3/31/2007

As árvores da Páscoa




Por vezes, de tão expectantes que os lisboetas estão dos seus jacarandás, os quais pontualmente florirão em Maio, esquecem-se de olhar para outras árvores igualmente bonitas que enchem algumas das suas ruas. Nesta altura, embora sem a profusão das acácias que dão pelo nome mexicano de oaxaca e do luso-brasileiro de jacarandá, estão em plena floração nalgumas artérias de Lisboa lindas olaias. As olaias são um pouco como os lobos, na medida em que têm uma conotação ruim. O seu outro nome é o de árvores de Judas, em (má) recordação da altura em que elas florescem: por alturas da Páscoa, como agora.
Dêem entretanto uma vista de olhos. Vale a pena. Há poucos anos, devem ter sido plantadas bastantes na cidade, porque se vêem algumas ainda pequenas em diversos sítios, a começar naturalmente pela rotunda das Olaias. As fotos junto mostram uma pequena rua transversal à Avenida de Berna, junto à igreja de Nossa Senhora de Fátima. É a bênção da Virgem à árvore, cujo nome popular só espíritos com maior perversidade do que admiração pela beleza podem ter dado à olaia.

3/29/2007

Tempus fugit

A frase é latina, o que revela que se trata de uma característica humana que não é notada apenas pelas pessoas presentemente vivas mas que, pelo contrário, tem raízes muito antigas. Há dias, uma familiar minha com mais de oitenta anos dizia-me: "Não sei o que é, o tempo agora voa! Parece que foi há meses que aquilo se passou e, afinal, já lá vão três anos!" Na altura, tentei explicar-lhe que a razão é simples: como, à medida que avançamos na idade, os chips da nossa memória vão ficando cada vez menos carregados, pura e simplesmente esquecemo-nos das coisas. Isto responderia à questão dos senior moments, aquelas ocasiões em que estamos a falar de um determinado assunto, fazemos um pequeno desvio na conversa por qualquer motivo e, findo esse desvio, sentimos que perdemos o fio à meada e não sabemos já com precisão do que estávamos a falar. Embora isto seja um facto, interrogo-me se responderá à questão do motivo por que o tempo parece voar mais à medida que a nossa idade vai avançando.
Por que razão falam os homens frequentemente do seu serviço militar? E se tiver sido cumprido em África durante o período de guerra, ainda muito mais! Que razão levará estudantes do ensino superior que viajam na base de programas comunitários como o Erasmus, a dizerem no seu regresso que "aqueles seis meses equivaleram a dois anos passados aqui!" (é o oposto do tempus fugit). Por que motivo falamos tão frequentemente das viagens que fazemos, por vezes com detalhes que até já estão longínquos no tempo? Poderá dizer-se que é por causa da idade da pessoa? Se virmos bem, é um facto que períodos de serviço militar remontam aos vinte e poucos anos; as viagens, porém, podem ser realizadas aos 20, 40, 50 ou 70 anos, e as pessoas lembram-se bem delas posteriormente. E aí o tempo não parece já fugir!
