1/08/2008

Sem título

A realidade choca-nos. Sabermos de crianças estropiadas em África, de misérias sociais no nosso bairro, vermos na rua mulheres incrivelmente desdentadas e sem dinheiro para irem ao dentista, depararmo-nos com drogados que vagabundeiam à nossa frente e quebram parquímetros para retirar meia dúzia de moedas, tudo isso é confrangedor. A realidade choca-nos. E choca-nos porque, conjuntamente com esses aspectos, vemos óptimos automóveis nas ruas, sabemos de festas espampanantes, lemos sobre viagens de sonho a países exóticos, deparamos com zonas de esplêndidas moradias e chegam-nos aos ouvidos lucros fabulosos de empresas que, em quantidade muito apreciável, vão parar directamente aos bolsos de uns poucos administradores.
Quando se diz que a realidade nos choca, há que juntar que a realidade nos cansa. Muito. Ler o primeiro parágrafo deste post terá sido penoso para os que a isso se abalançaram. Quem é gosta de ler sobre desgraças, o caos, as diferenças sociais? Como quem lê este texto não está decerto incluído nos socialmente excluídos, vê os seus olhos esbarrarem contra uma parede pintada com cores desagradáveis, que lhe fazem desviar o olhar, tal como o desviamos normalmente de um anúncio que apresente uma mulher velha e feia, ao contrário de um outro que nos mostre uma bela jovem de sorriso atraente. É humano, dir-se-á. Concordo. E desumano ao mesmo tempo. (É aqui que em inglês se fala em human, no primeiro sentido, e em humane, no segundo).
Dado que a realidade nos choca, há que fugir dela. Os condomínios cercados de gradeamentos e com um apertado controlo à porta são uma maneira de fugir de muita dessa realidade. São também, é certo, sintoma de uma sociedade desequilibrada, pois o ideal seria podermos sair de casa e deixar a chave na porta, como ainda cheguei a encontrar em várias povoações dos Açores e, parece, ainda sucede nalgumas localidades do Canadá. Oxalá se mantenha em muitos outros locais.
Uma maneira diferente, menos física, de escapar a essa realidade é falar de futuros risonhos e ignorar ou colorir o presente. "Bem-aventurados os pobres, porque deles será o reino dos céus", uma conhecida expressão da doutrina cristã, não é, note-se, uma condenação dos ricos - embora seja "mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no (mesmo) reino dos céus". "Bem-aventurados os pobres" passou a ser visto pela maioria dos pobres unicamente como um sedativo e uma tentativa de manter as pessoas infantilizadas. Com o desenvolvimento da educação, a quebra da religiosidade e o poder de voto dos pobres igual ao dos ricos em termos numéricos, a situação alterou-se. Presentemente, quando um governante afirma que "a redução do número de pobres em Portugal será da ordem dos 50 por cento em 2020", ele já encontra um muro de indiferença. O povo encontra cada vez menos consolação nas palavras de um sacerdote. Isto torna a vida mais difícil e penosa para os excluídos, mas quanto maior for a diferença entre ricos e pobres, maior será a sua auto-justificação pessoal para crimes que normalmente não seriam cometidos se as pessoas não estivessem revoltadas contra o status quo.
Como sair daqui?

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