007
Númaros
É de todos os tempos o maior gosto das pessoas pelos números ou pelas letras. Feliz aquele que gosta de ambas as áreas, na medida em que entende melhor a realidade.
Esta questão dos "númaros" vem aqui a propósito dos maus resultados a Matemática dos alunos do 9º Ano. Os resultados do exame nacional ficam, na generalidade, abaixo das classificações internas das escolas. Verifica-se, ainda, que os alunos apresentam grandes dificuldades na resolução de problemas.
Relativamente à discrepância entre as notas internas e as do exame oficial, ocorreram-me imediatamente as reservas que todos os professores do meu curso de liceu faziam quanto às notas que nos davam no final dos períodos. Era ponto de honra para eles que as notas do exame à escala nacional não fossem inferiores - a não ser em casos excepcionais, sempre de admitir - às das suas próprias classificações. Pareceria que estavam a beneficiar os alunos e a enganar-se a si mesmos. Seria um descrédito para a escola. Outros tempos!
Já quanto às dificuldades em resolver problemas, lembrei-me de fazer um pequeníssimo teste - que admito não ser representativo - com um miúdo meu vizinho que frequenta o 8º Ano. Fui buscar um velhíssimo (1947) livro de exercícios do Ensino Primário Elementar, da autoria do Prof. Tomás de Barros. Tratava-se, portanto, de exercícios da antiga 4ª classe e preparação para o exame de admissão. Coloquei-lhe meia dúzia de exercícios, tal como lá se encontravam. Os três primeiros eram para simples cálculo mental (CM).
1.(CM) Foi distribuído 1/2 dum pão por cada pobre. Foram contemplados 150 pobres. Quantos pães se gastaram?
2.(CM) Um aluno duma escola gasta por mês dois cadernos de papel. Quantos cadernos gasta em 5 trimestres?
3.(CM) Quantos segundos há em 2/4 de hora?
4. Um galinheiro tinha numa feira 17 dúzias de galinhas que despachou depois para Lisboa ao preço de 114$00 cada dúzia. A como vendeu cada par dessas aves?
5. Um negociante falido ficou a dever aos seus credores 2/3 da sua dívida, correspondente a 40 contos. De quanto era a dívida?
6. Uma obra pode ser feita por um só homem em 40 horas, 42 minutos e 27 segundos. Mas, se trabalhassem nela 3 homens, em que tempo se acabaria o trabalho?
O aluno em questão mostrou-se incapaz de resolver as primeiras três questões apenas através de cálculo mental e, quanto aos problemas, usando papel e lápis, acertou no nº 5.
Não estou com isto a defender o ensino antigo em todas as suas áreas, como é evidente. Sobre a parte de indoutrinação, então nem é bom falar! (A este propósito, aliás, gostaria de recomendar, a quem ainda o conseguir encontrar, um livrinho da D. Quixote publicado nos anos 70 (antes do 25 de Abril) com o título Ensino Primário e Ideologia. A autora, minha colega de curso, é Maria de Fátima Bívar, que mais tarde adoptou o nome literário de Maria Velho da Costa. O livro é um mimo. A não perder!)
Se têm miúdos vizinhos, ou familiares, em idade de 10 a 14, coloquem-lhes as mesmas questões. Espero que os resultados que venham a obter sejam melhores do que aqueles que consegui apurar.
Esta questão dos "númaros" vem aqui a propósito dos maus resultados a Matemática dos alunos do 9º Ano. Os resultados do exame nacional ficam, na generalidade, abaixo das classificações internas das escolas. Verifica-se, ainda, que os alunos apresentam grandes dificuldades na resolução de problemas.
Relativamente à discrepância entre as notas internas e as do exame oficial, ocorreram-me imediatamente as reservas que todos os professores do meu curso de liceu faziam quanto às notas que nos davam no final dos períodos. Era ponto de honra para eles que as notas do exame à escala nacional não fossem inferiores - a não ser em casos excepcionais, sempre de admitir - às das suas próprias classificações. Pareceria que estavam a beneficiar os alunos e a enganar-se a si mesmos. Seria um descrédito para a escola. Outros tempos!
Já quanto às dificuldades em resolver problemas, lembrei-me de fazer um pequeníssimo teste - que admito não ser representativo - com um miúdo meu vizinho que frequenta o 8º Ano. Fui buscar um velhíssimo (1947) livro de exercícios do Ensino Primário Elementar, da autoria do Prof. Tomás de Barros. Tratava-se, portanto, de exercícios da antiga 4ª classe e preparação para o exame de admissão. Coloquei-lhe meia dúzia de exercícios, tal como lá se encontravam. Os três primeiros eram para simples cálculo mental (CM).
1.(CM) Foi distribuído 1/2 dum pão por cada pobre. Foram contemplados 150 pobres. Quantos pães se gastaram?
2.(CM) Um aluno duma escola gasta por mês dois cadernos de papel. Quantos cadernos gasta em 5 trimestres?
3.(CM) Quantos segundos há em 2/4 de hora?