A razão, creio, está mais na existência de demasiadas rotinas do que na desmemoriação causada pela idade. Ao relembrar a vida actual daquela familiar que acima refiro, vejo com facilidade a rotina que nela se instalou. Pouco ou nada surge de novo na sua vida. Gosta de ver o telejornal para saber algumas notícias e transmiti-las a outrem se for caso disso - o mensageiro entra como activo participante na própria transmissão do acontecimento. Aprecia telenovelas, porque nelas surgem coisas que quebram a sua vida rotineira. E porque fala ela mais do passado do que do seu presente? Porque este pouco tem de diferenciado, enquanto que o seu passado apresenta histórias interessantes, episódios de referência, significativos, que lhe dão prazer narrar. Quem se reforma, por exemplo, abandona o contacto diário com os seus colegas de emprego. Sem que se aperceba desse facto quando os tem à sua volta, estes colegas, com as vivências que partilham com todos, contribuem para a quebra da monotonia, para uma mais saudável politonia, que colora a vida. Depois da reforma, esta tende a passar mais a branco e preto, um pouco como a natural passagem do dia para a noite.
Daí que haja que contrariar esta tendência. Própria e dos outros. Visitar outros é fundamental. Ter fins-de-semana diferentes, viagens, leituras, escrita, projectos, é crucial. Para quê? Para que o tempo não fuja tão depressa. Para que não se transforme num rio que, sem quaisquer obstáculos pelo caminho - obstáculos que constituem a diversidade do seu percurso, afinal -, corra mais aceleradamente para a foz. São os obstáculos que o rio do tempo deve encontrar - os momentos bons, os menos bons, as viagens, o reencontro de amigos, as refeições com uns e com outros, os projectos que se continua a alimentar -, são estes obstáculos, que o rio deve encontrar, que obstam a que ele flua com o mesmo caudal de água, impetuosamente rumo à foz. Urge contrariar este fluir livre, para que tempus fugit se transforme em falta de tempo para fazer coisas que se desejaria fazer. Assim, a vida fica mais rica e vivemos de facto mais, possivelmente sendo também mais úteis para a sociedade em que estamos inseridos.

