Nos anos 80, o filme Wall Street teve a coragem de colocar um dos actores com um lema que ia decididamente contra os valores dos chamados "sete pecados capitais". O lema dessa personagem era "Greed is good!". Se a vaidade, como orgulho excessivo da pessoa, é considerada um pecado mortal pelos cristãos - embora seja o mais leve da lista -, como não entender que a avidez, popularmente designada por "ganância", o seja? Trata-se de egoísmo exacerbado e não de mera ambição comedida. Esta é bem vinda em todo o ser humano que deseja progredir e viver pacificamente em sociedade.
Foi, curiosamente, nessa mesma década de 80 que o capitalismo, também chamado eufemisticamente de "economia de mercado", de "liberalismo" ou "neo-liberalismo", deu um vigoroso passo em frente com as políticas de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos. Aí teve início o grande movimento de liberalização de capitais, que os americanos denominaram de "deregulation". A mão invisível de Adam Smith controlaria a falta de regulamentação. Uma das consequências do facto de dinheiro gerar dinheiro foi que a década de 90 viu aumentar o número de milionários e multimilionários, movimento que, aliás, ainda hoje prossegue. Infelizmente, a pobreza e a fome mantiveram-se e agravaram-se em numerosos países, mas noutros, como na China e na Índia, a externalização de serviços das nações mais desenvolvidas tanto da América como da Europa, a que se juntou um substancial investimento local na educação, permitiu reviravoltas significativas. Entretanto, países inicialmente com problemas, como o Brasil e a Rússia, gozaram das vantagens de possuírem ricas reservas energéticas.
Nos últimos anos, segundo Robert Kagan mencionou numa interessante conferência na Gulbenkian, os Estados Unidos envolveram-se em cerca de 13 conflitos diferentes. Nos atoleiros de Alá (Iraque e Afeganistão) têm-se dado mal e gasto rios de dinheiro. O todo-poderoso dólar começou há muito a vacilar, mas tudo se ia compondo, com alguns altos e baixos. À escala global, os Estados Unidos, os grandes campeões da gestão de empresas e gestão de capitais, com gurus que ganham muitíssimo bem a sua vida dando conferências em Buenos Aires, Varsóvia, Bratislava, no Rio de Janeiro, em Lisboa e tantas outras cidades do mundo, dominavam a cena. Porém, se na década de 90 houve uma considerável unipolaridade americana, agora já ninguém admite essa mesma unipolaridade. Hoje, fala-se em "multipolaridades".
A globalização que os ricos fizeram alastrar pelo mundo através de várias medidas, entre as quais se contam numerosos produtos financeiros inovadores, alojou-se com um vírus de irrealismo tão forte que fez distanciar enormemente a massa monetária contabilística da economia real. Há muito que se ouviam gritos de alerta clamando que a contabilidade empresarial, incluindo a bancária e de seguros, triplicava a verdadeira economia. Havia qualquer coisa como dois terços sem sustentabilidade palpável. Não creio que haja alguém que saiba calcular com grande exactidão a extensão do vírus, que se propagou praticamente a todo o planeta, um pouco como o HIV. Pensemos que se este vírus anda à solta, sem grande controlo, desde o final da década de 80, ele já terá deixado rasto por muito lado. Afinal, a ganância não é apanágio único dos americanos. No caso português, bastará ver o que se passou no aparentemente bem comportado BCP (Opus Dei oblige), no qual não foi preciso mais do que a entrada em cena de umas tantas comadres em desavença para que bastantes impurezas viessem ao de cima.
Tanto neste caso como a nível global, estamos ainda em plena operação de "desintoxicação". Total? Nem pensar! A avidez mencionada como tradicional pecado pelos cristãos mantém-se na cabeça das pessoas. Os objectivos gananciosos que são impostos pelos CEOs aos seus subordinados, que por sua vez os passam aos seus próprios subordinados, são por de mais irrealistas. Nada há que possa crescer sempre. A vida funciona na base de ciclos e não de linhas rectas ascendentes. Enquanto os empregados que contactam mais directamente com o público se esfalfam no reino da mentira para cumprir objectivos, com isso vendendo frequentemente a sua alma e carecendo depois de anseolíticos em doses elevadas, os grandes gestores banqueteiam-se com inimagináveis somas, que lhes são pagas mesmo que não sejam exactamente bem sucedidos.
Foi o mercado bancário subprime, i.e. usando clientes de segunda no crédito à habitação, que fez despoletar toda esta crise. Porém, ele está muito longe de ser o único culpado. Na América, decorre actualmente um debate interessantíssimo sobre o salvamento (bailout) que o governo americano decidiu fazer in extremis a várias instituições, criando de facto aquilo a que o senador republicano do Kentucky chamou ironicamente de "socialismo financeiro". Foi a mentira em cadeia, acoplada à arrogância e à desonestidade básica que só a aceitação da ganância como virtude pode admitir, que conduziu à situação actual. De uma maneira ou doutra, estamos todos dentro do problema. Há um turbilhão de ignorância perante os factos reais, uma incerteza que semi-paralisa a economia e agrava a situação. Encontramo-nos no meio de um furacão feito pelo homem. Em certa medida, "descobrir a careca" é bom, mas para chegarmos à cabeça-sem-pelo ainda será preciso muito. É, aliás, altamente duvidoso que a consigamos algum dia ver. Os off-shores protegem bem os ricos da queda do cabelo.
Dia a dia veremos o que nos reservam os próximos capítulos. Não nos esqueçamos, porém, de que este é um reality show a sério!
9/24/2008
Aprender é bom mas exige esforço
"O insucesso escolar aumenta porque preparamos cada vez menos os alunos para as dificuldades." Não posso deixar de concordar com estas palavras da psicóloga Dulce Gonçalves, do Centro de Psicologia Clínica e Educacional de Lisboa. "Aprender exige esforço, noção que deve ser transmitida às crianças desde cedo. Aprender é bom, mas passa por fases de dificuldades que nos obrigam a insistir. É preciso que os pais compreendam que é importante fortalecer as crianças e que isso não passa por evitar o erro, mas por ensiná-las a superá-lo. Cabe aos pais a criação de situações em que os filhos possam aprender a gerir as dificuldades e a frustração de perder."
Numa palavra, juntarei eu, são precisos sacrifícios para colher benefícios.
E, com o panorama que todos conhecemos, vem agora a Ministra da Educação afirmar que um dos objectivos da sua equipa é alcançar nos próximos anos cem por cento de aprovações no final do nono ano de escolaridade! Estamos cada vez mais no país do wishful thinking e do distanciamento da verdade. Será que a ministra toma toda a população do seu país por infantil e não-educada?
Numa palavra, juntarei eu, são precisos sacrifícios para colher benefícios.
E, com o panorama que todos conhecemos, vem agora a Ministra da Educação afirmar que um dos objectivos da sua equipa é alcançar nos próximos anos cem por cento de aprovações no final do nono ano de escolaridade! Estamos cada vez mais no país do wishful thinking e do distanciamento da verdade. Será que a ministra toma toda a população do seu país por infantil e não-educada?
9/19/2008
Palavras cruzadas do antigo império
Estou longe de ser doidinho por palavras cruzadas, mas admito que ao longo dos anos já tive bastantes vezes aqueles quadradinhos à minha frente à espera de serem preenchidos na horizontal e na vertical. Especialmente antes de adormecer e após um dia mais ou menos fatigante, um problema de palavras cruzadas pode ser o melhor dos soporíferos: a certa altura, são os nossos olhos que começam a cruzar-se. Para dentro. Uma, duas, três vezes. Aí não há outro remédio senão largar tudo e mergulhar no mais profundo dos sonos.
As típicas palavras cruzadas portuguesas têm onze quadradinhos para o lado e outros onze para baixo. São geralmente mais fáceis quando têm mais de vinte casas tapadas e as palavras a escrever se reduzem basicamente a monossílabos e a dissílabos. Quando se fazem as palavras cruzadas do mesmo jornal, a certa altura aprendemos os truques do autor: já sabemos que o rio suíço é o Aar, embora não façamos ideia onde ele corre. O vácuo é, algo estranhamente, "ar". Os cabelos brancos são "cãs".
Quando há tempos estive na Índia, vi-me a certa altura sentado num enorme elefante, conduzido por alguém que, segundo o autor ou autora das minhas palavras cruzadas, deveria ser um "amal" - "condutor de elefantes na Índia". Era assim que eles se chamavam?, perguntei. O indiano que cavalgava o bicho cerca de um metro à minha frente disse-me que não conhecia a palavra. A conclusão a que cheguei foi imediata: aquele indivíduo podia ser encartado para conduzir elefantes na Índia, mas não costumava fazer palavras cruzadas cá das nossas.
Foi aí que me imaginei a cavalgar elefantes pelas terras do antigo império português fora, à cata de palavras deste tipo. A questão é que o velho império acaba por pregar-nos partidas. Quando um dia for à Amazónia hei-de procurar um sapo que por lá vive e que, com três letrinhas apenas, se chama "aru". Perto, deve haver aves com o estranho nome de "hia", com h e tudo. Espero ardentemente encontrá-los. E, aproveitando o facto de estar no Brasil, hei-de ver se há realmente alguma gaivota que se chame "átia" e se existe, algures naquele vasto país, uma espécie de macaco de nome "mico". Ver para crer! Não quero mais decepções como a do "amal"!
Em Cabo Verde já me confirmaram que "liar" é torrar milho. Fiquei mais contente. Porém, continuo sem ter a confirmação se a árvore "paco" existe na vasta Angola de que tanto gostei e onde adorava voltar um dia. Mas antes tenho que ir a Timor para ver se um dos dialectos locais se chama "nanete" e se uma espécie de saia dos guerreiros lá desse longínquo país é "tais".
Umas coisas são verdade, outras algo distanciadas dessa mesma verdade. Pelo menos assim parece. Ou serão apenas "as malhas que o império tece"?
As típicas palavras cruzadas portuguesas têm onze quadradinhos para o lado e outros onze para baixo. São geralmente mais fáceis quando têm mais de vinte casas tapadas e as palavras a escrever se reduzem basicamente a monossílabos e a dissílabos. Quando se fazem as palavras cruzadas do mesmo jornal, a certa altura aprendemos os truques do autor: já sabemos que o rio suíço é o Aar, embora não façamos ideia onde ele corre. O vácuo é, algo estranhamente, "ar". Os cabelos brancos são "cãs".
Quando há tempos estive na Índia, vi-me a certa altura sentado num enorme elefante, conduzido por alguém que, segundo o autor ou autora das minhas palavras cruzadas, deveria ser um "amal" - "condutor de elefantes na Índia". Era assim que eles se chamavam?, perguntei. O indiano que cavalgava o bicho cerca de um metro à minha frente disse-me que não conhecia a palavra. A conclusão a que cheguei foi imediata: aquele indivíduo podia ser encartado para conduzir elefantes na Índia, mas não costumava fazer palavras cruzadas cá das nossas.
