7/31/2008
Tréguas
A família chama-me para uns dias fora da cidade de Lisboa. Espero que, antes e depois do seu raid europeu, a Ariadne não deixe o "az" sem notícias. Entretanto, aos que estão de férias, carpe diem!
7/27/2008
Le portefeuille
O único tio que tive do meu lado materno era um homem pragmático, empreendedor e com talento especial para fazer bons negócios. Além disso, entendia o valor da educação, a qual prezava muito. Nunca ninguém como ele me falou tanto da educação como um óptimo investimento. "Tirar uma especialidade e saber línguas estrangeiras pode ser precioso", dizia-me ele, que falava apenas português mas tinha essa ideia enraizada.
Esta breve introdução parecerá decerto ridícula e desajustada mas foi a que me ocorreu imediatamente a seguir ao caso que vou contar. Quem ler este post poderá hesitar ante o significado de portefeuille, palavra que surge no título. Também não é vocábulo que eu use todos os dias, mas conheço-o. No outro dia foi-me extremamente útil. A um amigo que não tinha tido possibilidade de ver uma exposição de Malhoa nas Belas Artes ofereci-me para lá ir e tirar umas tantas fotografias. A exposição estava no seu último dia e quase a fechar. Apressei-me, agarrei na máquina, que encafuei num saco da fnac, e fui direito ao Metro. Como passava um pouco das sete horas, havia bastante gente na gare da estação da Alameda. Desci as escadas a correr para apanhar um comboio que estava a chegar. Desceram também comigo a escada uns turistas franceses, que no entanto, à vista daquela pequena multidão, preferiram esperar pelo próximo transporte. Foi deles, postados na gare, que ao entrar na carruagem ouvi um grito repetido pelo menos três vezes: "Votre portefeuille! Le portefeuille!"
Admito que hoje o francês já não é para mim a língua fluente que outrora foi. Confesso até que o ouvir a palavra portefeuille me suscitou mais dúvidas do que certezas. Numa questão de segundos, porém, lembrei-me: "A carteira!" Podiam estar a falar para mim. Meti automaticamente a mão esquerda no bolso onde trazia algum dinheiro e um cartão Multibanco. Para minha surpresa, encontrei lá dentro uma outra mão. Não era uma situação normal. Alguém a quem essa mão pertencia estava atrás de mim no meio daquelas pessoas todas que queriam entrar. Ainda por cima eu transportava na mão direita o saco com a máquina fotográfica e, no braço, um pullover. Não conseguindo olhar para trás, agarrei firmemente na mão estranha que estava dentro do meu bolso e, com um safanão mais forte, arrastei o seu proprietário para dentro da carruagem. Entretanto, a porta fechou-se.
Decidi então puxar para fora a mão que tinha encontrado no meu bolso esquerdo e olhei de frente para a pessoa: um sujeito baixo dos seus quarenta anos, com o bigodinho malandro dos suspeitos-do-costume, bem-falante e, como é habitual nestes casos, devidamente acompanhado por um cúmplice um pouco mais velho. O cómico da situação foi que as duas mãos retiradas do bolso, a dele e a minha, nem por isso ficaram totalmente separadas. O ladrãozinho do Metro usava à volta do pulso uma daquelas tiras de pano coloridas, que se crê darem sorte a quem as usa. Ora, como a bracelete de metal do meu relógio tem, desde há algum tempo, um arreliador espigão que saiu ligeiramente do sítio devido, o dito espigão entrou decididamente na tira de pano do meu colega-de-bolso e lá ficou enredado. Depois, só a paciência e a arte do ladrãozinho é que, meticulosamente, conseguiram extricar o espigão metálico da fitinha-da-sorte sem danificar grandemente esta última.
No meio daquela operação, e com pessoas a entrar e a sair, o pullover que eu trazia no braço a certa altura caiu. Aí foi a vez do cúmplice levantá-lo e colocar-mo de volta no braço com toda a deferência. Agradeci.
Tendo-me previamente certificado pelo tacto de que nada me tinha sido roubado, ainda tive tempo de, até à paragem seguinte, já a do Intendente, lhe dizer o óbvio e perguntar se era um habitué da esquadra da polícia. Com a maior frieza do mundo, ele respondeu-me que eu estava totalmente enganado. Por quem o tomava? Uma senhora que estava por detrás fazia-me sinal para eu não dizer mais nada porque poderia ser perigoso. A porta do comboio entretanto abriu-se, os dois homens saíram e eu continuei a minha viagem para as fotografias nas Belas Artes, que por acaso até saíram bem.
Se o meu francês não me tivesse permitido decifrar rapidamente o significado da palavra-código portefeuille, eu não teria esta história para contar. E, com certeza, não teria também nem o dinheiro que na altura trazia comigo nem o meu cartão Multibanco. O tal investimento na educação de que o meu tio tanto me falou acabava, mais uma vez, de produzir os seus frutos.
P.S. Ah, é verdade! Se eu pensava comprar outra bracelete para o relógio, já desisti da ideia. Quem sabe se aquele espigão não vai voltar a ser útil?
Esta breve introdução parecerá decerto ridícula e desajustada mas foi a que me ocorreu imediatamente a seguir ao caso que vou contar. Quem ler este post poderá hesitar ante o significado de portefeuille, palavra que surge no título. Também não é vocábulo que eu use todos os dias, mas conheço-o. No outro dia foi-me extremamente útil. A um amigo que não tinha tido possibilidade de ver uma exposição de Malhoa nas Belas Artes ofereci-me para lá ir e tirar umas tantas fotografias. A exposição estava no seu último dia e quase a fechar. Apressei-me, agarrei na máquina, que encafuei num saco da fnac, e fui direito ao Metro. Como passava um pouco das sete horas, havia bastante gente na gare da estação da Alameda. Desci as escadas a correr para apanhar um comboio que estava a chegar. Desceram também comigo a escada uns turistas franceses, que no entanto, à vista daquela pequena multidão, preferiram esperar pelo próximo transporte. Foi deles, postados na gare, que ao entrar na carruagem ouvi um grito repetido pelo menos três vezes: "Votre portefeuille! Le portefeuille!"
Admito que hoje o francês já não é para mim a língua fluente que outrora foi. Confesso até que o ouvir a palavra portefeuille me suscitou mais dúvidas do que certezas. Numa questão de segundos, porém, lembrei-me: "A carteira!" Podiam estar a falar para mim. Meti automaticamente a mão esquerda no bolso onde trazia algum dinheiro e um cartão Multibanco. Para minha surpresa, encontrei lá dentro uma outra mão. Não era uma situação normal. Alguém a quem essa mão pertencia estava atrás de mim no meio daquelas pessoas todas que queriam entrar. Ainda por cima eu transportava na mão direita o saco com a máquina fotográfica e, no braço, um pullover. Não conseguindo olhar para trás, agarrei firmemente na mão estranha que estava dentro do meu bolso e, com um safanão mais forte, arrastei o seu proprietário para dentro da carruagem. Entretanto, a porta fechou-se.