3/25/2007

Nos 50 anos da União Europeia

Como notícia é tudo aquilo que não deveria em princípio acontecer, os jornais gostam de mostrar uma Europa desunida. É óbvio que uma notícia vende mais do que uma não-notícia. Mas haverá de facto razão para carregar com tal força na tecla da desunião?
Recuemos até 1957, que é quando oficialmente tudo começou, isto é, com a assinatura de documentos (de facto, o processo iniciara-se um bom par de anos antes). O mundo estava então a sofrer dramáticas convulsões. A Europa reconstruía-se ainda, após uma guerra que se mostrou profundamente letal e arrasou numerosas instituições. Aquela que tinha sido a colónia mais próspera da Europa - os Estados Unidos - subia em flecha na cena mundial, tendo conseguido a enorme proeza de levar a sede das Nações Unidas para Nova Iorque. Tal queria dizer que não era só do ponto de vista militar e económico que os Estados Unidos estavam a liderar; politicamente, encontravam-se também na primeiríssima linha. Do ponto de vista científico e até artístico, os EUA tinham-se guindado à imagem de país-refúgio para uma Europa por demais conturbada. Colhiam assim os benefícios de um continente rico em cérebros, que os perdia pelo facto simples, mas humano, de que não podia competir com as condições mais aliciantes que o outro lado do Atlântico oferecia. Entretanto, à sombra da muito propalada benfeitoria do Plano Marshall, que efectivamente teve êxito na reconstrução de uma Europa empobrecida mas que, simultaneamente, ajudou fortemente a economia americana a emprestar poder de compra aos grandes compradores dos seus produtos, os Estados Unidos estavam prontos a desferir o golpe por que há décadas esperavam: levar a Europa a descolonizar. Em nome da liberdade e da democracia.
Americanos e russos, potencialmente os dois povos mais imperialistas de então, preparavam-se para o golpe. O objectivo principal era o continente africano, embora incluísse outras partes do mundo. A Inglaterra foi dos primeiros países europeus a descolonizar. A França, a Bélgica, a Holanda, e Portugal por último, fizeram o mesmo. Os Estados Unidos, que estudaram bem o significado do e pluribus unum para a formação da sua enorme força, decidiram apostaram no "dividir para reinar". Dos noventa e tal países que existiam então passou-se, com as novas independências, a mais de 200 hoje em dia. Os EUA foram ainda ajudados, nos anos 90, pela forçada descolonização da União Soviética (eufemisticamente chamada "desintegração"), que eles próprios fomentaram de várias maneiras, entre elas através do auxílio ao país vizinho da URSS, a Polónia - apoio ao Solidariedade, de Walesa, e pressão política para a eleição de um papa polaco, João Paulo II.
A uma Europa debilitada, com uma sombra muito diminuída relativamente à que tivera graças ao seu império colonial, pouco mais restava do que orientar-se pelo referido lema latino e pluribus unum. Nasceu daqui uma comunidade de interesses comuns que, passo a passo, se transformou na União Europeia. Sintomaticamente, as comparações da UE são muitas vezes feitas relativamente aos Estados Unidos, seja em termos de população, de PIB, de desenvolvimento científico e, last but not least, em termos de moeda. O euro foi o grande sapo que o almighty dollar teve de engolir. Como seria previsível, os EUA não gostam dos sucessos da Europa, procurando dividi-la sempre que possível (basta lembrar-nos da “Velha Europa” e da “Nova Europa” aquando da questão do Iraque).
A verdade é que a Europa unida, hoje com 27 países, dificilmente poderia ser uma união sem contradições. Claro que as tem. E tê-las-á por muito tempo. A Portugal custa ver a Espanha entrar-lhe pelas portas dentro. À França torna-se difícil digerir uma cooperação com os ingleses que ajudaram a criar a sua Joana d’Arc, assim como lhes não é fácil andar de mãos dadas com a Alemanha arqui-inimiga através dos séculos. À Polónia e à República Checa sabe-lhes bem a independência perante a Rússia, mas não podem esquecer nem o mal que a Alemanha em tempos lhes causou, nem o auxílio que os Estados Unidos lhes prestaram noutras ocasiões.
Estas são algumas das muitas contradições que necessariamente existem numa União Europeia que ainda não há muitos anos era constituída por 15 países e agora já vai quase no dobro. Uma União Europeia que, numa crítica possivelmente justificada, tem caminhado demasiado depressa mas que possui nalguns dos seus membros uma moeda que se tem revelado forte e vem constituindo uma real alternativa ao dólar. Uma União Europeia que vê com frequência muitos dos seus países ocuparem posições cimeiras nos mais variados rankings mundiais. Uma UE da liberdade, democracia e modelos sociais que, embora sendo diferentes de país para país, merecem a preferência da maioria dos europeus quando postos em cotejo com os de outros países ditos desenvolvidos.
Parabéns, Europa! Falta muito para atingir uma maior consolidação, mas lá chegaremos.