Foi aí que me imaginei a cavalgar elefantes pelas terras do antigo império português fora, à cata de palavras deste tipo. A questão é que o velho império acaba por pregar-nos partidas. Quando um dia for à Amazónia hei-de procurar um sapo que por lá vive e que, com três letrinhas apenas, se chama "aru". Perto, deve haver aves com o estranho nome de "hia", com h e tudo. Espero ardentemente encontrá-los. E, aproveitando o facto de estar no Brasil, hei-de ver se há realmente alguma gaivota que se chame "átia" e se existe, algures naquele vasto país, uma espécie de macaco de nome "mico". Ver para crer! Não quero mais decepções como a do "amal"!
Em Cabo Verde já me confirmaram que "liar" é torrar milho. Fiquei mais contente. Porém, continuo sem ter a confirmação se a árvore "paco" existe na vasta Angola de que tanto gostei e onde adorava voltar um dia. Mas antes tenho que ir a Timor para ver se um dos dialectos locais se chama "nanete" e se uma espécie de saia dos guerreiros lá desse longínquo país é "tais".
Umas coisas são verdade, outras algo distanciadas dessa mesma verdade. Pelo menos assim parece. Ou serão apenas "as malhas que o império tece"?
9/17/2008
Critérios jornalísticos
Se se fizesse um inquérito questionando qual o critério que as pessoas consideram mais importante num jornal, quase de certeza que, a par do habitual "Não sabe / não responde", viria o critério da objectividade. Ser objectivo, dizer o que se passa no mundo tal e qual, parece, em princípio, ser um bom critério. Mas será mesmo o critério mais seguido? Ou serão outros que geralmente nem escritos estão? Vejamos três deles: o critério da afinidade, o da novidade-sensacionalidade e o da agradabilidade.
Uma criança arguta que aprenda a ler e veja pela primeira vez um jornal com olhos de ver é capaz de perguntar ao pai ou à mãe como é possível que todos os dias aconteçam no mundo coisas para preencher exactamente um jornal. A resposta do adulto, óbvia, é a de que no mundo acontecem muitas coisas mais do que aquelas que aparecem ali, tantas de facto que o jornal tem de fazer uma selecção.
E como se faz essa selecção? Mais pela objectividade ou preferencialmente pelo potencial interesse das notícias para o leitor? Se, afinal, o jornal é feito para o leitor, que o compra, parece justo que seja ele que esteja no centro da selecção de notícias. Isso retirará alguma objectividade ao que se passa no mundo? Certamente que sim. Haverá dias em que o jornal não trará uma única notícia do Brasil, mas certamente que todos os jornais do Brasil trarão um número considerável de notícias do país. Portugueses que estão fora da sua pátria e não usam a Internet lastimam frequentemente o facto de o jornal que lêem não conter nada sobre Portugal. É assim mesmo. Porquê? Porque existem critérios que dizem respeito à fidelização do público ou à captura de novos leitores. São critérios como os acima mencionados.
Brevemente, porque o assunto dá pano para mangas, ilustre-se o que cada um desses critérios significa. O conceito de afinidade inclui algo que, em certa medida, tem a ver connosco. Assim, um caso de homicídio triplo ocorrido na China, país longínquo para nós, é natural que não tenha o mesmo significado que um outro ocorrido à nossa porta, seja em Tomar, Leiria ou no Porto. Este será relatado, o outro ficará excluído. Um jogo de futebol disputado na Roménia entre duas equipas estrangeiras, sendo que numa delas alinham cinco jogadores portugueses, pode merecer um comentário relativamente detalhado devido à afinidade que sentimos por jogadores do nosso país. Em caso de guerra entre uma nação ocidental e um povo islâmico, a contabilidade dos mortos ocidentais e sua identificação surgem na notícia como algo natural aos olhos do leitor, que lerá com menos interesse o número de mortos inimigos, reduzidos a contagens de centenas ou de milhares. No caso das bombas atómicas lançadas por aviões dos EUA sobre o Japão no final da 2ª Guerra Mundial, conhece-se o nome dos pilotos americanos mas nem um nome de qualquer um dos muitos milhares de mortos japoneses. O mesmo se passa numa guerrilha dos dias de hoje entre israelitas e palestinianos. O nome, idade e algo sobre a família dos israelitas é reportado, mas nada sobra no noticiário identificativo dos palestinianos. Tudo lembra os velhos filmes americanos do oeste entre índios e brancos: quando um dos "nossos" é alvejado e morre em combate, assiste-se geralmente aos seus últimos momentos, ouvimos até as suas derradeiras palavras. Os índios ululantes podem morrer às centenas: são todos iguais.
Como é evidente, esta forma de noticiar coloca-nos automaticamente de um dos lados da barricada. Belos mandamentos cristãos, como "Amar o próximo como a nós mesmos", levam à definição particular que cada um faz do "seu" próximo. Bolas para a objectividade!
A novidade-sensacionalidade é outro dos critérios jornalísticos importantes. Os leitores gostam de estar informados sobre as últimas descobertas da medicina, sobre o último modelo de automóvel lançado no mercado, sobre o filho que a actriz X teve do actor Y, ou sobre algo extravagante e diferente. O jornal inclui esse aspecto, embora muitas vezes sob o ponto de vista de importância objectiva da notícia – algo que se pode medir apenas passado algum tempo – a relevância seja nula ou quase.
Quanto ao critério da agradabilidade, digamos que ele implica algo mais do que a simples inclusão: o realce. Se um atleta português logra alcançar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, torna-se óbvio que a notícia tem que vir em grandes parangonas na página da frente. Agrada-nos. É como uma prenda que recebemos. Se, pelo contrário, ele fracassou e não conquistou qualquer medalha, o facto será em princípio noticiado em letras pequenas na página da frente, que remeterá o assunto para as páginas interiores. Afinal, a página principal deve trazer - tanto quanto possível - notícias agradáveis, a não ser que a sua sensacionalidade se sobreponha. Todo o leitor gosta de ver a página de rosto do seu jornal com algo que lhe vai dar prazer / interesse ler. Tal como os filmes e as estações de televisão escolhem pessoas bonitas para o seu cast ou staff porque são atraentes, assim também o jornal procura atrair. É um critério que pouco terá de objectivo relativamente ao muito que se passa no mundo, mas, pensando melhor, quem gosta da objectividade? Como dizia o espanhol José Bergamín, grande discípulo de Unamuno: "Se eu fosse objecto, seria objectivo; como sou sujeito, sou subjectivo."
Uma criança arguta que aprenda a ler e veja pela primeira vez um jornal com olhos de ver é capaz de perguntar ao pai ou à mãe como é possível que todos os dias aconteçam no mundo coisas para preencher exactamente um jornal. A resposta do adulto, óbvia, é a de que no mundo acontecem muitas coisas mais do que aquelas que aparecem ali, tantas de facto que o jornal tem de fazer uma selecção.
E como se faz essa selecção? Mais pela objectividade ou preferencialmente pelo potencial interesse das notícias para o leitor? Se, afinal, o jornal é feito para o leitor, que o compra, parece justo que seja ele que esteja no centro da selecção de notícias. Isso retirará alguma objectividade ao que se passa no mundo? Certamente que sim. Haverá dias em que o jornal não trará uma única notícia do Brasil, mas certamente que todos os jornais do Brasil trarão um número considerável de notícias do país. Portugueses que estão fora da sua pátria e não usam a Internet lastimam frequentemente o facto de o jornal que lêem não conter nada sobre Portugal. É assim mesmo. Porquê? Porque existem critérios que dizem respeito à fidelização do público ou à captura de novos leitores. São critérios como os acima mencionados.
Brevemente, porque o assunto dá pano para mangas, ilustre-se o que cada um desses critérios significa. O conceito de afinidade inclui algo que, em certa medida, tem a ver connosco. Assim, um caso de homicídio triplo ocorrido na China, país longínquo para nós, é natural que não tenha o mesmo significado que um outro ocorrido à nossa porta, seja em Tomar, Leiria ou no Porto. Este será relatado, o outro ficará excluído. Um jogo de futebol disputado na Roménia entre duas equipas estrangeiras, sendo que numa delas alinham cinco jogadores portugueses, pode merecer um comentário relativamente detalhado devido à afinidade que sentimos por jogadores do nosso país. Em caso de guerra entre uma nação ocidental e um povo islâmico, a contabilidade dos mortos ocidentais e sua identificação surgem na notícia como algo natural aos olhos do leitor, que lerá com menos interesse o número de mortos inimigos, reduzidos a contagens de centenas ou de milhares. No caso das bombas atómicas lançadas por aviões dos EUA sobre o Japão no final da 2ª Guerra Mundial, conhece-se o nome dos pilotos americanos mas nem um nome de qualquer um dos muitos milhares de mortos japoneses. O mesmo se passa numa guerrilha dos dias de hoje entre israelitas e palestinianos. O nome, idade e algo sobre a família dos israelitas é reportado, mas nada sobra no noticiário identificativo dos palestinianos. Tudo lembra os velhos filmes americanos do oeste entre índios e brancos: quando um dos "nossos" é alvejado e morre em combate, assiste-se geralmente aos seus últimos momentos, ouvimos até as suas derradeiras palavras. Os índios ululantes podem morrer às centenas: são todos iguais.
Como é evidente, esta forma de noticiar coloca-nos automaticamente de um dos lados da barricada. Belos mandamentos cristãos, como "Amar o próximo como a nós mesmos", levam à definição particular que cada um faz do "seu" próximo. Bolas para a objectividade!
A novidade-sensacionalidade é outro dos critérios jornalísticos importantes. Os leitores gostam de estar informados sobre as últimas descobertas da medicina, sobre o último modelo de automóvel lançado no mercado, sobre o filho que a actriz X teve do actor Y, ou sobre algo extravagante e diferente. O jornal inclui esse aspecto, embora muitas vezes sob o ponto de vista de importância objectiva da notícia – algo que se pode medir apenas passado algum tempo – a relevância seja nula ou quase.
Quanto ao critério da agradabilidade, digamos que ele implica algo mais do que a simples inclusão: o realce. Se um atleta português logra alcançar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, torna-se óbvio que a notícia tem que vir em grandes parangonas na página da frente. Agrada-nos. É como uma prenda que recebemos. Se, pelo contrário, ele fracassou e não conquistou qualquer medalha, o facto será em princípio noticiado em letras pequenas na página da frente, que remeterá o assunto para as páginas interiores. Afinal, a página principal deve trazer - tanto quanto possível - notícias agradáveis, a não ser que a sua sensacionalidade se sobreponha. Todo o leitor gosta de ver a página de rosto do seu jornal com algo que lhe vai dar prazer / interesse ler. Tal como os filmes e as estações de televisão escolhem pessoas bonitas para o seu cast ou staff porque são atraentes, assim também o jornal procura atrair. É um critério que pouco terá de objectivo relativamente ao muito que se passa no mundo, mas, pensando melhor, quem gosta da objectividade? Como dizia o espanhol José Bergamín, grande discípulo de Unamuno: "Se eu fosse objecto, seria objectivo; como sou sujeito, sou subjectivo."