Decidi então puxar para fora a mão que tinha encontrado no meu bolso esquerdo e olhei de frente para a pessoa: um sujeito baixo dos seus quarenta anos, com o bigodinho malandro dos suspeitos-do-costume, bem-falante e, como é habitual nestes casos, devidamente acompanhado por um cúmplice um pouco mais velho. O cómico da situação foi que as duas mãos retiradas do bolso, a dele e a minha, nem por isso ficaram totalmente separadas. O ladrãozinho do Metro usava à volta do pulso uma daquelas tiras de pano coloridas, que se crê darem sorte a quem as usa. Ora, como a bracelete de metal do meu relógio tem, desde há algum tempo, um arreliador espigão que saiu ligeiramente do sítio devido, o dito espigão entrou decididamente na tira de pano do meu colega-de-bolso e lá ficou enredado. Depois, só a paciência e a arte do ladrãozinho é que, meticulosamente, conseguiram extricar o espigão metálico da fitinha-da-sorte sem danificar grandemente esta última.
No meio daquela operação, e com pessoas a entrar e a sair, o pullover que eu trazia no braço a certa altura caiu. Aí foi a vez do cúmplice levantá-lo e colocar-mo de volta no braço com toda a deferência. Agradeci.
Tendo-me previamente certificado pelo tacto de que nada me tinha sido roubado, ainda tive tempo de, até à paragem seguinte, já a do Intendente, lhe dizer o óbvio e perguntar se era um habitué da esquadra da polícia. Com a maior frieza do mundo, ele respondeu-me que eu estava totalmente enganado. Por quem o tomava? Uma senhora que estava por detrás fazia-me sinal para eu não dizer mais nada porque poderia ser perigoso. A porta do comboio entretanto abriu-se, os dois homens saíram e eu continuei a minha viagem para as fotografias nas Belas Artes, que por acaso até saíram bem.
Se o meu francês não me tivesse permitido decifrar rapidamente o significado da palavra-código portefeuille, eu não teria esta história para contar. E, com certeza, não teria também nem o dinheiro que na altura trazia comigo nem o meu cartão Multibanco. O tal investimento na educação de que o meu tio tanto me falou acabava, mais uma vez, de produzir os seus frutos.
P.S. Ah, é verdade! Se eu pensava comprar outra bracelete para o relógio, já desisti da ideia. Quem sabe se aquele espigão não vai voltar a ser útil?
7/25/2008
Xcrita correta
O encadernador dos meus Escritos - sempre em três exemplares, um para cada um dos meus filhos e o terceiro para mim - é um óptimo profissional e, como mora na mesma rua que eu, faz o favor de mos trazer a casa. Hoje recebi mais um volume (neste momento a conta atingiu o número 7). É algo que constitui sempre para mim uma alegria muito especial. Trata-se, fundamentalmente, de uma passagem de testemunho para os meus filhos e para os meus netos. Contudo, admito que eu próprio não desprezo folhear de quando em vez, durante uns cinco ou dez minutos, um ou outro volume mais antigo, com textos em prosa ou em verso de que já não me recordo totalmente.
Procuro, como é natural, que a compilação que faço desses escritos dispersos seja mais sobre temas sem tempo do que sobre factos datados, mas é óbvio que alguns destes acabam por ser também incluídos. Tento escrever de maneira simples e escorreita, sem parágrafos longos ou palavras mal grafadas.
É aqui que me detenho agora para desabafar algo que me oprime. Quer eu queira, quer não, ao lerem esses textos os meus netos acharão esquisita - e errada - alguma da minha ortografia. De repente, devido ao enorme disparate que constitui a promulgação do novo acordo por parte de Portugal, do ponto de vista da ortografia todos os meus textos vão surgir aos olhos dos meus netos um pouco como sucede a qualquer português que hoje reage à grafia brasileira. Isso causa-me natural pena.
Esta é, porém, uma parte ínfima do problema De repente, as múltiplas centenas de livros em português que fazem parte da minha biblioteca passam a estar "gatadas". A quase totalidade dos livros que consultarei na Biblioteca Nacional e noutras trarão inevitavelmente a ortografia antiga, i.e. estarão errados em centenas de palavras. Porquê? Para quê? Com que vantagem ousaremos nós desperdiçar o imenso valor dos milhares e milhares de livros que enchem as prateleiras das bibliotecas escolares - desde o ensino básico até ao superior? Ou será que os vamos manter em instituições deste tipo com ortografia incorrecta? Porquê estas profundas modificações agora? "Foi você quem pediu este acordo?"
Porque gosto do meu país, foi nele que decidi viver. Mas por vezes chego a envergonhar-me. Afinal, talvez seja por casos como este que muitos compatriotas meus procuram uma compensatória consolação num mitificado passado glorioso da sua nação. Com a actual superficialidade do pensamento dominante que provoca como que uma auto-mutilação de relevantes raízes culturais, a forma permissiva como este país está a ser governado não enche de orgulho os seus filhos. Assim, torna-se facilmente entendível a abissal queda de valores éticos, a política do salve-se quem puder e do vale-tudo, a desconfiança na própria justiça e a desonestidade do muito que se passa no domínio da educação.
Embora esta decisão só a mim diga respeito, não quero deixar de anunciar neste blogue, no qual espero continuar a colaborar, que as inúmeras alterações aberrantes que emanam do acordo ortográfico luso-tropical me levam a não pactuar com as novas regras, da maioria das quais discordo frontalmente. Passarei, pela primeiríssima vez na minha vida, a escrever com erros de grafia, mas será com toda a consciência que o faço. Prefiro não ser tribalizado. Sou, aliás, livre de escrever como quero. Em minha opinião, um acordo desta ordem é ultrajante para Portugal. Neste sentido, ninguém poderá forçar-me a sentir-me constantemente ultrajado através da forma daquilo que escrevo.
Se me disserem que as crianças que vão entrar para o ensino básico depressa se habituarão, acredito piamente. É claro que sim. Sucede-lhes o mesmo que aos animais selvagens que já nasceram no Zoo: nunca viram a beleza da selva ou sentiram o verdadeiro prazer da liberdade de quem anda totalmente à solta no seu mundo natural. Não sofrem. A minha reacção, tal como a de tantas outras pessoas que conheço, não é de maneira nenhuma à mudança, que essa eu aceitaria de bom grado se tivesse lógica e fundamento. É à privação do sentido real da língua, à castração das raízes, à desculturação que pode ser pragmática mas que, em última análise, é perfeitamente estúpida e, ainda por cima – pressinto – muito mais prejudicial do que benéfica.
Procuro, como é natural, que a compilação que faço desses escritos dispersos seja mais sobre temas sem tempo do que sobre factos datados, mas é óbvio que alguns destes acabam por ser também incluídos. Tento escrever de maneira simples e escorreita, sem parágrafos longos ou palavras mal grafadas.
É aqui que me detenho agora para desabafar algo que me oprime. Quer eu queira, quer não, ao lerem esses textos os meus netos acharão esquisita - e errada - alguma da minha ortografia. De repente, devido ao enorme disparate que constitui a promulgação do novo acordo por parte de Portugal, do ponto de vista da ortografia todos os meus textos vão surgir aos olhos dos meus netos um pouco como sucede a qualquer português que hoje reage à grafia brasileira. Isso causa-me natural pena.
