O encadernador dos meus Escritos - sempre em três exemplares, um para cada um dos meus filhos e o terceiro para mim - é um óptimo profissional e, como mora na mesma rua que eu, faz o favor de mos trazer a casa. Hoje recebi mais um volume (neste momento a conta atingiu o número 7). É algo que constitui sempre para mim uma alegria muito especial. Trata-se, fundamentalmente, de uma passagem de testemunho para os meus filhos e para os meus netos. Contudo, admito que eu próprio não desprezo folhear de quando em vez, durante uns cinco ou dez minutos, um ou outro volume mais antigo, com textos em prosa ou em verso de que já não me recordo totalmente.
Procuro, como é natural, que a compilação que faço desses escritos dispersos seja mais sobre temas sem tempo do que sobre factos datados, mas é óbvio que alguns destes acabam por ser também incluídos. Tento escrever de maneira simples e escorreita, sem parágrafos longos ou palavras mal grafadas.
É aqui que me detenho agora para desabafar algo que me oprime. Quer eu queira, quer não, ao lerem esses textos os meus netos acharão esquisita - e errada - alguma da minha ortografia. De repente, devido ao enorme disparate que constitui a promulgação do novo acordo por parte de Portugal, do ponto de vista da ortografia todos os meus textos vão surgir aos olhos dos meus netos um pouco como sucede a qualquer português que hoje reage à grafia brasileira. Isso causa-me natural pena.
Esta é, porém, uma parte ínfima do problema De repente, as múltiplas centenas de livros em português que fazem parte da minha biblioteca passam a estar "gatadas". A quase totalidade dos livros que consultarei na Biblioteca Nacional e noutras trarão inevitavelmente a ortografia antiga, i.e. estarão errados em centenas de palavras. Porquê? Para quê? Com que vantagem ousaremos nós desperdiçar o imenso valor dos milhares e milhares de livros que enchem as prateleiras das bibliotecas escolares - desde o ensino básico até ao superior? Ou será que os vamos manter em instituições deste tipo com ortografia incorrecta? Porquê estas profundas modificações agora? "Foi você quem pediu este acordo?"
Porque gosto do meu país, foi nele que decidi viver. Mas por vezes chego a envergonhar-me. Afinal, talvez seja por casos como este que muitos compatriotas meus procuram uma compensatória consolação num mitificado passado glorioso da sua nação. Com a actual superficialidade do pensamento dominante que provoca como que uma auto-mutilação de relevantes raízes culturais, a forma permissiva como este país está a ser governado não enche de orgulho os seus filhos. Assim, torna-se facilmente entendível a abissal queda de valores éticos, a política do salve-se quem puder e do vale-tudo, a desconfiança na própria justiça e a desonestidade do muito que se passa no domínio da educação.
Embora esta decisão só a mim diga respeito, não quero deixar de anunciar neste blogue, no qual espero continuar a colaborar, que as inúmeras alterações aberrantes que emanam do acordo ortográfico luso-tropical me levam a não pactuar com as novas regras, da maioria das quais discordo frontalmente. Passarei, pela primeiríssima vez na minha vida, a escrever com erros de grafia, mas será com toda a consciência que o faço. Prefiro não ser tribalizado. Sou, aliás, livre de escrever como quero. Em minha opinião, um acordo desta ordem é ultrajante para Portugal. Neste sentido, ninguém poderá forçar-me a sentir-me constantemente ultrajado através da forma daquilo que escrevo.
Se me disserem que as crianças que vão entrar para o ensino básico depressa se habituarão, acredito piamente. É claro que sim. Sucede-lhes o mesmo que aos animais selvagens que já nasceram no Zoo: nunca viram a beleza da selva ou sentiram o verdadeiro prazer da liberdade de quem anda totalmente à solta no seu mundo natural. Não sofrem. A minha reacção, tal como a de tantas outras pessoas que conheço, não é de maneira nenhuma à mudança, que essa eu aceitaria de bom grado se tivesse lógica e fundamento. É à privação do sentido real da língua, à castração das raízes, à desculturação que pode ser pragmática mas que, em última análise, é perfeitamente estúpida e, ainda por cima – pressinto – muito mais prejudicial do que benéfica.
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