9/13/2008
Amigos certos
A sensação de que estamos acompanhados é, ao que creio, das mais importantes para o homem. Nesta época de múltiplas incertezas, torna-se crucial, pelo menos para determinado tipo de pessoas em que me incluo, que haja "amigos" em pontos de apoio a um tempo banais e vitais.
Existem actos rotineiros que nos fazem sentir seguros: a nossa referência está lá; há marcos que balizam mais ou menos a nossa existência e nos delimitam umas fronteiras amigas.
Assim é que gostamos, a certa altura da nossa vida, de poder contar com o nosso médico a quem fazemos confidências ou contamos histórias, o nosso dentista que não nos causa qualquer pavor, o barbeiro que nos corta o cabelo há anos e a quem não precisamos de dar quaisquer instruções, o merceeiro com quem temos conversas informais, as pessoas da loja da fruta que nos recomendam aqueles morangos que acabaram de chegar ou estas bananinhas muito doces e apetecíveis, o mecânico que está pronto a desempanar-nos o carro e nos dá uma ajuda prioritária em caso de necessidade, o contabilista em quem confiamos, o restaurante onde somos tratados como clientes usuais e de onde podemos encomendar um prato para comer em casa, o calista que já nos conhece os pés, a empregada que tem uma ideia sábia dos nossos gostos, os amigos - mas toda esta gente faz parte dos amigos do nosso mundo - com quem nos sentimos bem a tagarelar, o homem da papelaria que já tem o jornal dobrado à nossa entrada, o encadernador que já nos fez muitos trabalhos e sempre bem, a senhora da padaria que sabe bem se preferimos o pão bem ou mal cozido e nos trata pelo nome, o empregado do banco que nos conhece e sabe qual a nossa profissão, o agente de viagens que, para além de ter uma ideia dos nossos gostos, ainda nos concede um pequeno desconto.
Este é um círculo muito positivo, que nos fornece paz e proporciona um cerco benigno. Ter esta entourage amiga sabe imensamente bem. Facilita a vida, dá-lhe um contexto. O desaparecimento do dentista pode causar pânico. Idem da empregada. Por isso e porque deles gostámos e gostamos, procuramos mantê-los e dedicamos-lhes a nossa amizade e a eles recorremos sempre que necessário. É um serviço pessoalizado, tão diferente do anonimato dos centros comerciais, das policlínicas, de todos os outros lugares que não são estes.
No entanto, sinto que para muitas pessoas ter esta soma de serviços fidelizados é uma aberração. Para elas a mobilidade é o normal ou, pelo menos, não lhes causa qualquer angústia. Mobilismo pode ser associado a optimismo e a confiança. Será que o reverso também é verdadeiro?
Ao fim e ao cabo, esta enorme e reconfortante estabilidade constitui um tremendo contraste perante a tão propalada mudança. Ouve-se a todo o instante que nada é igual, tudo muda, tudo gira. Talvez até por isso, sabe bem passar pela tabacaria e constatar que o Alves ainda lá está.
Existem actos rotineiros que nos fazem sentir seguros: a nossa referência está lá; há marcos que balizam mais ou menos a nossa existência e nos delimitam umas fronteiras amigas.
Assim é que gostamos, a certa altura da nossa vida, de poder contar com o nosso médico a quem fazemos confidências ou contamos histórias, o nosso dentista que não nos causa qualquer pavor, o barbeiro que nos corta o cabelo há anos e a quem não precisamos de dar quaisquer instruções, o merceeiro com quem temos conversas informais, as pessoas da loja da fruta que nos recomendam aqueles morangos que acabaram de chegar ou estas bananinhas muito doces e apetecíveis, o mecânico que está pronto a desempanar-nos o carro e nos dá uma ajuda prioritária em caso de necessidade, o contabilista em quem confiamos, o restaurante onde somos tratados como clientes usuais e de onde podemos encomendar um prato para comer em casa, o calista que já nos conhece os pés, a empregada que tem uma ideia sábia dos nossos gostos, os amigos - mas toda esta gente faz parte dos amigos do nosso mundo - com quem nos sentimos bem a tagarelar, o homem da papelaria que já tem o jornal dobrado à nossa entrada, o encadernador que já nos fez muitos trabalhos e sempre bem, a senhora da padaria que sabe bem se preferimos o pão bem ou mal cozido e nos trata pelo nome, o empregado do banco que nos conhece e sabe qual a nossa profissão, o agente de viagens que, para além de ter uma ideia dos nossos gostos, ainda nos concede um pequeno desconto.
Este é um círculo muito positivo, que nos fornece paz e proporciona um cerco benigno. Ter esta entourage amiga sabe imensamente bem. Facilita a vida, dá-lhe um contexto. O desaparecimento do dentista pode causar pânico. Idem da empregada. Por isso e porque deles gostámos e gostamos, procuramos mantê-los e dedicamos-lhes a nossa amizade e a eles recorremos sempre que necessário. É um serviço pessoalizado, tão diferente do anonimato dos centros comerciais, das policlínicas, de todos os outros lugares que não são estes.
No entanto, sinto que para muitas pessoas ter esta soma de serviços fidelizados é uma aberração. Para elas a mobilidade é o normal ou, pelo menos, não lhes causa qualquer angústia. Mobilismo pode ser associado a optimismo e a confiança. Será que o reverso também é verdadeiro?
Ao fim e ao cabo, esta enorme e reconfortante estabilidade constitui um tremendo contraste perante a tão propalada mudança. Ouve-se a todo o instante que nada é igual, tudo muda, tudo gira. Talvez até por isso, sabe bem passar pela tabacaria e constatar que o Alves ainda lá está.
9/10/2008
Democracia à la portugaise
Vivemos, todos o dizem, em regime democrático, o tal que mereceu de Churchill uma famosa reflexão no Parlamento britânico em 1947: "Há muitas formas de governo que já foram experimentadas, e outras continuarão a ser tentadas neste mundo de pecado e de desgraças. Ninguém pretende que a democracia seja algo perfeito e sem mácula. Na realidade, já se disse que a democracia é a pior forma de governo, se exceptuarmos todas as outras formas que têm sido ensaiadas através dos tempos."
A que vem isto a propósito? Da questão do nosso tempo de vida, o que inclui um ponto interessante: conhecermos, através da nossa experiência directa, ou não conhecermos, um sistema alternativo.
Nos tempos salazaristas, de que só os maiores de 45 anos efectivamente se recordam, um número significativo de cidadãos ansiava por liberdade, detestava a PIDE e abominava a impossibilidade de expressar livremente as suas ideias. Eles sabiam, por experiência própria ou alheia, que estas ideias podiam, só por si, mandar alguém para o calabouço, além de eventualmente impedir professores de ensinar, médicos e advogados de exercerem a sua actividade da forma que desejavam, engenheiros e arquitectos de concorrerem a grandes obras e ganharem os respectivos concursos, etc. Havia no ar uma aspiração por uma sociedade mais igualitária, com menos clãs elitistas protegidos pelo Estado, Estado esse que por sua vez esses clãs protegiam. Ansiava-se por uma Igreja verdadeiramente de Cristo, descomprometida com o sistema, que apoiasse o povo em vez de continuamente lhe pregar o conceito de resignação numa vida que, feliz ou infelizmente para nós, é só uma. Ciciava-se contra a contínua invocação eclesiástica do Além da bem-aventurança, bem mais feliz do que a vida terrena que os mais pobres levavam. A partir de certa altura, manter o empregozinho certo começava a não chegar, embora isso constituísse uma garantia apreciada. Neste quadro, a democracia, com a liberdade que nos dava de escolher os governantes que nós bem queríamos, era bem-vinda. E bem-vinda ela foi em 1974.
Um dos grandes problemas de hoje reside no facto de que a promessa de democracia acabou por não alterar substancialmente a sociedade, desequilibrando ainda mais as classes sociais e remetendo para a pobreza dos subúrbios das grandes cidades uma quantidade muito apreciável de cidadãos que se quedam a uma enorme distância em termos de poder económico das classes abastadas. E estas, em maior número do que anteriormente, não mudaram significativamente. Encontramos o mesmo Estado forte mas nem sempre justo, um sistema fiscal que não conduz a uma distribuição mais equilibrada da riqueza, uma educação pouco atraente a julgar pelos resultados e pelo elevado número dos que a abandonam, uma justiça ultra-lenta e dispendiosa influenciada muitas vezes pelos poderosos, que chegam a condicionar mudanças relevantes nas leis que os favorecem em particular.
Há, porém, algo aparentemente decisivo que mudou: ninguém é preso por se manifestar contra o Governo. Pode, contudo, ter a certeza de que não sairá beneficiado se esse Governo se mantiver. Houve, também, notórias melhorias materiais: mais e melhores vias de comunicação; educação mais expandida, embora não necessariamente de nível mais elevado; cuidados de saúde mais abrangentes; lares de terceira idade e creches em maior número; segurança social mais inclusiva; passes sociais nos transportes das grandes cidades.
Todavia, são muitas as vezes que eu e tantos outros nos questionamos: por que razão não tem funcionado melhor a democracia em Portugal? Já foi há mais de 30 anos que a revolução de 74 ocorreu e sente-se que o país tem hoje não só a maior desigualdade social da Europa-dos-25 como possui uma economia débil e em mau estado. Porquê?
Parafraseando Almada Negreiros, dir-se-á que já foram feitos todos os diagnósticos para identificar a doença; só falta curar o doente. Portanto, mais um diagnóstico será apenas... um diagnóstico mais. Como cidadão, não me resigno no entanto a aceitar o facto e é por isso que procuro achar um conjunto de razões que me convença.
No papel, parecemos sem dúvida um país democrático. Temos eleições livres, podemos votar em quem quisermos ou deixar de votar se assim o entendermos, temos liberdade de expressão na rua, na Internet, na imprensa e nos outros media. Contudo, a nossa sensação geral é a de que o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior: dados estatísticos colocam-nos em posição muito pouco favorável no cotejo com outros países da União Europeia. Por seu lado, a imagem do país em termos de produtividade é fraca, os problemas do sistema de segurança social agravam-se de dia para dia, a economia não arranca apesar das vultosas contribuições que continuamos a auferir dos nossos parceiros europeus mais desenvolvidos, a taxa de desemprego está a níveis elevados, o endividamento das famílias atingiu valores inimagináveis há duas dezenas de anos. Porque é que estamos assim? Por que é que a máquina não engrena?