Esta é, porém, uma parte ínfima do problema De repente, as múltiplas centenas de livros em português que fazem parte da minha biblioteca passam a estar "gatadas". A quase totalidade dos livros que consultarei na Biblioteca Nacional e noutras trarão inevitavelmente a ortografia antiga, i.e. estarão errados em centenas de palavras. Porquê? Para quê? Com que vantagem ousaremos nós desperdiçar o imenso valor dos milhares e milhares de livros que enchem as prateleiras das bibliotecas escolares - desde o ensino básico até ao superior? Ou será que os vamos manter em instituições deste tipo com ortografia incorrecta? Porquê estas profundas modificações agora? "Foi você quem pediu este acordo?"
Porque gosto do meu país, foi nele que decidi viver. Mas por vezes chego a envergonhar-me. Afinal, talvez seja por casos como este que muitos compatriotas meus procuram uma compensatória consolação num mitificado passado glorioso da sua nação. Com a actual superficialidade do pensamento dominante que provoca como que uma auto-mutilação de relevantes raízes culturais, a forma permissiva como este país está a ser governado não enche de orgulho os seus filhos. Assim, torna-se facilmente entendível a abissal queda de valores éticos, a política do salve-se quem puder e do vale-tudo, a desconfiança na própria justiça e a desonestidade do muito que se passa no domínio da educação.
Embora esta decisão só a mim diga respeito, não quero deixar de anunciar neste blogue, no qual espero continuar a colaborar, que as inúmeras alterações aberrantes que emanam do acordo ortográfico luso-tropical me levam a não pactuar com as novas regras, da maioria das quais discordo frontalmente. Passarei, pela primeiríssima vez na minha vida, a escrever com erros de grafia, mas será com toda a consciência que o faço. Prefiro não ser tribalizado. Sou, aliás, livre de escrever como quero. Em minha opinião, um acordo desta ordem é ultrajante para Portugal. Neste sentido, ninguém poderá forçar-me a sentir-me constantemente ultrajado através da forma daquilo que escrevo.
Se me disserem que as crianças que vão entrar para o ensino básico depressa se habituarão, acredito piamente. É claro que sim. Sucede-lhes o mesmo que aos animais selvagens que já nasceram no Zoo: nunca viram a beleza da selva ou sentiram o verdadeiro prazer da liberdade de quem anda totalmente à solta no seu mundo natural. Não sofrem. A minha reacção, tal como a de tantas outras pessoas que conheço, não é de maneira nenhuma à mudança, que essa eu aceitaria de bom grado se tivesse lógica e fundamento. É à privação do sentido real da língua, à castração das raízes, à desculturação que pode ser pragmática mas que, em última análise, é perfeitamente estúpida e, ainda por cima – pressinto – muito mais prejudicial do que benéfica.
7/21/2008
Carro na inspecção
Foi só no outro dia que me apercebi que levar o automóvel à inspecção é um pouco como ir à igreja com uma boa série de pecados e aguardar ansiosamente pela absolvição no final.
Num centro de inspecções periódicas (C.I.) não há carros verdadeiramente novos: esses estão isentos durante os seus primeiros quatro anos de vida. Depois, até aos 8, vão apenas de dois em dois anos, pelo que a grande massa de viaturas que se encontra num C.I. se apresenta com uma saca enorme carregada de pecados, traduzidos em muitos quilómetros percorridos, motores a funcionar já sem a energia da juventude, umas tantas amolgadelas e muitos riscos na pintura.
A meu lado, esfregando as mãos para esconder o nervosismo que o invade, o já idoso proprietário de um Honda fala ininterruptamente com o funcionário que lhe examina o veículo. Elogia a sua máquina, fala dela como se de uma namorada se tratasse, explica por que razão a mantém já há tantos anos e esclarece quantas centenas de euros gasta regularmente para a manter afinada. Fala alto e entrecorta a sua explicação com risadinhas nervosas que não consegue disfarçar. O inspector continua imperturbável no exame da viatura. Não creio que tenha ouvido nem um quarto da lenga-lenga que o indivíduo de cabelos brancos expressamente lhe dirige. Nem podia. Tendo em consideração os habituais padrões portugueses, a inspecção é mesmo rigorosa. Quem olhar para a folha com tabelas de um lado e do outro assinaladas a cores diferentes para testar o correcto funcionamento de uma infinidade de itens e, ao mesmo tempo, vir a provecta idade de alguns daqueles automóveis, chegará de pronto à conclusão de que só um milagre celestial é que pode permitir que passem minimamente em todos aqueles testes. Os faróis têm que farolar, os piscas que piscar, o motor não pode ir abaixo, os pneus devem permitir a boa aderência da viatura à estrada, o escape não pode ser barulhento nem ter fugas, as luzes de nevoeiro, tanto as dianteiras como as traseiras, têm que funcionar na perfeição, tal como os stops e a luz avisadora de marcha-atrás.
"Está tudo bem?", perguntam os proprietários ansiosamente, mais com fé do que com verdadeira credulidade. "Mais ou menos." A indecisão dos inspectores mantém-se até ao final. O seu veredicto é inapelável. Quando finalmente termina o exame, depois da saída do veículo do seu lugar sobre uma fossa ou no alto de um elevador que permite toda a visão da parte de baixo do chassis e do resto, o inspector recolhe ao silêncio do seu gabinete. São três as hipóteses: a melhor é o almejado "Aprovado", tout court. "Aprovado com reservas" é outra possibilidade. Nesse caso, o proprietário é vivamente aconselhado a mandar reparar um ou dois itens, que não são no entanto tão relevantes para o bom funcionamento do automóvel em condições de segurança que o impeçam de andar na estrada. Na terceira hipótese, comum, o veículo deverá voltar dentro do período de um mês à inspecção, mas apenas para que determinadas partes sejam testadas de novo. Se então passar, "até para o ano!" Caso contrário, a viatura perde a licença de circulação. Este acaba por ser um caso mais raro, afinal. A absolvição em Portugal sempre foi o que prevaleceu. Há costumes que se mantêm brandos.
Num centro de inspecções periódicas (C.I.) não há carros verdadeiramente novos: esses estão isentos durante os seus primeiros quatro anos de vida. Depois, até aos 8, vão apenas de dois em dois anos, pelo que a grande massa de viaturas que se encontra num C.I. se apresenta com uma saca enorme carregada de pecados, traduzidos em muitos quilómetros percorridos, motores a funcionar já sem a energia da juventude, umas tantas amolgadelas e muitos riscos na pintura.