P.S. Em Lisboa, o encontro promovido pelo Presidente da República com os "protagonistas executivos da adesão e da participação de Portugal nas instituições comunitárias" deixou de fora dos 29 convidados um dos adversários principais de Cavaco Silva nas últimas eleições presidenciais: alguém que foi, sem sombra de dúvida, o grande obreiro da adesão de Portugal à Europa. A atitude do "Presidente de todos os portugueses" é inadmissível.

3/22/2007

Letras e números

Sobre o relacionamento entre letras e números já foram escritos milhares de livros. Não é sobre cabalística, nem sobre magia que pretendo alinhavar aqui umas linhas. É algo muito mais simples e comezinho, e, o que é mais, tem de caber num espaço adequadamente bloguístico, i.e. uma página no máximo, caso contrário ninguém lê.
Para além das palavras cruzadas que nos pedem para usar números romanos, que encadeiam com palavras perfeitas normais – IV (quatro), CI (cento e um), II (segundo) – existem montes de casos em que letras e números são usados em conjunto.
Sempre gostei de verificar que, no que respeita à língua portuguesa, o primeiríssimo choro de um bebé é correspondente ao primeiro número e à primeira letra. É um bom começo, diga-se, que infelizmente se vem na generalidade a perder no futuro. Esse choro é, todos sabemos, um a! um a! um a!
Para problemas ligados a questões respiratórias que podem denunciar primo-infecções pulmonares, tuberculose e outras maleitas mais ou menos graves, o médico português pede ao seu doente para dizer 33. É um número que faz ressoar toda a caixa toráxica. Porém, se traduzido directamente para inglês, o 33 ficar-se-ia apenas pela garganta. Daí que a medicina inglesa tenha preferido o 99 (ninety-nine), muito mais ressoante ao estetoscópio.
A introdução de números nas frases, imprimindo um significado próprio que os interlocutores compreendem bem é um assunto quase inesgotável. Parece-me que os números mais escolhidos andam mais pelos mil do que pelas centenas, pelos trinta mais do que pelos quarenta, pelo sete e seus múltiplos mais do que pelo dois, e pelo três e seus múltiplos mais do que pelo quatro. Vejamos alguns exemplos.
O António só chega lá para as quinhentas!
O João Miguel é um indivíduo das arábias. Sabe fazer mil e uma coisas.
Dei mil tratos à cabeça, mas não consegui encontrar uma saída.
O novo empregado que contratámos é pouco mais do que um zero à esquerda.
Ele arranjou um bom 31 quando se meteu com a moça do alterne.
O pior é que ela não vai com um 31 de boca.
No fundo, a Carolina é assim: ou oito ou oitenta.
(O oito foi considerado por muitos o número ideal de pessoas para viver em grupo auto-suficiente. Da perfeição ao caos, do oito ao oitenta.)
O puto é meio maluco. Faz trinta por uma linha.
Três é a conta que Deus fez.
(A rimazinha, mai-la Santíssima Trindade, ajuda a que o dito comum seja visto como verdade indesmentível.)
Lá vão os Bobones para a festa, todos cheios de nove horas.
A Elisa anda sempre a nove.
(Esta expressão foi tirada dos eléctricos da cidade, que andam a nove (pontos ou dentes da roda do volante) quando seguem no máximo da velocidade.)
Ela anda sempre a cem à hora.
O velhote é como os gatos. Tem sete foles. (fôlegos)
. (Em inglês teria nove vidas.)
Os pecados mortais são sete. (Um a cometer em cada dia da semana.).
O ladrão fugiu a sete pés.
Ele faz isto e aquilo, e o diabo a sete.
Em Julho, vamos escolher as novas sete maravilhas do mundo.
O príncipe percorreu as sete partidas do mundo.
Costeau viajou pelos sete mares.
Na ilha de S. Miguel, Açores, visita-se sempre a Lagoa das Sete Cidades.
As sete saias das nazarenas estão ligadas às sete ondas do mar.
A bandeira portuguesa ostenta sete castelos conquistados aos mouros.
A Branca de Neve vive acompanhada pelos seus sete anões.
O Jorge é um tipo dos sete ofícios.
O Sérgio é o homem dos sete instrumentos.
Tal como Roma, Istambul, San Francisco e Cincinatti, Lisboa tem sete colinas.
O Hélder está agora nas suas sete quintas.
Ela sentiu-se no sétimo céu.
Quando não entendemos bem uma coisa, podemos fazer dela um bicho-de-sete-cabeças.
Os rapazes pareciam sete cães a atirar-se a um osso.
Depois de uma vida rica de deboche, a Kyrinova jaz neste momento sob sete palmos de terra.

Agora só me resta fechar este apanhado a sete chaves antes que chegue o Mata-Sete, com as suas botas de sete léguas e sete pedras na mão!