Não me parece que o problema seja de pessoas individuais, mas de modelos de vida em sociedade, de organização social, de controlos e de confiança. Já há muito sabemos que o nosso passado não nos ajuda. Portugal e os seus governantes nunca tiveram que pensar muito em modelos de desenvolvimento. Tal como sucede com os países grandes produtores de petróleo que induzem uma vida fácil aos seus governantes, Portugal teve os seus três impérios coloniais, que o condicionaram igualmente para uma vida facilitada para uns tantos cidadãos, poucos, e árdua para os restantes. As riquezas que vieram primeiro das Índias, do Brasil depois, e de África por fim, levaram o país a depender do Estado. O Estado era rico, e quem queria ser rico arranjava cunhas para mamar da teta estatal. A Igreja católica não contestava a situação, porque de uma maneira geral também ela encontrou no Estado um aliado constante - aliança com vantagens mútuas, diga-se. Houve uma altura, no final do século XVII e depois durante o século XVIII, em que o parlamento português não foi convocado durante várias décadas. Não havia necessidade, porque as riquezas jorravam no país vindas das colónias e o parlamento normalmente reunia-se basicamente para autorizar empréstimos à coroa ou aprovar tratados. Por aqui se vê a falta de raízes democráticas do país. O QPM (quero, posso e mando) era a regra. O medo imperava. O resultado óbvio era o "Não vejas, não oiças, não fales, para que não te entales".
Devido ao afluxo de riqueza que era fácil para o país, com recurso a uma elevada taxa de trabalho escravo que imperou durante vários séculos, o período em que mais se pensou Portugal em termos organizativos e sociais terá sido no século XIX, desde a independência do Brasil na década de 1820 até ao início do século XX com a proclamação da República. Durante esse tempo, a África contou pouco relativamente - não foi de maneira nenhuma um substituto do Brasil perdido. Foi só mais tarde que os territórios africanos passaram a desempenhar um papel relevante, bem demonstrado pelo facto de Portugal se ter envolvido numa guerra colonial que durou treze longos anos, entre 1961 e 1974.
Curiosamente, e já o tenho defendido, a adesão à Europa foi um pau-de-dois-bicos para Portugal. Por um lado, o país teve de se submeter a regras disciplinadoras europeias, as quais no entanto esteve longe de cumprir sempre. Por outro, os fundos-quase-sem-fundo que foi recebendo da UE conduziram Portugal à preguiça habitual do tempo dos impérios. E como era o Estado a receber os vastos fundos europeus para depois os distribuir, logo se arranjou a habitual clientela que, com cunhas ou através de uma soi-disante linhagem dinástica de famílias, conseguiu arrecadar para si o sumo, deixando apenas a polpa para o resto da população. Só assim se entende que fundos que se destinavam a nivelar o país de uma maneira adequada tivessem, ao fim de décadas, levado ao actual despovoamento de grande parte do interior, ao eucaliptugal que todos vemos, ao abandono de aldeias, ao fecho de escolas e de hospitais. Salvaram-se as vias de comunicação e outras benfeitorias já atrás mencionadas.
Ao examinarmos a legislação, porém, parece que tudo corre sobre esferas. É a fachada a funcionar, o que não é muito diferente dos tempos do Estado Novo de Salazar. Os propósitos são bem enunciados nos preâmbulos legislativos, embora seja frequente que, mais à frente, o articulado das leis não coincida parcialmente com esses propósitos declarados nos intróitos. O aspecto primordial é, porém, outro: cumpre-se a lei? A justiça é rápida e igual para todos?
Entramos aqui num dos pontos fulcrais da vida portuguesa, à volta do qual muita coisa gira e faz emperrar a máquina. É algo que, em termos reduzidos se pode dizer que prolonga o espírito colonialista do passado: uns tantos privilegiados colonizam todos os restantes.
As sociedades que vivem em democracia, com liberdade de expressão e maior poder de iniciativa do que as que vivem sob regime ditatorial, são por natureza conflituosas. Daqui resulta uma condição sine qua non para que essas sociedades funcionem: os conflitos têm, necessariamente, de ser resolvidos com celeridade, com credibilidade e transparência.
Outra condição essencial é que exista uma real separação de poderes - entre o legislativo, o executivo e o judicial - e um modo expedito e eficaz de controlar os vários poderes.
O não-preenchimento destes aspectos fundamentais pela democracia portuguesa acarreta vastas consequências no andamento do país, seja em termos sociais, seja económicos. Abala a confiança entre as instituições e as pessoas, estabelece desigualdades gritantes no tratamento dos cidadãos, com uns a escaparem constantemente da alçada da justiça através de métodos ardilosos de adiamentos e consequentes prescrições, enquanto que os restantes têm que arcar com uma justiça que é não só lenta mas também dispendiosa. Desacredita os políticos que estão na base da formulação das leis e lança a desconfiança sobre eles no sentido de promoverem "arranjinhos" para si próprios, os seus pares e os seus compadres. Mostra uns governantes e gestores públicos irresponsáveis, na medida em que acabam por não ter que responder pelos seus actos, mesmo que estes tenham sido prejudiciais para o erário público. Passa a praticar-se a ética de favores em vez da ética de valores. A fidelocracia impera sobre a meritocracia. Tudo junto contribui para minar a democracia nas suas mais profundas raízes de tratamento igualitário, o que corrompe depois muito do tronco, dos ramos e das folhas da árvore democrática. Com isto nasce e desenvolve-se um óbvio descontentamento entre as pessoas, uma queixa constante, que os governantes tentam abafar através de palavras motivadoras e de resultados frequentemente manipulados. Se esta não fosse a verdade, no entanto, não estaríamos hoje na cauda de todos os países da UE15 e não teríamos sido já ultrapassados por alguns dos que constituem os actuais 25 membros da União Europeia.
Uma sociedade é um verdadeiro caldo de cultura. Como caldo, tem os seus condimentos próprios, de que o passado - que já passámos brevemente em revista - é um ingrediente relevante. A revolução de 1974 foi de facto uma revolução em muitos aspectos, mas noutros não conseguiu produzir mais do que uma interrupção temporária, a lembrar-nos uma frase que os anarcas postavam nas paredes durante o PREC: "Pedimos desculpa por esta democracia. A ditadura segue dentro de momentos." É neste sentido que muitos dos poderes-de-facto na sociedade portuguesa actual são aqueles que já dominavam no longo período anterior a 1974.
Porém, um condimento fundamental da sociedade portuguesa é a sua hipertolerância. O sabor do nosso caldinho democrático contém muito desta erva aromática. Esta hipertolerância revela-se através da falta de rigor ("podia estar pior"), ("eles não vão notar nada"), ("um pecado como este nem é pecado, e se for…"), da falta de pontualidade e de assiduidade ("se estamos a começar a reunião apenas quinze minutos depois da hora, podemos dar-nos por muito contentes"), ("Vá, vem embora connosco lá fora a um cafezinho! Não é por causa de dez minutinhos de paleio que o serviço deixa de se fazer!"), ("eu ia lá perder este joguinho na televisão! Não o pusessem durante as horas de serviço!"), ("então o meu filho não é mais importante do que o trabalho!?") e de milhentas outras coisas ("coitado, se roubou foi porque foi obrigado a isso; agora há os que roubam à descarada, todos os dias, e nunca vão presos!"), ("o homem não fez aquilo por mal, mas agora querem-no fazer pagar todo o dinheiro porque lesou o Estado!").
Esta hipertolerância, para além de ser conivente com o erro e com o desperdício, é anti-penalizadora. Dela resulta um notório rendimento menor no trabalho, uma produtividade assaz inferior à possível. Resulta também a impunidade das pessoas, especialmente dos mais poderosos. Tem sido assim, no entanto, o temperamento da maioria dos portugueses. Talvez um espírito religioso temeroso e latente leve as pessoas a serem tolerantes e a perdoarem em casos concretos, nomeadamente quando conhecem a pessoa e a vêem arrependida. E, admitindo que "há muitos ladrões", sai um provérbio bem luso - "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão" - que complica tudo.
Os mais astuciosos gostam de confundir legalidade com ética. Quando são apanhados a fazer algo de carácter duvidoso, escudam-se na lei: "É legal, ou não? Se não é ilegal, está correcto." Este é um argumento que faz o Estado perder rios de dinheiro. Casos concretos são os de governos que, a poucas semanas de passarem a pasta ao governo seguinte, firmam contratos para lugares da função pública com amigalhaços do partido, colocando-os em determinadas funções. Quando o governo seguinte entra em funções e quer fazer ocupar as suas cadeiras por homens ou mulheres que diz serem da sua confiança política, os recentemente colocados têm direito a chorudas indemnizações pagas pelos cofres do Estado. Se questionados relativamente a este assunto, os governantes substituídos retorquirão: "É ilegal? Se não estamos a ir contra a lei, é porque a lei consente. Logo…"
Não são apenas os governos que reagem deste modo. Também autarquias e, por exemplo, escolas de ensino superior poderão fazer o mesmo. Algumas destas últimas, antevendo embora que irão ter redução de alunos no ano seguinte, apressam-se a renovar os contratos com os docentes que mais lhes agradam. Se não houver muitas aulas para eles, tanto pior: os Conselhos Científicos já mostraram a sua amizade e solidariedade. É evidente que, com esta medida, os referidos Conselhos Científicos estão eventualmente a prejudicar o erário público, porque assim comprometem o Estado a pagar pelo menos um ano de ordenados aos professores em questão. Mas o que será mais importante: uma demonstração de poder corporativo ou os altos interesses da nação?
E com estas e outras, o défice estatal aumenta. Aumenta na administração pública central, na administração pública regional e local, nos ministérios da saúde e em tantos outros. Existe a sensação de que o Estado, como entidade sem rosto, é uma "pessoa" que se pode burlar à vontade. Entre prestar um favor a pessoas concretas e agradar a um Estado-sem-rosto que não agradece "e ainda nos chama tolos por fazermos o que fazemos", as pessoas que têm poder não hesitam.
E por que razão não hesitam? Porque não são verdadeiramente controladas. A noção de prestação de contas e responsabilização (accountability) passa ao lado de um grande número de pessoas. Há sempre o colega que fez muito pior. Há sempre a justiça que, quando vier e se vier, acaba por encanar a perna à rã e não resolver nada senão passados vários anos. Para quê ralarmo-nos se temos o fim-de-semana à porta?