A meu lado, esfregando as mãos para esconder o nervosismo que o invade, o já idoso proprietário de um Honda fala ininterruptamente com o funcionário que lhe examina o veículo. Elogia a sua máquina, fala dela como se de uma namorada se tratasse, explica por que razão a mantém já há tantos anos e esclarece quantas centenas de euros gasta regularmente para a manter afinada. Fala alto e entrecorta a sua explicação com risadinhas nervosas que não consegue disfarçar. O inspector continua imperturbável no exame da viatura. Não creio que tenha ouvido nem um quarto da lenga-lenga que o indivíduo de cabelos brancos expressamente lhe dirige. Nem podia. Tendo em consideração os habituais padrões portugueses, a inspecção é mesmo rigorosa. Quem olhar para a folha com tabelas de um lado e do outro assinaladas a cores diferentes para testar o correcto funcionamento de uma infinidade de itens e, ao mesmo tempo, vir a provecta idade de alguns daqueles automóveis, chegará de pronto à conclusão de que só um milagre celestial é que pode permitir que passem minimamente em todos aqueles testes. Os faróis têm que farolar, os piscas que piscar, o motor não pode ir abaixo, os pneus devem permitir a boa aderência da viatura à estrada, o escape não pode ser barulhento nem ter fugas, as luzes de nevoeiro, tanto as dianteiras como as traseiras, têm que funcionar na perfeição, tal como os stops e a luz avisadora de marcha-atrás.
"Está tudo bem?", perguntam os proprietários ansiosamente, mais com fé do que com verdadeira credulidade. "Mais ou menos." A indecisão dos inspectores mantém-se até ao final. O seu veredicto é inapelável. Quando finalmente termina o exame, depois da saída do veículo do seu lugar sobre uma fossa ou no alto de um elevador que permite toda a visão da parte de baixo do chassis e do resto, o inspector recolhe ao silêncio do seu gabinete. São três as hipóteses: a melhor é o almejado "Aprovado", tout court. "Aprovado com reservas" é outra possibilidade. Nesse caso, o proprietário é vivamente aconselhado a mandar reparar um ou dois itens, que não são no entanto tão relevantes para o bom funcionamento do automóvel em condições de segurança que o impeçam de andar na estrada. Na terceira hipótese, comum, o veículo deverá voltar dentro do período de um mês à inspecção, mas apenas para que determinadas partes sejam testadas de novo. Se então passar, "até para o ano!" Caso contrário, a viatura perde a licença de circulação. Este acaba por ser um caso mais raro, afinal. A absolvição em Portugal sempre foi o que prevaleceu. Há costumes que se mantêm brandos.
7/17/2008
Como vão as coisas?
O irreprimível desejo de ladrar contra o inimigo, manifestado por todos os partidos que estão na oposição em face de maus resultados do Governo, acaba de surgir mais uma vez. Não será a última, decerto, sendo que quando o partido actualmente no Governo estiver na oposição fará exactamente a mesma coisa. Sinto-me particularmente mal ao ver estabelecer um nexo causal entre duas coisas que não estão directamente relacionadas. Por outro lado, ver os partidos da oposição como que a rejubilarem com a crise que se abate sobre o país, parecendo mais interessados no "eu-não-avisei?" do que na crua realidade vivida pelos cidadãos, é algo chocante. Lembra-me aqueles oradores que, ao citarem palavras de um discurso de Abraão Lincoln em que este fala da necessidade de continuar a lutar pela manutenção do governo do povo, pelo povo e para o povo, fazem com que toda a ênfase recaia retoricamente nas diferentes preposições "do povo, pelo povo e para o povo" em vez de acentuarem o mais importante: o povo, i.e. as pessoas.
Longe de mim defender o Governo, mas é de toda a justiça reconhecer que o tremor que presentemente se abate sobre o país está longe de ter o seu epicentro em Portugal. Portugal é, entretanto, um dos mais afectados pelo pacote-conjunto de elevados preços de combustíveis e de outras matérias primas, incluindo alimentares, por uma diferença abissal entre o valor do euro e do dólar, e pelos efeitos devastadores de um capitalismo que se embrenhou selvaticamente pelos caminhos do endividamento das populações seduzidas pelo sonho de contínuas valorizações que em poucos anos se desmoronou. Neste momento, Espanha, Grécia e Portugal - sempre juntos como nos famosos PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain) - enfrentam problemas sérios que um nível de vida excessivo praticado durante anos provocou. Enquanto as coisas vão de vento em popa para os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), os PIGS amocham. Estas coisas são assim. Estamos a viver uma aventura colectiva de que não sabemos o The End, se é que este existe. Talvez a coisa acabe por ser mais como as sessões contínuas do velho Olímpia ou do Coliseu.
Parece evidente que vai ocorrer gradualmente uma mudança significativa e gravosa. Já que os países da Eurolândia nesta vão continuar, acontece que "o seu" euro está supervalorizado. Devido a isso, os valores das empresas e das propriedades - incluindo imobiliário e terrenos - dos países que enfrentam maiores dificuldades de endividamento tenderão a baixar até chegarem a uma plataforma de preço que seja suficientemente atraente para o nacional e o estrangeiro investirem o seu dinheiro. E os salários subirão pouco.
Manietados por regras impostas por Bruxelas, os governos dos vários países têm a maior possibilidade de manobra através da fiscalidade. Podem também, é verdade, evitar cometer erros desastrosos que terão de ser pagos no futuro, mas é basicamente através da fiscalidade que podem agir. No caso de Portugal, já muita coisa se tentou fazer neste campo, mas sem grande sucesso sustentado. Vivemos num país com elevada taxa de corrupção e de crimes de colarinho branco. Sem seriedade, somos todos a sofrer. Quem cumpre com a lei acaba por ficar prejudicado. Muito embora a sua consciência possa estar em paz, a sua carteira ficará mais vazia do que a dos outros que actuam à margem da lei.
A Operação Furacão é, pelo que se sabe, um bom exemplo de manobras financeiras que movimentaram e possivelmente continuam a movimentar largas somas de forma menos clara. Entretanto, uma lei providencial para as empresas está em vias de abortar muitos dos esforços para deslindar teias bem urdidas e dificilmente desmontáveis.
Mas se isto se passa nas altas esferas das finanças, atente-se no que vem ocorrendo cada vez mais no mundo dos biscates. Uma quantidade cada vez maior de profissionais que prestam os serviços mais diversos estabelece com os seus clientes um contrato verbal de pagamento... em dinheiro vivo. Nada de cheques! Estes podem servir de meio de controlo à administração fiscal e eles não querem ser apanhados nas malhas da justiça do Fisco por nada deste mundo. Como é óbvio, torna-se praticamente impossível seguir o trilho dos largos montantes que resultam de somas relativamente pequenas mas acumuladas por todo o país. Depois, nada disto consta das estatísticas, a não ser por estimativa, algo que é por natureza pouco fiável. Mas é assim que o país anda.
Não considero que Portugal tenha errado ao concentrar cerca de oitenta por cento das suas exportações e importações no seio da União Europeia. No fundo, foi para trocas comerciais deste género que se criou o euro e se esbateram fronteiras. O pior é que quando não se exporta valores substanciais para os mercados que estão na curva ascendente, como os dos BRIC, a economia tende a estagnar ou a entrar em recessão. Na União, países como a Alemanha, a França e a Holanda têm conseguido entrar nesses mercados e por isso a sua economia resiste melhor. Noutros, nomeadamente os muito endividados, a situação não é tão brilhante.