3/19/2007

Duas pontes


Juntamente com uma dúzia de amigos, dei este fim-de-semana uma saltada a Castelo de Paiva. Não ia lá há mais de duas décadas. Castelo de Paiva saltou para as colunas da imprensa há seis anos devido à trágica derrocada de uma ponte sobre o Douro, que ceifou a vida a dezenas de pessoas que seguiam num autocarro. Das 59 vítimas que se registaram não foram resgatadas mais do que 23. No local onde a ponte antiga entrava na margem sul do rio foi erigida uma enorme estátua do Anjo de Portugal, que no dia 4 deste mês – aniversário da tragédia - foi verdadeiro ponto de romaria para centenas de pessoas que, à hora exacta em que o acidente ocorreu, lançaram inúmeras flores ao rio.
Após a queda da ponte, Castelo de Paiva voltou aos grandes títulos através do fecho de multinacionais e consequente desemprego de dezenas de trabalhadores.
A vila, como tantas outras por esse Portugal fora, não parece a mesma. Cresceu em múltiplos aspectos: tem muitos edifícios mais, possui uma escola secundária com bons espaços, um bom pavilhão desportivo, piscinas, e moradias com óptimo aspecto, ajardinadas e embelezadas com magnólias de flor roxa ou branca, cameleiras e rododendros.
Sobre a vida mais profunda da vila não consegui, no entanto, saber muito. O visitante fica-se frequentemente pelas rotas panorâmicas, pelas descobertas gastronómicas e, a não ser que seja jornalista e tenha encontros marcados com pessoas informadas, fica mais com uma impressão superficial do que com um conhecimento aprofundado.
Mesmo assim, pareceu-me haver de tudo naquela terra, situada relativamente perto do rio de águas por vezes turbulentas - boas para rafting - que lhe dá o nome: o Paiva. Muitas das casas mantêm-se modestas, com granito austero a garantir a sua continuidade. A população vive muito do comércio e da agricultura, da qual sobressaem os vinhos verdes. Não vi grandes complexos industriais, mas gostei de encontrar um interessante espírito associativista, pragmático na sua acção. Na praça principal, três bancos alinham-se ao lado uns dos outros, na mesma ala em que se encontra a Câmara Municipal. Terra de sobe-e-desce, parece calma, mas conterá decerto vários dramas e angústias dentro das suas portas. Uma delas surge agora através de questões relacionadas com o atendimento dos serviços de saúde, "doença" que aliás atinge muitas outras populações portuguesas neste momento. Lá fala-se na criação de uma Empresa Municipal de Saúde
Quanto à ponte que ruiu, foi entretanto substituída por duas outras, como a fotografia (tirada do monte de S. Gens) mostra. Fica assim assegurada uma passagem rápida entre as duas margens do Douro, perto do local onde o fogoso Tâmega vai engrossar as águas do Douro na sua corrida até à cidade do Porto.

Embora tenha sido curta e eventualmente gastronómica em excesso - com deliciosos nacos de carne na pedra, um arroz de lampreia confeccionado por especialistas, um excelente cabrito no forno e um leitão super, tudo regado com bons vinhos! – a ida a Castelo de Paiva valeu certamente a pena. Dar uma escapadela da cidade de Lisboa é sempre uma bênção.

3/14/2007

Museu de Salazar


Nas últimas semanas, gerou-se alguma celeuma relativamente à criação de um museu dedicado a Salazar na terra onde ele nasceu: Santa Comba Dão. Nomeadamente, tem havido intelectuais de esquerda a insurgir-se contra a criação desse museu. Sempre me custou ver calar grupos minoritários, porque a verdadeira essência da democracia não consiste apenas no governo da maioria mas, mais ainda, na possibilidade de expressão das minorias. Sob este aspecto, não considero ilegítimo que seja criado pelos conterrâneos apoiantes de Salazar um museu dedicado ao homem que, afinal, acabou por colocar a localidade de Santa Comba, sobranceira ao rio Dão, no mapa deste país.
Levanta-se, porém, uma questão: quem vai financiar o museu? Dinheiros públicos? Aqui é que me parece dever residir o fulcro da polémica. Se os dinheiros forem privados, como suponho ser o caso do Museu do Caramulo, naquela zona, propriedade da Fundação Abel Lacerda, não vejo razão para levantar qualquer óbice. Se, no entanto, o Museu Salazar ficar inserido na rede nacional de museus e for financiado como tal, aí é muito duvidoso que a maioria dos portugueses esteja de acordo. Mesmo assim, existiria uma solução possível: a realização de um referendo à escala do concelho de Santa Comba. Se desse referendo resultasse um voto positivo, a autarquia poderia passar a financiar o museu, porque dele também sairiam possivelmente proveitos que possibilitassem a sua sustentabilidade.
Para a esquerda, criar mártires é, no fundo, contraproducente. Não houve imperador romano que mais fortalecesse o cristianismo do que Diocleciano, que mandou torturar e matar numerosos adeptos fervorosos do cristianismo, que hoje enfileiram a hagiografia cristã. A democracia não é só uma palavra para usar. É, principalmente, um conceito para aplicar.