Tudo isto representa um enorme défice democrático. Enquanto não se instaurar um sentimento de controlos tempestivos, em que todos sejam controlados no seu trabalho e produção - mas não na sua privacidade! -, nada verdadeiramente se endireita. Enquanto os gestores públicos demasiado gastadores não tiverem que desembolsar, após processos rápidos, quantias significativas por gestão danosa, a tendência é para que o mal continue a minar e se alastre. Que ao ministro seja instaurado um processo imediato por uso indevido de dinheiros, que ao autarca suceda o mesmo. Assim, moralizar-se-á a sociedade. Mas isso demorará bastante tempo, todos sabem. Aliás, diga-se, todos duvidam que esse objectivo seja alguma vez alcançado.
A que vem isto a propósito? Da questão do nosso tempo de vida, o que inclui um ponto interessante: conhecermos, através da nossa experiência directa, ou não conhecermos, um sistema alternativo.
Nos tempos salazaristas, de que só os maiores de 45 anos efectivamente se recordam, um número significativo de cidadãos ansiava por liberdade, detestava a PIDE e abominava a impossibilidade de expressar livremente as suas ideias. Eles sabiam, por experiência própria ou alheia, que estas ideias podiam, só por si, mandar alguém para o calabouço, além de eventualmente impedir professores de ensinar, médicos e advogados de exercerem a sua actividade da forma que desejavam, engenheiros e arquitectos de concorrerem a grandes obras e ganharem os respectivos concursos, etc. Havia no ar uma aspiração por uma sociedade mais igualitária, com menos clãs elitistas protegidos pelo Estado, Estado esse que por sua vez esses clãs protegiam. Ansiava-se por uma Igreja verdadeiramente de Cristo, descomprometida com o sistema, que apoiasse o povo em vez de continuamente lhe pregar o conceito de resignação numa vida que, feliz ou infelizmente para nós, é só uma. Ciciava-se contra a contínua invocação eclesiástica do Além da bem-aventurança, bem mais feliz do que a vida terrena que os mais pobres levavam. A partir de certa altura, manter o empregozinho certo começava a não chegar, embora isso constituísse uma garantia apreciada. Neste quadro, a democracia, com a liberdade que nos dava de escolher os governantes que nós bem queríamos, era bem-vinda. E bem-vinda ela foi em 1974.
Um dos grandes problemas de hoje reside no facto de que a promessa de democracia acabou por não alterar substancialmente a sociedade, desequilibrando ainda mais as classes sociais e remetendo para a pobreza dos subúrbios das grandes cidades uma quantidade muito apreciável de cidadãos que se quedam a uma enorme distância em termos de poder económico das classes abastadas. E estas, em maior número do que anteriormente, não mudaram significativamente. Encontramos o mesmo Estado forte mas nem sempre justo, um sistema fiscal que não conduz a uma distribuição mais equilibrada da riqueza, uma educação pouco atraente a julgar pelos resultados e pelo elevado número dos que a abandonam, uma justiça ultra-lenta e dispendiosa influenciada muitas vezes pelos poderosos, que chegam a condicionar mudanças relevantes nas leis que os favorecem em particular.
Há, porém, algo aparentemente decisivo que mudou: ninguém é preso por se manifestar contra o Governo. Pode, contudo, ter a certeza de que não sairá beneficiado se esse Governo se mantiver. Houve, também, notórias melhorias materiais: mais e melhores vias de comunicação; educação mais expandida, embora não necessariamente de nível mais elevado; cuidados de saúde mais abrangentes; lares de terceira idade e creches em maior número; segurança social mais inclusiva; passes sociais nos transportes das grandes cidades.
Todavia, são muitas as vezes que eu e tantos outros nos questionamos: por que razão não tem funcionado melhor a democracia em Portugal? Já foi há mais de 30 anos que a revolução de 74 ocorreu e sente-se que o país tem hoje não só a maior desigualdade social da Europa-dos-25 como possui uma economia débil e em mau estado. Porquê?
Parafraseando Almada Negreiros, dir-se-á que já foram feitos todos os diagnósticos para identificar a doença; só falta curar o doente. Portanto, mais um diagnóstico será apenas... um diagnóstico mais. Como cidadão, não me resigno no entanto a aceitar o facto e é por isso que procuro achar um conjunto de razões que me convença.
No papel, parecemos sem dúvida um país democrático. Temos eleições livres, podemos votar em quem quisermos ou deixar de votar se assim o entendermos, temos liberdade de expressão na rua, na Internet, na imprensa e nos outros media. Contudo, a nossa sensação geral é a de que o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior: dados estatísticos colocam-nos em posição muito pouco favorável no cotejo com outros países da União Europeia. Por seu lado, a imagem do país em termos de produtividade é fraca, os problemas do sistema de segurança social agravam-se de dia para dia, a economia não arranca apesar das vultosas contribuições que continuamos a auferir dos nossos parceiros europeus mais desenvolvidos, a taxa de desemprego está a níveis elevados, o endividamento das famílias atingiu valores inimagináveis há duas dezenas de anos. Porque é que estamos assim? Por que é que a máquina não engrena?
Não me parece que o problema seja de pessoas individuais, mas de modelos de vida em sociedade, de organização social, de controlos e de confiança. Já há muito sabemos que o nosso passado não nos ajuda. Portugal e os seus governantes nunca tiveram que pensar muito em modelos de desenvolvimento. Tal como sucede com os países grandes produtores de petróleo que induzem uma vida fácil aos seus governantes, Portugal teve os seus três impérios coloniais, que o condicionaram igualmente para uma vida facilitada para uns tantos cidadãos, poucos, e árdua para os restantes. As riquezas que vieram primeiro das Índias, do Brasil depois, e de África por fim, levaram o país a depender do Estado. O Estado era rico, e quem queria ser rico arranjava cunhas para mamar da teta estatal. A Igreja católica não contestava a situação, porque de uma maneira geral também ela encontrou no Estado um aliado constante - aliança com vantagens mútuas, diga-se. Houve uma altura, no final do século XVII e depois durante o século XVIII, em que o parlamento português não foi convocado durante várias décadas. Não havia necessidade, porque as riquezas jorravam no país vindas das colónias e o parlamento normalmente reunia-se basicamente para autorizar empréstimos à coroa ou aprovar tratados. Por aqui se vê a falta de raízes democráticas do país. O QPM (quero, posso e mando) era a regra. O medo imperava. O resultado óbvio era o "Não vejas, não oiças, não fales, para que não te entales".
Devido ao afluxo de riqueza que era fácil para o país, com recurso a uma elevada taxa de trabalho escravo que imperou durante vários séculos, o período em que mais se pensou Portugal em termos organizativos e sociais terá sido no século XIX, desde a independência do Brasil na década de 1820 até ao início do século XX com a proclamação da República. Durante esse tempo, a África contou pouco relativamente - não foi de maneira nenhuma um substituto do Brasil perdido. Foi só mais tarde que os territórios africanos passaram a desempenhar um papel relevante, bem demonstrado pelo facto de Portugal se ter envolvido numa guerra colonial que durou treze longos anos, entre 1961 e 1974.
Curiosamente, e já o tenho defendido, a adesão à Europa foi um pau-de-dois-bicos para Portugal. Por um lado, o país teve de se submeter a regras disciplinadoras europeias, as quais no entanto esteve longe de cumprir sempre. Por outro, os fundos-quase-sem-fundo que foi recebendo da UE conduziram Portugal à preguiça habitual do tempo dos impérios. E como era o Estado a receber os vastos fundos europeus para depois os distribuir, logo se arranjou a habitual clientela que, com cunhas ou através de uma soi-disante linhagem dinástica de famílias, conseguiu arrecadar para si o sumo, deixando apenas a polpa para o resto da população. Só assim se entende que fundos que se destinavam a nivelar o país de uma maneira adequada tivessem, ao fim de décadas, levado ao actual despovoamento de grande parte do interior, ao eucaliptugal que todos vemos, ao abandono de aldeias, ao fecho de escolas e de hospitais. Salvaram-se as vias de comunicação e outras benfeitorias já atrás mencionadas.
Ao examinarmos a legislação, porém, parece que tudo corre sobre esferas. É a fachada a funcionar, o que não é muito diferente dos tempos do Estado Novo de Salazar. Os propósitos são bem enunciados nos preâmbulos legislativos, embora seja frequente que, mais à frente, o articulado das leis não coincida parcialmente com esses propósitos declarados nos intróitos. O aspecto primordial é, porém, outro: cumpre-se a lei? A justiça é rápida e igual para todos?
Entramos aqui num dos pontos fulcrais da vida portuguesa, à volta do qual muita coisa gira e faz emperrar a máquina. É algo que, em termos reduzidos se pode dizer que prolonga o espírito colonialista do passado: uns tantos privilegiados colonizam todos os restantes.
As sociedades que vivem em democracia, com liberdade de expressão e maior poder de iniciativa do que as que vivem sob regime ditatorial, são por natureza conflituosas. Daqui resulta uma condição sine qua non para que essas sociedades funcionem: os conflitos têm, necessariamente, de ser resolvidos com celeridade, com credibilidade e transparência.
Outra condição essencial é que exista uma real separação de poderes - entre o legislativo, o executivo e o judicial - e um modo expedito e eficaz de controlar os vários poderes.
O não-preenchimento destes aspectos fundamentais pela democracia portuguesa acarreta vastas consequências no andamento do país, seja em termos sociais, seja económicos. Abala a confiança entre as instituições e as pessoas, estabelece desigualdades gritantes no tratamento dos cidadãos, com uns a escaparem constantemente da alçada da justiça através de métodos ardilosos de adiamentos e consequentes prescrições, enquanto que os restantes têm que arcar com uma justiça que é não só lenta mas também dispendiosa. Desacredita os políticos que estão na base da formulação das leis e lança a desconfiança sobre eles no sentido de promoverem "arranjinhos" para si próprios, os seus pares e os seus compadres. Mostra uns governantes e gestores públicos irresponsáveis, na medida em que acabam por não ter que responder pelos seus actos, mesmo que estes tenham sido prejudiciais para o erário público. Passa a praticar-se a ética de favores em vez da ética de valores. A fidelocracia impera sobre a meritocracia. Tudo junto contribui para minar a democracia nas suas mais profundas raízes de tratamento igualitário, o que corrompe depois muito do tronco, dos ramos e das folhas da árvore democrática. Com isto nasce e desenvolve-se um óbvio descontentamento entre as pessoas, uma queixa constante, que os governantes tentam abafar através de palavras motivadoras e de resultados frequentemente manipulados. Se esta não fosse a verdade, no entanto, não estaríamos hoje na cauda de todos os países da UE15 e não teríamos sido já ultrapassados por alguns dos que constituem os actuais 25 membros da União Europeia.