Parece evidente que vai ocorrer gradualmente uma mudança significativa e gravosa. Já que os países da Eurolândia nesta vão continuar, acontece que "o seu" euro está supervalorizado. Devido a isso, os valores das empresas e das propriedades - incluindo imobiliário e terrenos - dos países que enfrentam maiores dificuldades de endividamento tenderão a baixar até chegarem a uma plataforma de preço que seja suficientemente atraente para o nacional e o estrangeiro investirem o seu dinheiro. E os salários subirão pouco.
Manietados por regras impostas por Bruxelas, os governos dos vários países têm a maior possibilidade de manobra através da fiscalidade. Podem também, é verdade, evitar cometer erros desastrosos que terão de ser pagos no futuro, mas é basicamente através da fiscalidade que podem agir. No caso de Portugal, já muita coisa se tentou fazer neste campo, mas sem grande sucesso sustentado. Vivemos num país com elevada taxa de corrupção e de crimes de colarinho branco. Sem seriedade, somos todos a sofrer. Quem cumpre com a lei acaba por ficar prejudicado. Muito embora a sua consciência possa estar em paz, a sua carteira ficará mais vazia do que a dos outros que actuam à margem da lei.
A Operação Furacão é, pelo que se sabe, um bom exemplo de manobras financeiras que movimentaram e possivelmente continuam a movimentar largas somas de forma menos clara. Entretanto, uma lei providencial para as empresas está em vias de abortar muitos dos esforços para deslindar teias bem urdidas e dificilmente desmontáveis.
Mas se isto se passa nas altas esferas das finanças, atente-se no que vem ocorrendo cada vez mais no mundo dos biscates. Uma quantidade cada vez maior de profissionais que prestam os serviços mais diversos estabelece com os seus clientes um contrato verbal de pagamento... em dinheiro vivo. Nada de cheques! Estes podem servir de meio de controlo à administração fiscal e eles não querem ser apanhados nas malhas da justiça do Fisco por nada deste mundo. Como é óbvio, torna-se praticamente impossível seguir o trilho dos largos montantes que resultam de somas relativamente pequenas mas acumuladas por todo o país. Depois, nada disto consta das estatísticas, a não ser por estimativa, algo que é por natureza pouco fiável. Mas é assim que o país anda.
Não considero que Portugal tenha errado ao concentrar cerca de oitenta por cento das suas exportações e importações no seio da União Europeia. No fundo, foi para trocas comerciais deste género que se criou o euro e se esbateram fronteiras. O pior é que quando não se exporta valores substanciais para os mercados que estão na curva ascendente, como os dos BRIC, a economia tende a estagnar ou a entrar em recessão. Na União, países como a Alemanha, a França e a Holanda têm conseguido entrar nesses mercados e por isso a sua economia resiste melhor. Noutros, nomeadamente os muito endividados, a situação não é tão brilhante.
Dizer que a culpa é toda do Sócrates é apenas um grito de galo de quem o quer ver saltar do poleiro para ir ocupar o seu lugar. Mas é evidente que, numa altura destas, insistir em construir um TGV Lisboa-Porto, por exemplo, é passar ao lado do cerne da crise e agravá-la ainda mais. Coisas desse género são, de facto, erros graves que devem ser assacados aos governantes, como aliás outros ocorridos neste mandato.
7/11/2008
O xadrez
Quando estive na Índia no princípio deste ano, fiquei impressionado com variadíssimas coisas. Terei dado testemunho de algumas delas neste blog. Algo que não referi foi que, imperdoavelmente, me esqueci de fotografar uma enorme porta de madeira de entrada no castelo de Orcha. Não era uma porta qualquer. Estava "forrada" do lado de fora com inúmeros picos de ferro bem salientes. Na parte de trás tinha a revesti-la uma chapa forte para maior resistência. Hoje, Orcha é uma pequena e modesta localidade que sobrevive como atracção turística. Para que serviam aqueles picos de ferro?
Antes de vermos a resposta, lembremos a maneira como Timur, um dos príncipes mogóis que conquistou para si uma parte substancial do território indiano no virar do século XIV para o XV, conseguiu derrotar os governantes hindus da capital, Delhi. Estes possuíam bastantes tropas, encontravam-se numa posição defensiva e tinham uma arma terrível que causava sempre o pânico entre as tropas invasoras: elefantes. Quando os elefantes atacavam, o destroço do inimigo era completo. Timur, porém, preparou bem o combate. Mandou levantar uma robusta muralha e construir um fosso, além de criar vários tipos de armadilhas, com enormes covas cheios de ferros espetados no fundo. O mogol não dispunha de elefantes, mas na sua caminhada para Delhi conseguira arrebanhar uma quantidade razoável de camelos e búfalos. Estes faziam também parte da sua estratégia. Postas as tropas em posição de combate, o guerreiro Timur mandou atar palha seca aos rabos dos búfalos e dos camelos. Depois, quando a refrega se iniciou, com os seus búfalos e camelos na linha da frente, deu ordem para que a palha atada aos rabos dos animais fosse ateada, enquanto os seus soldados faziam os bichos avançar. Loucos de dor e absolutamente espavoridos, os numerosos búfalos e camelos investiram contra os elefantes inimigos. Estes, em debandada, acabaram por ir contra as tropas hindus. A partir daí, não foi difícil a Timur ocupar Delhi e iniciar assim uma dinastia mogol que viria a construir alguns dos mais belos palácios da Índia, incluindo o Taj Mahal, e desenvolver as ciências e as letras.
Ora, o grande portão do castelo de Orcha, com os seus salientes picos em ferro, não pretendia mais do que rechaçar os elefantes que contra ele investissem. Terá sido por estas e por outras razões que o temido elefante fez inicialmente parte do jogo de xadrez. Crê-se que este jogo tenha tido a sua origem na Índia várias centenas de anos antes de Cristo. Aliás, uma das grandes epopeias indianas - Ramayana - conta que o rei Ravana inventou o xadrez para divertir a sua mulher, Mandodari. Cerebralmente brilhante, Mandodari depressa se tornou melhor jogadora do que o marido e derrotava-o invariavelmente.
O xadrez figura também no Arthashastra, aquele que é possivelmente o mais antigo tratado político que se conhece (século III a.C.). Nele, o xadrez é tratado como jogo de guerra. A história acima narrada dos búfalos, camelos e elefantes, que tem tanto de verídica como de cruel, iria confirmar vários séculos mais tarde como as peças do jogo podem ser manipuladas numa batalha real.
No entanto, hoje não encontramos nem elefantes nem camelos entre as peças do jogo de xadrez. Existirá alguma razão? Sim. Crê-se que da Índia o jogo passou para a Pérsia. Os árabes que conquistaram a Pérsia no século VI transportaram-no para o norte de África. Do norte de África o jogo atravessou o Mediterrâneo e entrou na Espanha moura, na qual se tornou imensamente popular. Era frequentemente jogado nas ruas, algo que aliás ainda se pode ver hoje em várias cidades do mundo (fotos, em Berna e Lausanne).
