7/11/2008

O xadrez




Quando estive na Índia no princípio deste ano, fiquei impressionado com variadíssimas coisas. Terei dado testemunho de algumas delas neste blog. Algo que não referi foi que, imperdoavelmente, me esqueci de fotografar uma enorme porta de madeira de entrada no castelo de Orcha. Não era uma porta qualquer. Estava "forrada" do lado de fora com inúmeros picos de ferro bem salientes. Na parte de trás tinha a revesti-la uma chapa forte para maior resistência. Hoje, Orcha é uma pequena e modesta localidade que sobrevive como atracção turística. Para que serviam aqueles picos de ferro?
Antes de vermos a resposta, lembremos a maneira como Timur, um dos príncipes mogóis que conquistou para si uma parte substancial do território indiano no virar do século XIV para o XV, conseguiu derrotar os governantes hindus da capital, Delhi. Estes possuíam bastantes tropas, encontravam-se numa posição defensiva e tinham uma arma terrível que causava sempre o pânico entre as tropas invasoras: elefantes. Quando os elefantes atacavam, o destroço do inimigo era completo. Timur, porém, preparou bem o combate. Mandou levantar uma robusta muralha e construir um fosso, além de criar vários tipos de armadilhas, com enormes covas cheios de ferros espetados no fundo. O mogol não dispunha de elefantes, mas na sua caminhada para Delhi conseguira arrebanhar uma quantidade razoável de camelos e búfalos. Estes faziam também parte da sua estratégia. Postas as tropas em posição de combate, o guerreiro Timur mandou atar palha seca aos rabos dos búfalos e dos camelos. Depois, quando a refrega se iniciou, com os seus búfalos e camelos na linha da frente, deu ordem para que a palha atada aos rabos dos animais fosse ateada, enquanto os seus soldados faziam os bichos avançar. Loucos de dor e absolutamente espavoridos, os numerosos búfalos e camelos investiram contra os elefantes inimigos. Estes, em debandada, acabaram por ir contra as tropas hindus. A partir daí, não foi difícil a Timur ocupar Delhi e iniciar assim uma dinastia mogol que viria a construir alguns dos mais belos palácios da Índia, incluindo o Taj Mahal, e desenvolver as ciências e as letras.
Ora, o grande portão do castelo de Orcha, com os seus salientes picos em ferro, não pretendia mais do que rechaçar os elefantes que contra ele investissem. Terá sido por estas e por outras razões que o temido elefante fez inicialmente parte do jogo de xadrez. Crê-se que este jogo tenha tido a sua origem na Índia várias centenas de anos antes de Cristo. Aliás, uma das grandes epopeias indianas - Ramayana - conta que o rei Ravana inventou o xadrez para divertir a sua mulher, Mandodari. Cerebralmente brilhante, Mandodari depressa se tornou melhor jogadora do que o marido e derrotava-o invariavelmente.
O xadrez figura também no Arthashastra, aquele que é possivelmente o mais antigo tratado político que se conhece (século III a.C.). Nele, o xadrez é tratado como jogo de guerra. A história acima narrada dos búfalos, camelos e elefantes, que tem tanto de verídica como de cruel, iria confirmar vários séculos mais tarde como as peças do jogo podem ser manipuladas numa batalha real.
No entanto, hoje não encontramos nem elefantes nem camelos entre as peças do jogo de xadrez. Existirá alguma razão? Sim. Crê-se que da Índia o jogo passou para a Pérsia. Os árabes que conquistaram a Pérsia no século VI transportaram-no para o norte de África. Do norte de África o jogo atravessou o Mediterrâneo e entrou na Espanha moura, na qual se tornou imensamente popular. Era frequentemente jogado nas ruas, algo que aliás ainda se pode ver hoje em várias cidades do mundo (fotos, em Berna e Lausanne).
Admito que para mim tudo isto era já mais ou menos conhecido. Mas vim agora a aperceber-me através de um interessante artigo da Time - escrito pelo actual campeão do mundo de xadrez - de um pormenor absolutamente novo para mim: o papel de Isabel, a Católica, de Espanha, na evolução do jogo. Puxando a brasa à nossa sardinha portuguesa, lembremos que esta Isabel, de boas e más famas, era bisneta do nosso rei D. João I, neta do Infante D. João e de Isabel de Bragança, e filha de Isabel de Portugal. Com a reconquista de Granada pelas tropas católicas de Castela (de Isabel) e Fernando (de Aragão) e o fim do império mouro na Península em 1492, houve inúmeras coisas que mudaram. Entre elas o xadrez. A rainha tornou-se a peça mais importante do tabuleiro, o bispo entrou na liça substituindo o camelo, o elefante desapareceu, dando o seu lugar ao cavalo. Se repararmos, veremos que os Cavaleiros (com os seus cavalos), a Rainha (por si própria e pela Virgem), os Bispos (pela Igreja), o Rei (como líder máximo), os Castelos (torres, como residência e refúgio), e a linha da frente dos Peões (simbolizando os soldados geralmente retirados dos servos da gleba medievais) formam todo um retrato da sociedade da época. Apesar de o xadrez ser um jogo e, como vimos, também um jogo de guerra (um war game, quem diria?), é curioso ver nele este retrato da sociedade daquele tempo. Para nós, portugueses, lembrar-nos-á porventura o famoso Políptico de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, que representa pictoricamente a nossa sociedade da época. Por associação, chegamos também aos óptimos retratos teatrais de Gil Vicente nos seus autos. Em idêntica associação, chegamos aos Canterbury Tales, de Chaucer, relativamente à sociedade medieval inglesa. A presença dos soldados que constituem a perigosa linha dianteira traz-nos à mente as mulheres "coitadas", que viam os seus homens partir para a guerra e vestiam de preto até que eles regressassem. Os cavaleiros mostram-nos os nobres, montando um animal que pela sua nobreza fez com que a designação de "cavaleiros" evoluísse no sentido de "cavalheiros" (os gentlemen ibéricos). A rainha evoca os jogos de influência palaciana, as intrigas, a importância que constitui para um rei ter uma mulher arguta e decidida a seu lado. E simboliza a importância de Nossa Senhora. Os bispos caracterizam a influência da Igreja, poderosa no seu lobbying, perigosa por vezes nas suas manobras de ataques laterais. O Rei é o chefe, mas tem ele próprio de contar com aqueles amigos todos a secundá-lo. Sozinho, cairia facilmente nas mãos do inimigo. O castelo (a torre) é o grande reduto da segurança real, com a sua vivência própria.
Interessantemente, fiquei a saber que o xadrez moderno é ainda hoje jogado por regras que foram formalmente adoptadas durante o reinado de Isabel, a Católica.
Admito perfeitamente que o xadrez seja mais importante para jogar do que para permitir deambulações através de historietas assim, mas esta poderá eventualmente ter também algum interesse.

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