Uma sociedade é um verdadeiro caldo de cultura. Como caldo, tem os seus condimentos próprios, de que o passado - que já passámos brevemente em revista - é um ingrediente relevante. A revolução de 1974 foi de facto uma revolução em muitos aspectos, mas noutros não conseguiu produzir mais do que uma interrupção temporária, a lembrar-nos uma frase que os anarcas postavam nas paredes durante o PREC: "Pedimos desculpa por esta democracia. A ditadura segue dentro de momentos." É neste sentido que muitos dos poderes-de-facto na sociedade portuguesa actual são aqueles que já dominavam no longo período anterior a 1974.
Porém, um condimento fundamental da sociedade portuguesa é a sua hipertolerância. O sabor do nosso caldinho democrático contém muito desta erva aromática. Esta hipertolerância revela-se através da falta de rigor ("podia estar pior"), ("eles não vão notar nada"), ("um pecado como este nem é pecado, e se for…"), da falta de pontualidade e de assiduidade ("se estamos a começar a reunião apenas quinze minutos depois da hora, podemos dar-nos por muito contentes"), ("Vá, vem embora connosco lá fora a um cafezinho! Não é por causa de dez minutinhos de paleio que o serviço deixa de se fazer!"), ("eu ia lá perder este joguinho na televisão! Não o pusessem durante as horas de serviço!"), ("então o meu filho não é mais importante do que o trabalho!?") e de milhentas outras coisas ("coitado, se roubou foi porque foi obrigado a isso; agora há os que roubam à descarada, todos os dias, e nunca vão presos!"), ("o homem não fez aquilo por mal, mas agora querem-no fazer pagar todo o dinheiro porque lesou o Estado!").
Esta hipertolerância, para além de ser conivente com o erro e com o desperdício, é anti-penalizadora. Dela resulta um notório rendimento menor no trabalho, uma produtividade assaz inferior à possível. Resulta também a impunidade das pessoas, especialmente dos mais poderosos. Tem sido assim, no entanto, o temperamento da maioria dos portugueses. Talvez um espírito religioso temeroso e latente leve as pessoas a serem tolerantes e a perdoarem em casos concretos, nomeadamente quando conhecem a pessoa e a vêem arrependida. E, admitindo que "há muitos ladrões", sai um provérbio bem luso - "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão" - que complica tudo.
Os mais astuciosos gostam de confundir legalidade com ética. Quando são apanhados a fazer algo de carácter duvidoso, escudam-se na lei: "É legal, ou não? Se não é ilegal, está correcto." Este é um argumento que faz o Estado perder rios de dinheiro. Casos concretos são os de governos que, a poucas semanas de passarem a pasta ao governo seguinte, firmam contratos para lugares da função pública com amigalhaços do partido, colocando-os em determinadas funções. Quando o governo seguinte entra em funções e quer fazer ocupar as suas cadeiras por homens ou mulheres que diz serem da sua confiança política, os recentemente colocados têm direito a chorudas indemnizações pagas pelos cofres do Estado. Se questionados relativamente a este assunto, os governantes substituídos retorquirão: "É ilegal? Se não estamos a ir contra a lei, é porque a lei consente. Logo…"
Não são apenas os governos que reagem deste modo. Também autarquias e, por exemplo, escolas de ensino superior poderão fazer o mesmo. Algumas destas últimas, antevendo embora que irão ter redução de alunos no ano seguinte, apressam-se a renovar os contratos com os docentes que mais lhes agradam. Se não houver muitas aulas para eles, tanto pior: os Conselhos Científicos já mostraram a sua amizade e solidariedade. É evidente que, com esta medida, os referidos Conselhos Científicos estão eventualmente a prejudicar o erário público, porque assim comprometem o Estado a pagar pelo menos um ano de ordenados aos professores em questão. Mas o que será mais importante: uma demonstração de poder corporativo ou os altos interesses da nação?
E com estas e outras, o défice estatal aumenta. Aumenta na administração pública central, na administração pública regional e local, nos ministérios da saúde e em tantos outros. Existe a sensação de que o Estado, como entidade sem rosto, é uma "pessoa" que se pode burlar à vontade. Entre prestar um favor a pessoas concretas e agradar a um Estado-sem-rosto que não agradece "e ainda nos chama tolos por fazermos o que fazemos", as pessoas que têm poder não hesitam.
E por que razão não hesitam? Porque não são verdadeiramente controladas. A noção de prestação de contas e responsabilização (accountability) passa ao lado de um grande número de pessoas. Há sempre o colega que fez muito pior. Há sempre a justiça que, quando vier e se vier, acaba por encanar a perna à rã e não resolver nada senão passados vários anos. Para quê ralarmo-nos se temos o fim-de-semana à porta?
Tudo isto representa um enorme défice democrático. Enquanto não se instaurar um sentimento de controlos tempestivos, em que todos sejam controlados no seu trabalho e produção - mas não na sua privacidade! -, nada verdadeiramente se endireita. Enquanto os gestores públicos demasiado gastadores não tiverem que desembolsar, após processos rápidos, quantias significativas por gestão danosa, a tendência é para que o mal continue a minar e se alastre. Que ao ministro seja instaurado um processo imediato por uso indevido de dinheiros, que ao autarca suceda o mesmo. Assim, moralizar-se-á a sociedade. Mas isso demorará bastante tempo, todos sabem. Aliás, diga-se, todos duvidam que esse objectivo seja alguma vez alcançado.
9/09/2008
Alvíssaras
Dão-se alvíssaras a quem der informações sobre este texto ou aproximado, cujo original me foi roubado recentemente:
"Vamos pensar num Portugal melhor, mais inovador, aberto ao mundo e pleno de confiança; num Portugal de gente que acredita num futuro melhor e para isso trabalha laboriosamente. Ponhamos de lado todo aquele auto-flagelante pessimismo tão típico de alguns portugueses, aqueles a quem a acção confunde e que procuram através de palavras, não de actos, destruir o que outros tão denodadamente realizam. Ao invés, festejemos o triunfo de todos os que labutam diariamente, estudando, investigando e concretizando. Hoje em dia, não somos mais o Portugal de antanho, acanhado e com medo da concorrência. Pelo contrário, esta incentiva-nos a fazer mais e melhor para sermos competitivos não só no mercado nacional como também no europeu e mundial. É sempre com imenso prazer que deparamos com empresas portuguesas de sucesso a colocarem os seus produtos de topo nos Estados Unidos, na China e em toda a Europa. É esse o Portugal que queremos: um país de vanguarda, que olhe o mundo de frente e, sem complexos, avance. Quando um país quer, o homem sonha e a obra nasce."
"Vamos pensar num Portugal melhor, mais inovador, aberto ao mundo e pleno de confiança; num Portugal de gente que acredita num futuro melhor e para isso trabalha laboriosamente. Ponhamos de lado todo aquele auto-flagelante pessimismo tão típico de alguns portugueses, aqueles a quem a acção confunde e que procuram através de palavras, não de actos, destruir o que outros tão denodadamente realizam. Ao invés, festejemos o triunfo de todos os que labutam diariamente, estudando, investigando e concretizando. Hoje em dia, não somos mais o Portugal de antanho, acanhado e com medo da concorrência. Pelo contrário, esta incentiva-nos a fazer mais e melhor para sermos competitivos não só no mercado nacional como também no europeu e mundial. É sempre com imenso prazer que deparamos com empresas portuguesas de sucesso a colocarem os seus produtos de topo nos Estados Unidos, na China e em toda a Europa. É esse o Portugal que queremos: um país de vanguarda, que olhe o mundo de frente e, sem complexos, avance. Quando um país quer, o homem sonha e a obra nasce."
9/07/2008
A raiz dos conflitos
Tomemos o recente caso da Geórgia ou, numa escala infinitamente menor, disputas entre irmãos, discussões entre colegas, guerrilhas num casal, quezílias entre miúdos. Será possível encontrarmos algum ponto que seja comum aos conflitos que se geram? Existirá algo que, coincidentemente, seja presença constante na origem dos conflitos?
Creio que, se deixarmos o nosso pensamento fluir sem peias, acharemos uma resposta que será satisfatória pelo menos para alguns. Essa "descoberta" reveste-se da vantagem de, através do seu conhecimento, podermos evitar o deflagrar de discussões que por vezes acabam por ir mais longe do que o desejável, ou até de uma guerra que pode atingir proporções totalmente fora de controlo.
De qualquer forma, tudo depende muito da natureza e do bom-senso das pessoas envolvidas. Estas são passíveis de ser divididas em dois grandes grupos com enormes gradações entre si e forte probabilidade de variância: os pacíficos e os belicosos, ou, como na gíria militar se costuma dizer, as pombas e os falcões.
Quando é que duas adoráveis criancinhas se guerreiam? Quando uma delas entra no espaço da outra, v.g. quando se quer apoderar de um brinquedo, uma bola, uma bicicleta, etc. que não são propriamente seus.
Quando é que dois adolescentes se travam de razões? Quando, por exemplo, um pretende roubar ao outro a namorada, ou fabrica mentiras para o deitar abaixo, quedando-se ele, assim, por cima.
Quando é que dois (ou mais) familiares adultos entram em guerra? Quando, por exemplo numa questão de partilhas, não se entendem cordialmente quanto à divisão do território que cada um deve ocupar e discutem acaloradamente quem fica com quê, o que os leva frequentemente a incompatibilizarem-se - não raramente para o resto das suas vidas.
Quando é que um colega de trabalho se incompatibiliza com outro? Quando esse outro penetra no seu espaço e se insinua perfidamente junto das chefias para lhe ocupar o lugar.
Quando é que dois países se guerreiam? Quando um deles não respeita o espaço do outro, físico ou espiritual, i.e. quando um deles quer fazer valer os seus direitos sobre algo que não lhe pertence. Podem ser as águas de um rio, uma fronteira, uma região, um sistema de governo ou mesmo uma religião. Aí inicia-se um conflito, que é geralmente ganho pelo mais forte. O mais fraco pode chamar os seus amigos, que neste caso são designados como "aliados", e estes acudir-lhe-ão ou não, mediante os seus próprios interesses.
De qualquer forma, quando um conflito estala, existe geralmente um acumulado de situações anteriores que contribuem para a sua deflagração. Antagonismos enraizados, rivalidades mais ou menos ancestrais e ressentimentos do passado estão frequentemente por detrás de guerreamentos entre nações e pessoas: aspectos sociológicos e culturais que não são de modo nenhum despiciendos.
O mais curioso de tudo é o facto de a partilha do território do outro - sem invasão! - poder ser, pelo contrário, o início de uma longa amizade ou de um amor duradouro. Aí temos a comunhão de interesses comuns, com uma invasão pacífica e consentida por cada um dos intervenientes do seu próprio território, tanto física como espiritualmente. Essencial, depois, é que nenhum dos parceiros se proponha roubar a liberdade do outro, sendo prepotente, i.e. se lhe invadir o território, estala o conflito!
