Nos anos 80, o filme Wall Street teve a coragem de colocar um dos actores com um lema que ia decididamente contra os valores dos chamados "sete pecados capitais". O lema dessa personagem era "Greed is good!". Se a vaidade, como orgulho excessivo da pessoa, é considerada um pecado mortal pelos cristãos - embora seja o mais leve da lista -, como não entender que a avidez, popularmente designada por "ganância", o seja? Trata-se de egoísmo exacerbado e não de mera ambição comedida. Esta é bem vinda em todo o ser humano que deseja progredir e viver pacificamente em sociedade.
Foi, curiosamente, nessa mesma década de 80 que o capitalismo, também chamado eufemisticamente de "economia de mercado", de "liberalismo" ou "neo-liberalismo", deu um vigoroso passo em frente com as políticas de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos. Aí teve início o grande movimento de liberalização de capitais, que os americanos denominaram de "deregulation". A mão invisível de Adam Smith controlaria a falta de regulamentação. Uma das consequências do facto de dinheiro gerar dinheiro foi que a década de 90 viu aumentar o número de milionários e multimilionários, movimento que, aliás, ainda hoje prossegue. Infelizmente, a pobreza e a fome mantiveram-se e agravaram-se em numerosos países, mas noutros, como na China e na Índia, a externalização de serviços das nações mais desenvolvidas tanto da América como da Europa, a que se juntou um substancial investimento local na educação, permitiu reviravoltas significativas. Entretanto, países inicialmente com problemas, como o Brasil e a Rússia, gozaram das vantagens de possuírem ricas reservas energéticas.
Nos últimos anos, segundo Robert Kagan mencionou numa interessante conferência na Gulbenkian, os Estados Unidos envolveram-se em cerca de 13 conflitos diferentes. Nos atoleiros de Alá (Iraque e Afeganistão) têm-se dado mal e gasto rios de dinheiro. O todo-poderoso dólar começou há muito a vacilar, mas tudo se ia compondo, com alguns altos e baixos. À escala global, os Estados Unidos, os grandes campeões da gestão de empresas e gestão de capitais, com gurus que ganham muitíssimo bem a sua vida dando conferências em Buenos Aires, Varsóvia, Bratislava, no Rio de Janeiro, em Lisboa e tantas outras cidades do mundo, dominavam a cena. Porém, se na década de 90 houve uma considerável unipolaridade americana, agora já ninguém admite essa mesma unipolaridade. Hoje, fala-se em "multipolaridades".
A globalização que os ricos fizeram alastrar pelo mundo através de várias medidas, entre as quais se contam numerosos produtos financeiros inovadores, alojou-se com um vírus de irrealismo tão forte que fez distanciar enormemente a massa monetária contabilística da economia real. Há muito que se ouviam gritos de alerta clamando que a contabilidade empresarial, incluindo a bancária e de seguros, triplicava a verdadeira economia. Havia qualquer coisa como dois terços sem sustentabilidade palpável. Não creio que haja alguém que saiba calcular com grande exactidão a extensão do vírus, que se propagou praticamente a todo o planeta, um pouco como o HIV. Pensemos que se este vírus anda à solta, sem grande controlo, desde o final da década de 80, ele já terá deixado rasto por muito lado. Afinal, a ganância não é apanágio único dos americanos. No caso português, bastará ver o que se passou no aparentemente bem comportado BCP (Opus Dei oblige), no qual não foi preciso mais do que a entrada em cena de umas tantas comadres em desavença para que bastantes impurezas viessem ao de cima.
Tanto neste caso como a nível global, estamos ainda em plena operação de "desintoxicação". Total? Nem pensar! A avidez mencionada como tradicional pecado pelos cristãos mantém-se na cabeça das pessoas. Os objectivos gananciosos que são impostos pelos CEOs aos seus subordinados, que por sua vez os passam aos seus próprios subordinados, são por de mais irrealistas. Nada há que possa crescer sempre. A vida funciona na base de ciclos e não de linhas rectas ascendentes. Enquanto os empregados que contactam mais directamente com o público se esfalfam no reino da mentira para cumprir objectivos, com isso vendendo frequentemente a sua alma e carecendo depois de anseolíticos em doses elevadas, os grandes gestores banqueteiam-se com inimagináveis somas, que lhes são pagas mesmo que não sejam exactamente bem sucedidos.
Foi o mercado bancário subprime, i.e. usando clientes de segunda no crédito à habitação, que fez despoletar toda esta crise. Porém, ele está muito longe de ser o único culpado. Na América, decorre actualmente um debate interessantíssimo sobre o salvamento (bailout) que o governo americano decidiu fazer in extremis a várias instituições, criando de facto aquilo a que o senador republicano do Kentucky chamou ironicamente de "socialismo financeiro". Foi a mentira em cadeia, acoplada à arrogância e à desonestidade básica que só a aceitação da ganância como virtude pode admitir, que conduziu à situação actual. De uma maneira ou doutra, estamos todos dentro do problema. Há um turbilhão de ignorância perante os factos reais, uma incerteza que semi-paralisa a economia e agrava a situação. Encontramo-nos no meio de um furacão feito pelo homem. Em certa medida, "descobrir a careca" é bom, mas para chegarmos à cabeça-sem-pelo ainda será preciso muito. É, aliás, altamente duvidoso que a consigamos algum dia ver. Os off-shores protegem bem os ricos da queda do cabelo.
Dia a dia veremos o que nos reservam os próximos capítulos. Não nos esqueçamos, porém, de que este é um reality show a sério!
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