Admito que para mim tudo isto era já mais ou menos conhecido. Mas vim agora a aperceber-me através de um interessante artigo da Time - escrito pelo actual campeão do mundo de xadrez - de um pormenor absolutamente novo para mim: o papel de Isabel, a Católica, de Espanha, na evolução do jogo. Puxando a brasa à nossa sardinha portuguesa, lembremos que esta Isabel, de boas e más famas, era bisneta do nosso rei D. João I, neta do Infante D. João e de Isabel de Bragança, e filha de Isabel de Portugal. Com a reconquista de Granada pelas tropas católicas de Castela (de Isabel) e Fernando (de Aragão) e o fim do império mouro na Península em 1492, houve inúmeras coisas que mudaram. Entre elas o xadrez. A rainha tornou-se a peça mais importante do tabuleiro, o bispo entrou na liça substituindo o camelo, o elefante desapareceu, dando o seu lugar ao cavalo. Se repararmos, veremos que os Cavaleiros (com os seus cavalos), a Rainha (por si própria e pela Virgem), os Bispos (pela Igreja), o Rei (como líder máximo), os Castelos (torres, como residência e refúgio), e a linha da frente dos Peões (simbolizando os soldados geralmente retirados dos servos da gleba medievais) formam todo um retrato da sociedade da época. Apesar de o xadrez ser um jogo e, como vimos, também um jogo de guerra (um war game, quem diria?), é curioso ver nele este retrato da sociedade daquele tempo. Para nós, portugueses, lembrar-nos-á porventura o famoso Políptico de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, que representa pictoricamente a nossa sociedade da época. Por associação, chegamos também aos óptimos retratos teatrais de Gil Vicente nos seus autos. Em idêntica associação, chegamos aos Canterbury Tales, de Chaucer, relativamente à sociedade medieval inglesa. A presença dos soldados que constituem a perigosa linha dianteira traz-nos à mente as mulheres "coitadas", que viam os seus homens partir para a guerra e vestiam de preto até que eles regressassem. Os cavaleiros mostram-nos os nobres, montando um animal que pela sua nobreza fez com que a designação de "cavaleiros" evoluísse no sentido de "cavalheiros" (os gentlemen ibéricos). A rainha evoca os jogos de influência palaciana, as intrigas, a importância que constitui para um rei ter uma mulher arguta e decidida a seu lado. E simboliza a importância de Nossa Senhora. Os bispos caracterizam a influência da Igreja, poderosa no seu lobbying, perigosa por vezes nas suas manobras de ataques laterais. O Rei é o chefe, mas tem ele próprio de contar com aqueles amigos todos a secundá-lo. Sozinho, cairia facilmente nas mãos do inimigo. O castelo (a torre) é o grande reduto da segurança real, com a sua vivência própria.
Interessantemente, fiquei a saber que o xadrez moderno é ainda hoje jogado por regras que foram formalmente adoptadas durante o reinado de Isabel, a Católica.
Admito perfeitamente que o xadrez seja mais importante para jogar do que para permitir deambulações através de historietas assim, mas esta poderá eventualmente ter também algum interesse.
Antes de vermos a resposta, lembremos a maneira como Timur, um dos príncipes mogóis que conquistou para si uma parte substancial do território indiano no virar do século XIV para o XV, conseguiu derrotar os governantes hindus da capital, Delhi. Estes possuíam bastantes tropas, encontravam-se numa posição defensiva e tinham uma arma terrível que causava sempre o pânico entre as tropas invasoras: elefantes. Quando os elefantes atacavam, o destroço do inimigo era completo. Timur, porém, preparou bem o combate. Mandou levantar uma robusta muralha e construir um fosso, além de criar vários tipos de armadilhas, com enormes covas cheios de ferros espetados no fundo. O mogol não dispunha de elefantes, mas na sua caminhada para Delhi conseguira arrebanhar uma quantidade razoável de camelos e búfalos. Estes faziam também parte da sua estratégia. Postas as tropas em posição de combate, o guerreiro Timur mandou atar palha seca aos rabos dos búfalos e dos camelos. Depois, quando a refrega se iniciou, com os seus búfalos e camelos na linha da frente, deu ordem para que a palha atada aos rabos dos animais fosse ateada, enquanto os seus soldados faziam os bichos avançar. Loucos de dor e absolutamente espavoridos, os numerosos búfalos e camelos investiram contra os elefantes inimigos. Estes, em debandada, acabaram por ir contra as tropas hindus. A partir daí, não foi difícil a Timur ocupar Delhi e iniciar assim uma dinastia mogol que viria a construir alguns dos mais belos palácios da Índia, incluindo o Taj Mahal, e desenvolver as ciências e as letras.
Ora, o grande portão do castelo de Orcha, com os seus salientes picos em ferro, não pretendia mais do que rechaçar os elefantes que contra ele investissem. Terá sido por estas e por outras razões que o temido elefante fez inicialmente parte do jogo de xadrez. Crê-se que este jogo tenha tido a sua origem na Índia várias centenas de anos antes de Cristo. Aliás, uma das grandes epopeias indianas - Ramayana - conta que o rei Ravana inventou o xadrez para divertir a sua mulher, Mandodari. Cerebralmente brilhante, Mandodari depressa se tornou melhor jogadora do que o marido e derrotava-o invariavelmente.
O xadrez figura também no Arthashastra, aquele que é possivelmente o mais antigo tratado político que se conhece (século III a.C.). Nele, o xadrez é tratado como jogo de guerra. A história acima narrada dos búfalos, camelos e elefantes, que tem tanto de verídica como de cruel, iria confirmar vários séculos mais tarde como as peças do jogo podem ser manipuladas numa batalha real.
No entanto, hoje não encontramos nem elefantes nem camelos entre as peças do jogo de xadrez. Existirá alguma razão? Sim. Crê-se que da Índia o jogo passou para a Pérsia. Os árabes que conquistaram a Pérsia no século VI transportaram-no para o norte de África. Do norte de África o jogo atravessou o Mediterrâneo e entrou na Espanha moura, na qual se tornou imensamente popular. Era frequentemente jogado nas ruas, algo que aliás ainda se pode ver hoje em várias cidades do mundo (fotos, em Berna e Lausanne).