A conclusão desta despretensiosa e básica cogitação é que um conflito resulta essencialmente da ocupação indevida de um espaço ou território. A intromissão, que é tão vulgar entre os humanos, ocorre entre cidadãos comuns e entre países. É aqui que reside o cerne de qualquer conflito. Se os territórios individuais de cada um, do espaço físico à crença religiosa e à ideologia de uma maneira geral, forem respeitados por outros, haverá paz. A ânsia de conquista, de enriquecimento ou uma noção de superioridade sobre o outro levam à violação do espaço e à consequente conflitualidade.
Poderá e deverá questionar-se se uma paz constante, sem quaisquer conflitos de permeio, é conveniente. Poderá perguntar-se se a natural ambição do homem não traz mais benefícios do que desvantagens e, se por mor dela, os conflitos não acabam por ser benéficos. Estas são outras questões, a que cada um responderá da maneira que melhor entender e mais se coadune com o seu carácter e temperamento. De qualquer forma, a conclusão acima parece-me importante e útil como chamada de atenção. Pedir a outrem para "dar espaço" ou "dar tempo" faz bastante sentido.
Creio que, se deixarmos o nosso pensamento fluir sem peias, acharemos uma resposta que será satisfatória pelo menos para alguns. Essa "descoberta" reveste-se da vantagem de, através do seu conhecimento, podermos evitar o deflagrar de discussões que por vezes acabam por ir mais longe do que o desejável, ou até de uma guerra que pode atingir proporções totalmente fora de controlo.
De qualquer forma, tudo depende muito da natureza e do bom-senso das pessoas envolvidas. Estas são passíveis de ser divididas em dois grandes grupos com enormes gradações entre si e forte probabilidade de variância: os pacíficos e os belicosos, ou, como na gíria militar se costuma dizer, as pombas e os falcões.
Quando é que duas adoráveis criancinhas se guerreiam? Quando uma delas entra no espaço da outra, v.g. quando se quer apoderar de um brinquedo, uma bola, uma bicicleta, etc. que não são propriamente seus.
Quando é que dois adolescentes se travam de razões? Quando, por exemplo, um pretende roubar ao outro a namorada, ou fabrica mentiras para o deitar abaixo, quedando-se ele, assim, por cima.
Quando é que dois (ou mais) familiares adultos entram em guerra? Quando, por exemplo numa questão de partilhas, não se entendem cordialmente quanto à divisão do território que cada um deve ocupar e discutem acaloradamente quem fica com quê, o que os leva frequentemente a incompatibilizarem-se - não raramente para o resto das suas vidas.
Quando é que um colega de trabalho se incompatibiliza com outro? Quando esse outro penetra no seu espaço e se insinua perfidamente junto das chefias para lhe ocupar o lugar.
Quando é que dois países se guerreiam? Quando um deles não respeita o espaço do outro, físico ou espiritual, i.e. quando um deles quer fazer valer os seus direitos sobre algo que não lhe pertence. Podem ser as águas de um rio, uma fronteira, uma região, um sistema de governo ou mesmo uma religião. Aí inicia-se um conflito, que é geralmente ganho pelo mais forte. O mais fraco pode chamar os seus amigos, que neste caso são designados como "aliados", e estes acudir-lhe-ão ou não, mediante os seus próprios interesses.
De qualquer forma, quando um conflito estala, existe geralmente um acumulado de situações anteriores que contribuem para a sua deflagração. Antagonismos enraizados, rivalidades mais ou menos ancestrais e ressentimentos do passado estão frequentemente por detrás de guerreamentos entre nações e pessoas: aspectos sociológicos e culturais que não são de modo nenhum despiciendos.
O mais curioso de tudo é o facto de a partilha do território do outro - sem invasão! - poder ser, pelo contrário, o início de uma longa amizade ou de um amor duradouro. Aí temos a comunhão de interesses comuns, com uma invasão pacífica e consentida por cada um dos intervenientes do seu próprio território, tanto física como espiritualmente. Essencial, depois, é que nenhum dos parceiros se proponha roubar a liberdade do outro, sendo prepotente, i.e. se lhe invadir o território, estala o conflito!
A conclusão desta despretensiosa e básica cogitação é que um conflito resulta essencialmente da ocupação indevida de um espaço ou território. A intromissão, que é tão vulgar entre os humanos, ocorre entre cidadãos comuns e entre países. É aqui que reside o cerne de qualquer conflito. Se os territórios individuais de cada um, do espaço físico à crença religiosa e à ideologia de uma maneira geral, forem respeitados por outros, haverá paz. A ânsia de conquista, de enriquecimento ou uma noção de superioridade sobre o outro levam à violação do espaço e à consequente conflitualidade.
Poderá e deverá questionar-se se uma paz constante, sem quaisquer conflitos de permeio, é conveniente. Poderá perguntar-se se a natural ambição do homem não traz mais benefícios do que desvantagens e, se por mor dela, os conflitos não acabam por ser benéficos. Estas são outras questões, a que cada um responderá da maneira que melhor entender e mais se coadune com o seu carácter e temperamento. De qualquer forma, a conclusão acima parece-me importante e útil como chamada de atenção. Pedir a outrem para "dar espaço" ou "dar tempo" faz bastante sentido.
9/04/2008
Electrocutar moscas
A coisa não é exactamente nova no mercado, mas foi nova para mim este ano. No Verão, as moscas são tão chatas quanto a gripe o é no Inverno, pelo que um mata-moscas é, em muitos locais de férias, uma peça de equipamento imprescindível para a nossa felicidade. Com pernas e braços naturalmente expostos ao ar para não alimentarmos o calor, só se formos masoquistas a sério é que tiraremos prazer do facto de sermos atacados por moscas que nos utilizam como campos de aterragem. Portanto, com excepção dos produtos químicos que são tóxicos para os bichos mas também para nós, tudo o que venha à mão para o extermínio dessas máquinas voadoras vem a calhar.
Mas raquetes alimentadas a pilhas destinadas a abater moscas no ar?! É chinesice certa, ou pelo menos made in China. Devo dizer que a primeira vez que me deparei com o estranho artefacto, à venda por uns substantivos três euros, me lembrei da ideia das lides tauromáquicas praticadas pelos cavaleiros nobres da Idade Média para assim se treinarem para batalhas contra inimigos humanos: conseguir, do alto do cavalo, que a farpa entrasse no cachaço do bravo touro implicava que, na altura certa e noutro local, o cavaleiro seria suficientemente dextro para cravar a sua espada nas costas ou no peito do inimigo e assim despachá-lo.
Da mesma maneira, pensei, estas raquetes exterminadoras de moscas constituem um óptimo treino para o ténis. Quem acerta num desses insectos voadores ao mesmo tempo que prime o interruptor que faz accionar a pilha e leva à electrocussão da infeliz mosca, está apto a apanhar o bolar seja de um Nadal, seja de um Federer.
Até agora, entretanto, a nossa raquete não apanhou uma única mosca. O motivo é simples: por um lado, matá-las com um mata-moscas clássico enquanto estão pousadas é bem mais simples; por outro, dentro de casa fazer esses gestos amplos, plenos de velocidade e força, contém o elevado risco de levar, para além da mosca, umas tantas molduras com fotos de pessoas sorridentes, a que se juntarão facilmente mais uns tantos berloques de adorno ou mesmo a jarra querida que a tia Sofia nos ofereceu com tanto gosto.
Mas raquetes alimentadas a pilhas destinadas a abater moscas no ar?! É chinesice certa, ou pelo menos made in China. Devo dizer que a primeira vez que me deparei com o estranho artefacto, à venda por uns substantivos três euros, me lembrei da ideia das lides tauromáquicas praticadas pelos cavaleiros nobres da Idade Média para assim se treinarem para batalhas contra inimigos humanos: conseguir, do alto do cavalo, que a farpa entrasse no cachaço do bravo touro implicava que, na altura certa e noutro local, o cavaleiro seria suficientemente dextro para cravar a sua espada nas costas ou no peito do inimigo e assim despachá-lo.
Da mesma maneira, pensei, estas raquetes exterminadoras de moscas constituem um óptimo treino para o ténis. Quem acerta num desses insectos voadores ao mesmo tempo que prime o interruptor que faz accionar a pilha e leva à electrocussão da infeliz mosca, está apto a apanhar o bolar seja de um Nadal, seja de um Federer.
Até agora, entretanto, a nossa raquete não apanhou uma única mosca. O motivo é simples: por um lado, matá-las com um mata-moscas clássico enquanto estão pousadas é bem mais simples; por outro, dentro de casa fazer esses gestos amplos, plenos de velocidade e força, contém o elevado risco de levar, para além da mosca, umas tantas molduras com fotos de pessoas sorridentes, a que se juntarão facilmente mais uns tantos berloques de adorno ou mesmo a jarra querida que a tia Sofia nos ofereceu com tanto gosto.
Mas como objecto de museu ou tema para post no blogue, a raquete electrocutadora vale!
9/02/2008
O "jardim oriental" da Quinta dos Loridos
As férias de Agosto, passadas como habitualmente na calma Praia da Areia Branca, proporcionaram-me curtas saídas aos arredores. Destas saídas tenho de salientar a visita que fiz à zona do Carvalhal (concelho do Bombarral), incluindo uma quinta que pela primeira vez conheci quando ela ainda pertencia aos Sepúlvedas.
Foi no final da década de 70 que aconteceu eu ter numa das minhas turmas uma aluna daquela família, que me convidou insistentemente a ir visitar a quinta. Acabei por aceitar o convite, que aliás me proporcionou um belo dia. A área ocupada pela propriedade era a mesma de agora. O sustentáculo da quinta provinha sobretudo da produção de vinho e de fruta. Recordo-me que o que mais impressionava na Quinta dos Loridos (há quem escreva "Louridos") era a mansão, um belo solar de grandes dimensões, brasonado. Além disso, para mim os Sepúlvedas eram uma família que me evocava o império português do Oriente (Índia), sobretudo através de um dilacerante episódio da nossa história trágico-marítima. Na minha memória subsistia uma impressão, ainda forte, do que tinha lido na compilação feita por Bernardo de Brito dos relatos de naufrágios ocorridos com naus portuguesas vindas da Índia entre o século XVI e o XVII. Naus que vinham carregadas de pimenta e várias outras especiarias. O caso do galeão S. João, em que viajava de regresso a Lisboa o Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, tinha sido o mais impressionante. Depois de o galeão, batido pelas alterosas vagas do oceano, se ter afundado, o capitão e toda a sua família foram barbaramente mortos por nativos. O "fidalgo mui nobre e bom cavaleiro" foi, assim, mais uma vítima da ousadia de enfrentar mares nunca dantes navegados, como Camões lembra nos Lusíadas. A ânsia portuguesa de trazer nos barcos tanta carga quanto possível, mesmo se em excesso, para assim aumentar os lucros, a que se juntava o fraco estado de conservação de algumas das embarcações, como era o caso do galeão, também são factos concretos. Para mim foi interessante estar ali com outros Sepúlvedas, descendentes dos que possuíam a quinta desde o século XIX.