3/11/2007

Conflito de gerações?

Num país como o nosso, em que a lamúria pessoal é mais frequente do que as manifestações de contentamento, será que pode dizer-se que, afinal, a geração que está hoje entre os 55 e os 70 anos foi e continua a ser privilegiada?
Numa interessante reportagem que tive oportunidade de ler no último número da Newsweek, encontrei 64 por cento dos europeus a considerar que a vida dos actuais adolescentes será, quando forem adultos, mais dura que a da geração anterior. Só 17 por cento crêem que será mais fácil. Os grandes problemas serão, segundo a sondagem, em primeiro lugar o desemprego (40% dos europeus vêem-no como o problema número 1). O segundo, as pensões de reforma (30%). Em terceiro lugar, vem o custo de vida (26%).
Os nossos filhos vão odiar-nos é o título de um livro saído há dois meses em França, escrito por dois autores na casa dos 60. E porque haverá isso de suceder? Uma outra sondagem recentemente conduzida em França provou que apenas 5 por cento dos jovens acreditam que irão ter maiores possibilidades de sucesso do que os seus pais. Vêem-se como a geração IPOD (Insegurança, Pressão, Ónus fiscal, Dívidas (nomeadamente contraídas na aquisição de habitação). No passado, economias dinâmicas como as da Alemanha, França, Inglaterra, Holanda e Bélgica, garantiram a toda uma geração empregos seguros e pensões generosas na reforma. O problema é que as mesmas regras laborais que protegeram e protegem os trabalhadores de meia-idade fecham as portas a muitos dos jovens. Não terá sido de propósito que a geração anterior fez isso, mas é um facto que agora também não parece disposta a abrir mão dos seus benefícios.
Em vários países, há numerosos trabalhadores que decidiram aproveitar-se das suas generosas pensões de reforma e saíram definitivamente do mercado de trabalho. Na Bélgica, não há mais do que 33 por cento dos indivíduos com mais de 55 anos que continuam efectivamente a trabalhar. Isto leva a que se possa concluir que muitos deles estão, afinal, a levar muito o estilo de vida geralmente atribuído aos jovens.
Enquanto isso, existem inúmeros rapazes e raparigas, detentores de bons cursos e certamente mais bem preparados academicamente do que os seus pais alguma vez foram, que labutam em vão à cata de bons empregos, que só uma pequena percentagem logra alcançar.
Note-se, entretanto, que a situação não é idêntica em toda a Europa, pois os países têm os seus diferentes estádios de desenvolvimento. Assim, poderá dizer-se que presentemente tanto a Irlanda como a Espanha conseguem manter-se fora deste imbróglio dos empregos. Em ambos estes países, os jovens viverão em regra até melhor do que os seus pais. Mas num grande número de outras nações da UE, as tendências são preocupantes. Registe-se, por exemplo, que em Itália 45 por cento dos indivíduos com idades compreendidas entre os 30 e os 34 anos continuam a usar a velha cama da casa dos pais. Porquê? Bem, à falta de empregos bem pagos, os jovens vêem-se obrigados a recorrer à generosidade dos seus progenitores. Esta é uma situação que poderá ser sustentável para uma classe média, mas que decerto causa um sem-número de problemas a quem é mais pobre. O progresso que costumava vir do Estado vem agora da solidariedade familiar.
Não se tratará, por enquanto pelo menos, de uma situação de conflito geracional. Aparentemente, os jovens não pretendem que os benefícios de que os seus pais auferiram ou auferem sejam diminuídos. Reclamam apenas o mesmo tratamento para si próprios. À la longue, porém, não é impossível que a situação evolua noutro sentido.