Admito que para mim tudo isto era já mais ou menos conhecido. Mas vim agora a aperceber-me através de um interessante artigo da Time - escrito pelo actual campeão do mundo de xadrez - de um pormenor absolutamente novo para mim: o papel de Isabel, a Católica, de Espanha, na evolução do jogo. Puxando a brasa à nossa sardinha portuguesa, lembremos que esta Isabel, de boas e más famas, era bisneta do nosso rei D. João I, neta do Infante D. João e de Isabel de Bragança, e filha de Isabel de Portugal. Com a reconquista de Granada pelas tropas católicas de Castela (de Isabel) e Fernando (de Aragão) e o fim do império mouro na Península em 1492, houve inúmeras coisas que mudaram. Entre elas o xadrez. A rainha tornou-se a peça mais importante do tabuleiro, o bispo entrou na liça substituindo o camelo, o elefante desapareceu, dando o seu lugar ao cavalo. Se repararmos, veremos que os Cavaleiros (com os seus cavalos), a Rainha (por si própria e pela Virgem), os Bispos (pela Igreja), o Rei (como líder máximo), os Castelos (torres, como residência e refúgio), e a linha da frente dos Peões (simbolizando os soldados geralmente retirados dos servos da gleba medievais) formam todo um retrato da sociedade da época. Apesar de o xadrez ser um jogo e, como vimos, também um jogo de guerra (um war game, quem diria?), é curioso ver nele este retrato da sociedade daquele tempo. Para nós, portugueses, lembrar-nos-á porventura o famoso Políptico de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, que representa pictoricamente a nossa sociedade da época. Por associação, chegamos também aos óptimos retratos teatrais de Gil Vicente nos seus autos. Em idêntica associação, chegamos aos Canterbury Tales, de Chaucer, relativamente à sociedade medieval inglesa. A presença dos soldados que constituem a perigosa linha dianteira traz-nos à mente as mulheres "coitadas", que viam os seus homens partir para a guerra e vestiam de preto até que eles regressassem. Os cavaleiros mostram-nos os nobres, montando um animal que pela sua nobreza fez com que a designação de "cavaleiros" evoluísse no sentido de "cavalheiros" (os gentlemen ibéricos). A rainha evoca os jogos de influência palaciana, as intrigas, a importância que constitui para um rei ter uma mulher arguta e decidida a seu lado. E simboliza a importância de Nossa Senhora. Os bispos caracterizam a influência da Igreja, poderosa no seu lobbying, perigosa por vezes nas suas manobras de ataques laterais. O Rei é o chefe, mas tem ele próprio de contar com aqueles amigos todos a secundá-lo. Sozinho, cairia facilmente nas mãos do inimigo. O castelo (a torre) é o grande reduto da segurança real, com a sua vivência própria.
Interessantemente, fiquei a saber que o xadrez moderno é ainda hoje jogado por regras que foram formalmente adoptadas durante o reinado de Isabel, a Católica.
Admito perfeitamente que o xadrez seja mais importante para jogar do que para permitir deambulações através de historietas assim, mas esta poderá eventualmente ter também algum interesse.
7/10/2008
Enigma
7/08/2008
Não matei!
Por mero acaso, estive no outro dia com um indivíduo beirão com quem já tinha estado uma vez. A certa altura, da sala do 2º andar onde nos encontrávamos vi-o atirar pela janela fora (para o quintal que fica na parte de baixo) o cigarro que ele tinha estado a fumar. Lembrei-lhe que o cigarro aceso podia acertar nalguma pessoa ou num cão. "Se for num cão, não faz mal." A dureza do discurso impressionou-me - estamos num tempo em que falar contra os animais se tornou altamente incorrecto.
Ele explicou-me que não era tanto assim. Tinha um ódio tremendo a gatos e cães. Desde miúdo. Contou-me então a vez em que, gaiato ainda, tinha ido trabalhar para o campo com a mãe. À hora do almoço, não encontrou a sopa que levara no farnel exactamente intacta. Nem dava para meia tijela. "O gato andou por aí", disse-lhe a mãe. "Se calhar foi-te à sopa." Com a fome a apertar e o odiozinho aos bichos a martirizá-lo, o puto não esperou muito. Apanhando a mãe distraída a trabalhar, agarrou numa corda, filou o gato e enforcou-o. Assim! "Para que servem os gatos? Aquilo é bicho que não interessa!"
Se essa era uma história antiga, agora que o indivíduo já é quase avô, tinha entretanto uma outra fresquinha para contar. "Este fim-de-semana fui à terra por causa de uns terrenos que lá tenho e uma hortinha. Então não é que apanhei quatro cães a darem-me cabo das cebolas e do tomate que eu tinha plantado! Espojados a dormir e a esborrachar-me aquilo tudo, que me custou uma nota!" Perguntei-lhe de quem eram os cães. "Ninguém me disse quem era o dono. Mas hoje já não estão cá." "Não me diga que você os enforcou como fez ao gato quando era miúdo?" "Não. Não matei os cães. Eles é que foram gulosos! Foram comer o frango que eu tinha cozinhado com uma boa dose do produto que usamos nos terrenos. Garanto-lhe que nunca mais vão às cebolas nem a mais nada. Foi remédio santo!"
Santo é que o homem não é, caramba!
Ele explicou-me que não era tanto assim. Tinha um ódio tremendo a gatos e cães. Desde miúdo. Contou-me então a vez em que, gaiato ainda, tinha ido trabalhar para o campo com a mãe. À hora do almoço, não encontrou a sopa que levara no farnel exactamente intacta. Nem dava para meia tijela. "O gato andou por aí", disse-lhe a mãe. "Se calhar foi-te à sopa." Com a fome a apertar e o odiozinho aos bichos a martirizá-lo, o puto não esperou muito. Apanhando a mãe distraída a trabalhar, agarrou numa corda, filou o gato e enforcou-o. Assim! "Para que servem os gatos? Aquilo é bicho que não interessa!"
Se essa era uma história antiga, agora que o indivíduo já é quase avô, tinha entretanto uma outra fresquinha para contar. "Este fim-de-semana fui à terra por causa de uns terrenos que lá tenho e uma hortinha. Então não é que apanhei quatro cães a darem-me cabo das cebolas e do tomate que eu tinha plantado! Espojados a dormir e a esborrachar-me aquilo tudo, que me custou uma nota!" Perguntei-lhe de quem eram os cães. "Ninguém me disse quem era o dono. Mas hoje já não estão cá." "Não me diga que você os enforcou como fez ao gato quando era miúdo?" "Não. Não matei os cães. Eles é que foram gulosos! Foram comer o frango que eu tinha cozinhado com uma boa dose do produto que usamos nos terrenos. Garanto-lhe que nunca mais vão às cebolas nem a mais nada. Foi remédio santo!"
Santo é que o homem não é, caramba!
7/06/2008
TGV em risco de descarrilar antes de partir
Depois de Luís Campos e Cunha, o primeiro ministro das Finanças do Governo de Sócrates, ter manifestado as suas dúvidas quanto à bondade do projecto TGV, é agora a vez de Cavaco Silva levantar algumas questões quanto às mais-valias do projecto face aos seus elevados custos e à actual situação difícil das finanças nacionais, as quais não serão favorecidas por maiores endividamentos do país. Tanto Campos e Cunha como Cavaco Silva são indubitavelmente mais conhecedores da área de finanças do que Sócrates. Este, no início do seu mandato e perante as objecções de Campos e Cunha, não aceitou a sua continuação no Governo e substituiu-o por Teixeira dos Santos. Só que Cavaco Silva não é membro do Governo, mas sim o Presidente da República...
7/02/2008
Cereal killer
Este é um cartoon notável (o título é meu e a reprodução directa do jornal foi o melhor que consegui arranjar) publicado há umas semanas no Público. A autoria - conhece-se bem o traço - só podia ser do Luís Afonso. Pela oportunidade do "boneco" e poder de síntese-que-diz-tudo, os meus parabéns através do azweblog ao Luís Afonso.