Mas os Loridos têm uma história bem mais antiga. Depois de estarem englobados nos coutos da Abadia de Alcobaça, tinham no século XV passado para as mãos de João Annes Lorido. No início do século XVI, o rei D. Manuel cedeu os terrenos da quinta a banqueiros italianos de Cremona (um dos portões da quinta tem grandes semelhanças com o portão da casa-mãe dos Lafeta em Cremona). Mais tarde, em meados do século XVIII, a quinta entrou na posse da família Sanches de Baena, que nela deixou o brasão que ainda hoje se mantém. Foi em meados do século XIX que os Sepúlvedas herdaram a quinta de um familiar que entretanto a tinha adquirido. Mantiveram-na até 1989, altura em que o agora comendador Joe Berardo a comprou e nela introduziu - e continua a introduzir - profundas alterações.
Deixando de lado a conhecida controvérsia sobre a figura de Joe Berardo, que alguns consideram já o Gulbenkian português e que tem a sua vastíssima colecção de arte espalhada pela ilha da Madeira, Centro Cultural de Belém, Quinta da Bacalhôa (Azeitão), Sintra e, itinerantemente, por outros locais como presentemente o Centro Cultural das Caldas da Rainha, não é sem alguma surpresa que agora visitamos a Quinta dos Loridos. O antigo solar dos Lafeta, dos Baena e dos Sepúlvedas, ainda a receber benfeitorias, está convertido em hotel. A quinta recebeu novas vinhas e, dada a excelência de alguns dos solos para as várias castas de novas videiras, espera-se naturalmente uma boa produção, na linha do que Joe Berardo já conseguiu na Bacalhôa.
Porém, acima de tudo, o mais bizarro e insólito para o visitante desprevenido é, sem sombra de dúvida, o "Jardim Oriental" que está ainda em fase de construção mas já oferece características únicas no nosso país. Joe Berardo declarou à imprensa que pretende que aquele "espaço de paz" se transforme no maior jardim oriental da Europa. Segundo o comendador, a ideia ocorreu-lhe aquando da destruição pelos taliban dos monumentais budas existentes no Afeganistão. Do seu ponto de vista, enquanto as religiões cristã e muçulmana são expansionistas, os budistas estão mais interessados em evitar guerras e quesílias de toda a ordem. Criam espaços de paz, onde se pode meditar e reflectir sobre a vida. A ideia de Berardo é a de futuramente denominar o local de Jardim da Paz.
Ocupando uma vasta área de 35 hectares, a quinta possui já um lago artificial, que empresta alguma beleza a uma terra algo poeirenta de vinhas, pinheiros, azinheiros e sobreiros. A dimensão da estatuária que se encontra pelo "jardim" é, de longe, o que mais impressiona o visitante. O arquitecto português José Cornélio, com trabalhos em vários locais do estrangeiro e amigo pessoal do comendador, tem tido um larguíssimo campo de ensaio para algo de novo e único em Portugal. O gosto pode ser duvidoso, mas acaba por deixar uma marca. Espera-se que, no final da construção, o local venha a possuir qualquer coisa como seis mil toneladas de estatuária, numa evocação do oriente feita por ocidentais.
Atrevo-me a aconselhar uma visita ao local, cujas portas estão por enquanto franqueadas a todos os visitantes (não há bilhetes a pagar, até porque há muita coisa em construção, mas não deixa de ser verdade que tudo poderia estar fechado ao público). Talvez seja melhor visitar este lugar ainda in the making, antes de tudo ter sido inagurado, o que é provável que aconteça no próximo ano. É que Joe Berardo, no seu "sonho de paz", gostaria de pôr os visitantes a envergar sobre as suas roupas uma capa "igual para todos".
As fotos mostram aspectos do vasto "jardim", que nada tem a ver, note-se, com buxos cuidadosamente aparados ou lindos canteiros de flores. É de facto algo diferente, mostrando por exemplo em amplos espaços um sorridente Buda no meio de pinheiros lusitaníssimos e duas longas filas de figuras de homens com cavalos por detrás, meio-ocultos na vegetação. Para quem quiser comprar vinhos do comendador, há, como seria previsível, uma loja à entrada. Para os que se dispuserem a almoçar ou jantar, eu recomendaria o restaurante Mãe-d’Água, que fica na estrada junto ao Senhor Jesus do Carvalhal e (ainda) nada tem a ver com o comendador.
Foi no final da década de 70 que aconteceu eu ter numa das minhas turmas uma aluna daquela família, que me convidou insistentemente a ir visitar a quinta. Acabei por aceitar o convite, que aliás me proporcionou um belo dia. A área ocupada pela propriedade era a mesma de agora. O sustentáculo da quinta provinha sobretudo da produção de vinho e de fruta. Recordo-me que o que mais impressionava na Quinta dos Loridos (há quem escreva "Louridos") era a mansão, um belo solar de grandes dimensões, brasonado. Além disso, para mim os Sepúlvedas eram uma família que me evocava o império português do Oriente (Índia), sobretudo através de um dilacerante episódio da nossa história trágico-marítima. Na minha memória subsistia uma impressão, ainda forte, do que tinha lido na compilação feita por Bernardo de Brito dos relatos de naufrágios ocorridos com naus portuguesas vindas da Índia entre o século XVI e o XVII. Naus que vinham carregadas de pimenta e várias outras especiarias. O caso do galeão S. João, em que viajava de regresso a Lisboa o Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, tinha sido o mais impressionante. Depois de o galeão, batido pelas alterosas vagas do oceano, se ter afundado, o capitão e toda a sua família foram barbaramente mortos por nativos. O "fidalgo mui nobre e bom cavaleiro" foi, assim, mais uma vítima da ousadia de enfrentar mares nunca dantes navegados, como Camões lembra nos Lusíadas. A ânsia portuguesa de trazer nos barcos tanta carga quanto possível, mesmo se em excesso, para assim aumentar os lucros, a que se juntava o fraco estado de conservação de algumas das embarcações, como era o caso do galeão, também são factos concretos. Para mim foi interessante estar ali com outros Sepúlvedas, descendentes dos que possuíam a quinta desde o século XIX.
Mas os Loridos têm uma história bem mais antiga. Depois de estarem englobados nos coutos da Abadia de Alcobaça, tinham no século XV passado para as mãos de João Annes Lorido. No início do século XVI, o rei D. Manuel cedeu os terrenos da quinta a banqueiros italianos de Cremona (um dos portões da quinta tem grandes semelhanças com o portão da casa-mãe dos Lafeta em Cremona). Mais tarde, em meados do século XVIII, a quinta entrou na posse da família Sanches de Baena, que nela deixou o brasão que ainda hoje se mantém. Foi em meados do século XIX que os Sepúlvedas herdaram a quinta de um familiar que entretanto a tinha adquirido. Mantiveram-na até 1989, altura em que o agora comendador Joe Berardo a comprou e nela introduziu - e continua a introduzir - profundas alterações.
Deixando de lado a conhecida controvérsia sobre a figura de Joe Berardo, que alguns consideram já o Gulbenkian português e que tem a sua vastíssima colecção de arte espalhada pela ilha da Madeira, Centro Cultural de Belém, Quinta da Bacalhôa (Azeitão), Sintra e, itinerantemente, por outros locais como presentemente o Centro Cultural das Caldas da Rainha, não é sem alguma surpresa que agora visitamos a Quinta dos Loridos. O antigo solar dos Lafeta, dos Baena e dos Sepúlvedas, ainda a receber benfeitorias, está convertido em hotel. A quinta recebeu novas vinhas e, dada a excelência de alguns dos solos para as várias castas de novas videiras, espera-se naturalmente uma boa produção, na linha do que Joe Berardo já conseguiu na Bacalhôa.
Porém, acima de tudo, o mais bizarro e insólito para o visitante desprevenido é, sem sombra de dúvida, o "Jardim Oriental" que está ainda em fase de construção mas já oferece características únicas no nosso país. Joe Berardo declarou à imprensa que pretende que aquele "espaço de paz" se transforme no maior jardim oriental da Europa. Segundo o comendador, a ideia ocorreu-lhe aquando da destruição pelos taliban dos monumentais budas existentes no Afeganistão. Do seu ponto de vista, enquanto as religiões cristã e muçulmana são expansionistas, os budistas estão mais interessados em evitar guerras e quesílias de toda a ordem. Criam espaços de paz, onde se pode meditar e reflectir sobre a vida. A ideia de Berardo é a de futuramente denominar o local de Jardim da Paz.
Ocupando uma vasta área de 35 hectares, a quinta possui já um lago artificial, que empresta alguma beleza a uma terra algo poeirenta de vinhas, pinheiros, azinheiros e sobreiros. A dimensão da estatuária que se encontra pelo "jardim" é, de longe, o que mais impressiona o visitante. O arquitecto português José Cornélio, com trabalhos em vários locais do estrangeiro e amigo pessoal do comendador, tem tido um larguíssimo campo de ensaio para algo de novo e único em Portugal. O gosto pode ser duvidoso, mas acaba por deixar uma marca. Espera-se que, no final da construção, o local venha a possuir qualquer coisa como seis mil toneladas de estatuária, numa evocação do oriente feita por ocidentais.
Atrevo-me a aconselhar uma visita ao local, cujas portas estão por enquanto franqueadas a todos os visitantes (não há bilhetes a pagar, até porque há muita coisa em construção, mas não deixa de ser verdade que tudo poderia estar fechado ao público). Talvez seja melhor visitar este lugar ainda in the making, antes de tudo ter sido inagurado, o que é provável que aconteça no próximo ano. É que Joe Berardo, no seu "sonho de paz", gostaria de pôr os visitantes a envergar sobre as suas roupas uma capa "igual para todos".
As fotos mostram aspectos do vasto "jardim", que nada tem a ver, note-se, com buxos cuidadosamente aparados ou lindos canteiros de flores. É de facto algo diferente, mostrando por exemplo em amplos espaços um sorridente Buda no meio de pinheiros lusitaníssimos e duas longas filas de figuras de homens com cavalos por detrás, meio-ocultos na vegetação. Para quem quiser comprar vinhos do comendador, há, como seria previsível, uma loja à entrada. Para os que se dispuserem a almoçar ou jantar, eu recomendaria o restaurante Mãe-d’Água, que fica na estrada junto ao Senhor Jesus do Carvalhal e (ainda) nada tem a ver com o comendador.
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