3/07/2007

Serão as mudanças tecnológicas mais desfrutadas pelos mais velhos ou pelos mais novos?

Já me tenho colocado esta questão mais do que uma vez. À primeira vista, parecerá que os mais novos as desfrutam mais do que os mais velhos. Pensando melhor, talvez cheguemos a uma conclusão diferente. Comecemos por definir aquilo de que estamos a falar. Os mais novos serão as pessoas até aos 25 / 30 anos de idade. Os mais velhos serão os de 55 / 60 para a frente. A questão que levanto não é de nível quantitativo - quantas e quais as pessoas que utilizam novos meios tecnológicos - mas sim de carácter qualitativo: quem tira maior prazer, quem mais os desfruta. É isso, aliás, o que o título questiona.
Muito embora nestes casos seja difícil de encontrar um instrumento medidor de precisão, creio que a resposta se inclina para o lado dos mais velhos. Porquê?
Tomemos um indivíduo que, vindo sedento do deserto, tem alguém a oferecer-lhe uma gota de água. Não será maior o prazer com que ele se dessedenta do que o de uma outra pessoa que, mecanicamente, bebe um copo de água num café ou numa esplanada? Será que o prazer da liberdade é o mesmo para quem viveu longos anos sem ela que para outro que já nasceu dentro dela? Na vida, vamos, consciente ou inconscientemente, estabelecendo comparações com base no passado que já vivemos. Daí que, para quem sempre dormiu numas tábuas durinhas, uma cama fofa tenha outro gosto do que para quem sempre dormiu numa assim.
Aquele que se lembra das muitas horas que passou a matraquear stencils, tendo de permeio de corrigi-los em vários passos com verniz corrector de cheiro activo, aprecia com certeza muito mais as fáceis fotocópias de hoje do que outro que sempre usou fotocópias. E quem utilizou papel químico para tirar cópias ainda tira possivelmente mais gosto. Quem se lembra de ter que inutilizar por vezes uma folha quase inteira de papel passada à máquina por causa de um erro grave e se ver obrigado a começar tudo de novo, decerto que aprecia imenso a função delete do computador, que, para quem nunca conheceu outra ferramenta, não passará de uma mera função como qualquer outra. Ter a possibilidade de estar a trabalhar ao computador e ouvir música "minimizada" é um regalo para quem se lembra de outros tempos bem mais árduos. E mandar e-mails que chegam à América e ao Japão num abrir e fechar de olhos, permitindo uma resposta logo ali na viragem da auto-estrada em vez de na volta do correio, apenas duas ou três semanas depois? E a maravilha do telemóvel, tão displicentemente usado nesta sociedade da abundância, que recordações de dificuldades atrozes de comunicação não traz aos mais velhos?
A lista poderia continuar indefinidamente com as fotografias a preto-e-branco, a cores e as digitais, que nem precisam da casa fotográfica para revelação. E com a televisão a transmitir programas 24 horas por dia. E com cábulas a serem passadas por SMS em telemóvel em vez dos habituais papelinhos. E tantas, tantas outras coisas!Um animal que nasceu no Jardim Zoológico não se sente tão privado de liberdade como aquele que nasceu na selva e um dia lá foi colocado com residência permanente. Tudo isto me leva a dizer que o prazer dos mais velhos na utilização das mil e uma novas invenções de hoje é superior ao sentido pelos mais novos. Estarei certo?