1/18/2007

O próximo referendo

Infelizmente, constata-se que um número significativo de sinais aponta para um mesmo facto: a liberalização do aborto não passará de novo desta vez. Assumo-me claramente a favor do "sim", mas não posso deixar de verificar a existência de uma enorme onda de "nãos" e outra de abstenções pelos mais diversos motivos.
A condenação pela Ordem dos Médicos - embora não disciplinar - dos clínicos que "sujem" as suas mãos é um entrave de tomo. Tem estado na base de procedimentos opostos em Portugal e Espanha com base em leis muito idênticas. Já o posicionamento da Igreja não surpreende ninguém. Tem sido conservadora e assim continuará. Um bispo das remotas regiões do nordeste ousou comparar o aborto à execução de Saddam Hussein. Saberá o bispo em questão que o ridículo mata? Existem mesmo assim numerosas excepções nalguns sectores dos católicos praticantes, mas aparentemente as outras vozes soam mediaticamente mais fortes. Convém sempre não esquecer que não se pode destruir com a razão convicções que derivam da fé, seja esta qual for. A razão é geralmente impotente perante a paixão.
Oiço, aqui e ali, argumentos que não ajudam. "Então não há assuntos mais importantes para debater neste país do que o aborto? Ponham mas é a economia a funcionar melhor, que isto está uma desgraça!" Outros clamam: "Já somos poucos, o país está cheio de imigrantes, se vamos liberalizar o aborto qualquer dia ainda somos menos."
O aborto é algo estritamente do foro individual. Pretende-se apenas que, para uma mulher que está com uma gravidez que não deseja, exista a possibilidade de ser legalmente atendida num hospital antes de findo um prazo de dez semanas. Escreve-me uma boa amiga: "Nenhuma mulher aborta de ânimo leve. É uma decisão muito dificil que só acontece em último caso. O peso dessa decisão já é um fardo difícil de carregar. Pelo menos que lhe sejam dadas as condições para fazê-lo em segurança e não lhe ponham ainda em cima a carga de um processo judicial."
É nestes temas que surge o lado conservador da sociedade portuguesa em toda a sua intolerância, com o seu indisfarçável autoritarismo e anti-liberalismo. Quer impor tudo a todos. A sua intolerância revela-se exactamente em casos como este do aborto, da liberalização das drogas leves e até das touradas (não das guerras, que essas serão necessárias para purificar o planeta). Deixar o aborto ao livre arbítrio da mulher, mesmo que dentro de um determinado número de semanas de gravidez, é intolerável para essas pessoas. É a sociedade virtuosa que assim fala. Que pretende impor o medo aos outros. Que gosta de falar em termos de vingança divina e de inferno. A sociedade virtuosa, que não se importa de enganar o fisco por múltiplas razões, mas que nisto é implacável. Na realidade, pouco mudou no seu moralismo desde o 25 de Abril. Muitos ficaram até mais encarniçados na sua luta. A religião continua a ser uma das instituições que definem este lado conservador da sociedade. E não se julgue que, em termos partidários, este conservadorismo é apanágio do CDS. Será muito do CDS, de facto, mas também muitíssimo do PSD, além de ser igualmente de uma parte significativa do PS.
Quer queiramos, quer não, estamos em face do mesmo Portugal hipócrita de Salazar, que exige dos outros o cumprimento de preceitos que os próprios nem sempre cumprem. O Portugal da justiça dúbia do caso Casa Pia. O tema do aborto inclui todos estes ingredientes. É a cultura funda, o povo sem máscara, o Salazar do catecismo e dos bons costumes. Se, nas votações políticas, os candidatos não sabem em quem se votou secretamente, num caso como este do aborto, é Deus quem tudo vigia! E tudo muda de figura. É por isso que se torna tão difícil fazer passar em referendo o aborto em Portugal. "Atentar contra a vida humana, nunca!" Depois, algo contraditoriamente com a violência demonstrada nas palavras e possivelmente pensando que os próprios ou seus familiares podem um dia ser apanhados nas mesmas malhas, "mas fazer as mulheres ir para a prisão! Não, isso não!" Uma no cravo, outra na ferradura. O país do "nim" e do "talvez".
Junte-se a isto o facto de o referendo só ser válido com a afluência às urnas de mais de 50 por cento dos eleitores. Atente-se que, apesar de as listas eleitorais já terem sido expurgadas de muitos mortos e emigrantes, continuam naturalmente a contar com mais eleitores nominais do que os reais. E é relativamente aos nominais que é preciso chegar aos 50 por cento!
Por tudo isto, parece difícil que o "sim" ganhe. Uma vez que os dirigentes do PS votam oficialmente "sim", uma abstenção ou um "não" até constituem uma boa maneira de mostrar descontentamento para com a governação.
Este conjunto de factores leva-me a crer que vai suceder ao "sim" do referendo sobre o aborto o mesmo que sucedeu à Constituição Europeia: não passará. Tudo vem mostrar que, apesar de Portugal ter mudado muito no aspecto das suas vilas e cidades, nas suas estradas e transportes, manteve-se muito perto do que era antigamente na sua mentalidade mais profunda. Será esta, possivelmente, a única vantagem do referendo: dar-nos o retrato real do nosso país. Triste consolação para um problema que há muito deveria ter deixado de o ser.

Sem comentários:

Enviar um comentário