7/01/2008
Os peseteros
Diga-se o que se disser, muitas pessoas da minha geração ainda consideram importante o "amor à camisola", a fidelidade à empresa e à família. Pode ser que não cumpram a cem por cento, mas existe um sentimento enraizado de que é assim que deve ser. Gerações mais novas tendem a pensar de maneira diferente: mais no sentido de aproveitar as oportunidades que surgem, uma vez que elas podem não se repetir.
Como é sabido, antigamente um ciclista que do Benfica passasse para o Sporting ou vice-versa era apodado de “traidor”. Vendia-se por uns parcos dinheiros, à maneira de Judas. O mesmo se passava com jogadores de futebol. Não era imaginável que o benfiquista Eusébio passasse para o Porto ou para o Sporting, ou que o sportinguista Travassos se transferisse para um clube rival.
Gradualmente, porém, o dinheiro começou a falar mais alto. Os leilões a ver quem dava mais passaram a ser correntes. Clubes apodados de bem geridos transformaram-se em entrepostos de venda, sempre na mira de comprarem barato para venderem caro. Recentemente, no campeonato europeu verificou-se que a selecção portuguesa era das mais valiosas - era conhecido o preço por que tinham sido vendidos a clubes estrangeiros muitos dos jogadores que nela alinhavam.
Sempre defenderei a liberdade e, portanto não posso em consciência opor-me a mudanças. Cada um é livre de escolher o que considera ser melhor para si, sendo naturalmente responsável pelos seus actos. E admito, naturalmente, que questões de dignidade pessoal, problemas familiares ou de saúde podem estar na base de mudanças mais do que justificadas.
Apesar de tudo, há situações que continuam a doer aos formatados em fidelidade. Citarei três casos bem nossos conhecidos. Por um lado, a transferência de Figo do Barcelona, onde era idolatrado e ganhava bom dinheiro, para o grande rival espanhol de Madrid. Já foi há uns anos, mas constituiu uma verdadeira ofensa para os catalães, que até lhe tinham dado a honra de capitanear a equipa. Mais: o clube madrileno ficou com toda a razão para pensar que o mesmo lhe poderia suceder a si relativamente ao dito jogador se aparecesse outra proposta mais elevada.
Scolari, treinador da selecção portuguesa, é um outro caso. Para o bem e para o mal, desenvolveu-se uma mística entre o homem e o nosso país. Vê-lo abandonar por meras (?) razões monetárias não caiu bem. Isto digo eu, mas muitos não concordarão comigo. A sua dificuldade em línguas vai possivelmente causar-lhe grandes problemas e portanto ele abre até a hipótese de regressar um dia. Eu nunca o receberia.
O terceiro caso é o de Cristiano Ronaldo, o menino-bonito do Manchester. Depois de receber mil prodigalidades do clube onde se fez um grande jogador à escala mundial, disse-se pronto a trocar o clube inglês pelo Real Madrid. Pesetero, como Figo.
Entretanto, não esqueçamos que mesmo no mundo do futebol bem pago ainda existem alguns fiéis. Agora durante o Euro sensacionalmente ganho pela Espanha sobressaiu Xavi, um jogador que entrou para o Barcelona aos 11 anos. Recusou pelo menos por duas vezes sair do seu clube. Em ambas foi convidado por José Mourinho, primeiro para o Chelsea, agora para o Inter. Em ambos os casos declinou o convite. É, evidentemente, um símbolo emblemático do Barcelona, tal como foi Guardiola, que vai ser o novo treinador da equipa e jogou no clube juntamente com Figo.
Apesar das notáveis e saborosas excepções como estas de Xavi e Guardiola, os valores máximos que contam hoje em dia parecem ser os da conta bancária. Os outros são subalternizados. É uma evolução sociologicamente interessante. É sintomático que uns a aceitem sem quaisquer problemas de consciência e outros a reprovem, admitindo apenas que se trata de um sinal dos tempos.
Como é sabido, antigamente um ciclista que do Benfica passasse para o Sporting ou vice-versa era apodado de “traidor”. Vendia-se por uns parcos dinheiros, à maneira de Judas. O mesmo se passava com jogadores de futebol. Não era imaginável que o benfiquista Eusébio passasse para o Porto ou para o Sporting, ou que o sportinguista Travassos se transferisse para um clube rival.
Gradualmente, porém, o dinheiro começou a falar mais alto. Os leilões a ver quem dava mais passaram a ser correntes. Clubes apodados de bem geridos transformaram-se em entrepostos de venda, sempre na mira de comprarem barato para venderem caro. Recentemente, no campeonato europeu verificou-se que a selecção portuguesa era das mais valiosas - era conhecido o preço por que tinham sido vendidos a clubes estrangeiros muitos dos jogadores que nela alinhavam.
Sempre defenderei a liberdade e, portanto não posso em consciência opor-me a mudanças. Cada um é livre de escolher o que considera ser melhor para si, sendo naturalmente responsável pelos seus actos. E admito, naturalmente, que questões de dignidade pessoal, problemas familiares ou de saúde podem estar na base de mudanças mais do que justificadas.
Apesar de tudo, há situações que continuam a doer aos formatados em fidelidade. Citarei três casos bem nossos conhecidos. Por um lado, a transferência de Figo do Barcelona, onde era idolatrado e ganhava bom dinheiro, para o grande rival espanhol de Madrid. Já foi há uns anos, mas constituiu uma verdadeira ofensa para os catalães, que até lhe tinham dado a honra de capitanear a equipa. Mais: o clube madrileno ficou com toda a razão para pensar que o mesmo lhe poderia suceder a si relativamente ao dito jogador se aparecesse outra proposta mais elevada.
Scolari, treinador da selecção portuguesa, é um outro caso. Para o bem e para o mal, desenvolveu-se uma mística entre o homem e o nosso país. Vê-lo abandonar por meras (?) razões monetárias não caiu bem. Isto digo eu, mas muitos não concordarão comigo. A sua dificuldade em línguas vai possivelmente causar-lhe grandes problemas e portanto ele abre até a hipótese de regressar um dia. Eu nunca o receberia.
O terceiro caso é o de Cristiano Ronaldo, o menino-bonito do Manchester. Depois de receber mil prodigalidades do clube onde se fez um grande jogador à escala mundial, disse-se pronto a trocar o clube inglês pelo Real Madrid. Pesetero, como Figo.
Entretanto, não esqueçamos que mesmo no mundo do futebol bem pago ainda existem alguns fiéis. Agora durante o Euro sensacionalmente ganho pela Espanha sobressaiu Xavi, um jogador que entrou para o Barcelona aos 11 anos. Recusou pelo menos por duas vezes sair do seu clube. Em ambas foi convidado por José Mourinho, primeiro para o Chelsea, agora para o Inter. Em ambos os casos declinou o convite. É, evidentemente, um símbolo emblemático do Barcelona, tal como foi Guardiola, que vai ser o novo treinador da equipa e jogou no clube juntamente com Figo.
Apesar das notáveis e saborosas excepções como estas de Xavi e Guardiola, os valores máximos que contam hoje em dia parecem ser os da conta bancária. Os outros são subalternizados. É uma evolução sociologicamente interessante. É sintomático que uns a aceitem sem quaisquer problemas de consciência e outros a reprovem, admitindo apenas que se trata de um sinal dos tempos.
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