Calçar uma bota é geralmente mais simples do que descalçá-la. Há mulheres e homens que recorrem frequentemente ao auxílio de outrem para retirar da perna e do pé uma bota de cano alto que já tenha entrado com algum custo.
De minha experiência pessoal, o caso mais gritante - e este qualificativo tem significado real - foi o do Brito, soldado de um pelotão que eu comandava na guerra colonial em Angola. Estando nós já muito em vésperas de embarcar de regresso a Lisboa depois de mais de dois anos em África, meteu-se na cabeça do referido soldado que aquela última patrulha que íamos fazer pelo mato lhe iria ser fatal. Após tantas situações de fogo de que felizmente escapara ileso!
De madrugada, estávamos todos prontos para partir quando de súbito ouvimos um tiro imediatamente seguido de um grito desesperado. Acorremos e vimos o pobre do Brito no chão, a contorcer-se com dores e a dizer mal da sua vida. Apurar de pronto exactamente o que se passara não foi de todo fácil, mas acabou por se descobrir. Para evitar ir à patrulha que pretendíamos fazer, o soldado tinha mentalmente urdido um esquema que só tinha que dar certo. Não deu. Encostou o cano da espingarda à bota do pé direito, calculando o espaço entre o dedo grande e o que está a seu lado. Era aí que a bala devia passar, causando-lhe um ferimento ligeiro mas suficiente para o impedir de andar. As coisas correram-lhe mal. A bala acabou por penetrar-lhe num dos dedos.
Agora, havia que descalçar-lhe a bota, o que se provou impossível pelas dores que ele manifestamente tinha. A bota teve que ser rapidamente cortada o melhor que pudemos, até que acabou por sair. O pé, todo ensanguentado, recebeu um primeiro tratamento. Restou-nos depois evacuar o soldado para o hospital, onde esteve internado alguns dias.
Este caso da auto-infligida bota-difícil-de-descalçar ocorre-me frequentemente a propósito dos americanos no Iraque. O cego e auto-assumido superiorismo americano à escala mundial fez a América entrar unilateralmente na sua grande aventura do Médio Oriente rico em recursos energéticos que lhe são essenciais. E agora, George? Mesmo rasgando-a, a bota sairá? E a que preço? Infelizmente, muito sangue, demasiado sangue já correu. Quanto tempo demorará o internamento hospitalar até o pé ficar definitivamente curado aos olhos do mundo? E terá cura?
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