O único tio que tive do meu lado materno era um homem pragmático, empreendedor e com talento especial para fazer bons negócios. Além disso, entendia o valor da educação, a qual prezava muito. Nunca ninguém como ele me falou tanto da educação como um óptimo investimento. "Tirar uma especialidade e saber línguas estrangeiras pode ser precioso", dizia-me ele, que falava apenas português mas tinha essa ideia enraizada.
Esta breve introdução parecerá decerto ridícula e desajustada mas foi a que me ocorreu imediatamente a seguir ao caso que vou contar. Quem ler este post poderá hesitar ante o significado de portefeuille, palavra que surge no título. Também não é vocábulo que eu use todos os dias, mas conheço-o. No outro dia foi-me extremamente útil. A um amigo que não tinha tido possibilidade de ver uma exposição de Malhoa nas Belas Artes ofereci-me para lá ir e tirar umas tantas fotografias. A exposição estava no seu último dia e quase a fechar. Apressei-me, agarrei na máquina, que encafuei num saco da fnac, e fui direito ao Metro. Como passava um pouco das sete horas, havia bastante gente na gare da estação da Alameda. Desci as escadas a correr para apanhar um comboio que estava a chegar. Desceram também comigo a escada uns turistas franceses, que no entanto, à vista daquela pequena multidão, preferiram esperar pelo próximo transporte. Foi deles, postados na gare, que ao entrar na carruagem ouvi um grito repetido pelo menos três vezes: "Votre portefeuille! Le portefeuille!"
Admito que hoje o francês já não é para mim a língua fluente que outrora foi. Confesso até que o ouvir a palavra portefeuille me suscitou mais dúvidas do que certezas. Numa questão de segundos, porém, lembrei-me: "A carteira!" Podiam estar a falar para mim. Meti automaticamente a mão esquerda no bolso onde trazia algum dinheiro e um cartão Multibanco. Para minha surpresa, encontrei lá dentro uma outra mão. Não era uma situação normal. Alguém a quem essa mão pertencia estava atrás de mim no meio daquelas pessoas todas que queriam entrar. Ainda por cima eu transportava na mão direita o saco com a máquina fotográfica e, no braço, um pullover. Não conseguindo olhar para trás, agarrei firmemente na mão estranha que estava dentro do meu bolso e, com um safanão mais forte, arrastei o seu proprietário para dentro da carruagem. Entretanto, a porta fechou-se.
Decidi então puxar para fora a mão que tinha encontrado no meu bolso esquerdo e olhei de frente para a pessoa: um sujeito baixo dos seus quarenta anos, com o bigodinho malandro dos suspeitos-do-costume, bem-falante e, como é habitual nestes casos, devidamente acompanhado por um cúmplice um pouco mais velho. O cómico da situação foi que as duas mãos retiradas do bolso, a dele e a minha, nem por isso ficaram totalmente separadas. O ladrãozinho do Metro usava à volta do pulso uma daquelas tiras de pano coloridas, que se crê darem sorte a quem as usa. Ora, como a bracelete de metal do meu relógio tem, desde há algum tempo, um arreliador espigão que saiu ligeiramente do sítio devido, o dito espigão entrou decididamente na tira de pano do meu colega-de-bolso e lá ficou enredado. Depois, só a paciência e a arte do ladrãozinho é que, meticulosamente, conseguiram extricar o espigão metálico da fitinha-da-sorte sem danificar grandemente esta última.
No meio daquela operação, e com pessoas a entrar e a sair, o pullover que eu trazia no braço a certa altura caiu. Aí foi a vez do cúmplice levantá-lo e colocar-mo de volta no braço com toda a deferência. Agradeci.
Tendo-me previamente certificado pelo tacto de que nada me tinha sido roubado, ainda tive tempo de, até à paragem seguinte, já a do Intendente, lhe dizer o óbvio e perguntar se era um habitué da esquadra da polícia. Com a maior frieza do mundo, ele respondeu-me que eu estava totalmente enganado. Por quem o tomava? Uma senhora que estava por detrás fazia-me sinal para eu não dizer mais nada porque poderia ser perigoso. A porta do comboio entretanto abriu-se, os dois homens saíram e eu continuei a minha viagem para as fotografias nas Belas Artes, que por acaso até saíram bem.
Se o meu francês não me tivesse permitido decifrar rapidamente o significado da palavra-código portefeuille, eu não teria esta história para contar. E, com certeza, não teria também nem o dinheiro que na altura trazia comigo nem o meu cartão Multibanco. O tal investimento na educação de que o meu tio tanto me falou acabava, mais uma vez, de produzir os seus frutos.
P.S. Ah, é verdade! Se eu pensava comprar outra bracelete para o relógio, já desisti da ideia. Quem sabe se aquele espigão não vai voltar a ser útil?
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