4. Um galinheiro tinha numa feira 17 dúzias de galinhas que despachou depois para Lisboa ao preço de 114$00 cada dúzia. A como vendeu cada par dessas aves?
5. Um negociante falido ficou a dever aos seus credores 2/3 da sua dívida, correspondente a 40 contos. De quanto era a dívida?
6. Uma obra pode ser feita por um só homem em 40 horas, 42 minutos e 27 segundos. Mas, se trabalhassem nela 3 homens, em que tempo se acabaria o trabalho?
O aluno em questão mostrou-se incapaz de resolver as primeiras três questões apenas através de cálculo mental e, quanto aos problemas, usando papel e lápis, acertou no nº 5.
Não estou com isto a defender o ensino antigo em todas as suas áreas, como é evidente. Sobre a parte de indoutrinação, então nem é bom falar! (A este propósito, aliás, gostaria de recomendar, a quem ainda o conseguir encontrar, um livrinho da D. Quixote publicado nos anos 70 (antes do 25 de Abril) com o título Ensino Primário e Ideologia. A autora, minha colega de curso, é Maria de Fátima Bívar, que mais tarde adoptou o nome literário de Maria Velho da Costa. O livro é um mimo. A não perder!)
Se têm miúdos vizinhos, ou familiares, em idade de 10 a 14, coloquem-lhes as mesmas questões. Espero que os resultados que venham a obter sejam melhores do que aqueles que consegui apurar.
1/03/2007
Recordando a Buda e a Boneca
Disse Robert Browning num dos seus poemas: «O que é interessante é o perigoso limiar das coisas / um ladrão honesto / um assassino terno / um ateu supersticioso». E com certeza é também interessante - atrevo-me a dilatar esta curta lista de criaturas paradoxais - um rafeiro puro. Exemplarmente os podengos, cães que caçam coelhos. De raça morfologicamente tão atípica que mais parecem rafeiros - «por extensão qualquer cão» (dicionário Houaiss).
Fui dona (e serva) de vários cães. Um deles uma rafeira «por extensão» podenga, pois revelou-se brilhante predadora de coelhos. Outra, de novo uma ela e praticamente o negativo da primeira, aparentava ser uma podenga de pêlo cerdoso pura, mas o certo é que apenas a vi tentar timidamente caçar algo que todos os cães, mesmo não sendo de caça ou raça, caçam: gatos. Neste segundo caso, notoriamente podenga «por extensão qualquer cão». Ambas as cadelas tinham em comum, nas suas distintas maneiras de ser mestiças, a plasticidade dos sobreviventes genuínos, talento raramente partilhado pelos seus irmãos de raça pura.
Aprecio, como Nietzsche (que sem dolo inspirou uma posteridade de racistas puros e duros) a pureza dos impuros, ou seja, essa «grande saúde» que ele definiu assim: «aquela que não basta ter, a que se adquire e é necessário adquirir, constantemente, por ser sacrificada sem cessar.»
Fui dona (e serva) de vários cães. Um deles uma rafeira «por extensão» podenga, pois revelou-se brilhante predadora de coelhos. Outra, de novo uma ela e praticamente o negativo da primeira, aparentava ser uma podenga de pêlo cerdoso pura, mas o certo é que apenas a vi tentar timidamente caçar algo que todos os cães, mesmo não sendo de caça ou raça, caçam: gatos. Neste segundo caso, notoriamente podenga «por extensão qualquer cão». Ambas as cadelas tinham em comum, nas suas distintas maneiras de ser mestiças, a plasticidade dos sobreviventes genuínos, talento raramente partilhado pelos seus irmãos de raça pura.
Aprecio, como Nietzsche (que sem dolo inspirou uma posteridade de racistas puros e duros) a pureza dos impuros, ou seja, essa «grande saúde» que ele definiu assim: «aquela que não basta ter, a que se adquire e é necessário adquirir, constantemente, por ser sacrificada sem cessar.»
O preço da magia
"O TERCEIRO PASSO" é muito mais do que um talentoso filme sobre o mundo da magia, pois proporciona uma abissal e caleidoscópica reflexão sobre o tema do duplo e a sua tragédia (nem contigo, nem sem ti...). Obrigatório para geminianos!
Ficamos a saber que, para realizar o terceiro passo (the prestige), é preciso, no segundo (the rotation), sujar as mãos - não apenas moralmente, por vezes também literalmente. Além do mais, num papel que lhe assenta que nem uma luva, surge o sempre enigmático David Bowie a mostrar-nos que o verdadeiro mistério do mister não reside de todo em "tirar" da cartola coelhos, mas sim a própria cartola.
Ficamos a saber que, para realizar o terceiro passo (the prestige), é preciso, no segundo (the rotation), sujar as mãos - não apenas moralmente, por vezes também literalmente. Além do mais, num papel que lhe assenta que nem uma luva, surge o sempre enigmático David Bowie a mostrar-nos que o verdadeiro mistério do mister não reside de todo em "tirar" da cartola coelhos, mas sim a própria cartola.
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