9/10/2008

Democracia à la portugaise

Vivemos, todos o dizem, em regime democrático, o tal que mereceu de Churchill uma famosa reflexão no Parlamento britânico em 1947: "Há muitas formas de governo que já foram experimentadas, e outras continuarão a ser tentadas neste mundo de pecado e de desgraças. Ninguém pretende que a democracia seja algo perfeito e sem mácula. Na realidade, já se disse que a democracia é a pior forma de governo, se exceptuarmos todas as outras formas que têm sido ensaiadas através dos tempos."
A que vem isto a propósito? Da questão do nosso tempo de vida, o que inclui um ponto interessante: conhecermos, através da nossa experiência directa, ou não conhecermos, um sistema alternativo.
Nos tempos salazaristas, de que só os maiores de 45 anos efectivamente se recordam, um número significativo de cidadãos ansiava por liberdade, detestava a PIDE e abominava a impossibilidade de expressar livremente as suas ideias. Eles sabiam, por experiência própria ou alheia, que estas ideias podiam, só por si, mandar alguém para o calabouço, além de eventualmente impedir professores de ensinar, médicos e advogados de exercerem a sua actividade da forma que desejavam, engenheiros e arquitectos de concorrerem a grandes obras e ganharem os respectivos concursos, etc. Havia no ar uma aspiração por uma sociedade mais igualitária, com menos clãs elitistas protegidos pelo Estado, Estado esse que por sua vez esses clãs protegiam. Ansiava-se por uma Igreja verdadeiramente de Cristo, descomprometida com o sistema, que apoiasse o povo em vez de continuamente lhe pregar o conceito de resignação numa vida que, feliz ou infelizmente para nós, é só uma. Ciciava-se contra a contínua invocação eclesiástica do Além da bem-aventurança, bem mais feliz do que a vida terrena que os mais pobres levavam. A partir de certa altura, manter o empregozinho certo começava a não chegar, embora isso constituísse uma garantia apreciada. Neste quadro, a democracia, com a liberdade que nos dava de escolher os governantes que nós bem queríamos, era bem-vinda. E bem-vinda ela foi em 1974.
Um dos grandes problemas de hoje reside no facto de que a promessa de democracia acabou por não alterar substancialmente a sociedade, desequilibrando ainda mais as classes sociais e remetendo para a pobreza dos subúrbios das grandes cidades uma quantidade muito apreciável de cidadãos que se quedam a uma enorme distância em termos de poder económico das classes abastadas. E estas, em maior número do que anteriormente, não mudaram significativamente. Encontramos o mesmo Estado forte mas nem sempre justo, um sistema fiscal que não conduz a uma distribuição mais equilibrada da riqueza, uma educação pouco atraente a julgar pelos resultados e pelo elevado número dos que a abandonam, uma justiça ultra-lenta e dispendiosa influenciada muitas vezes pelos poderosos, que chegam a condicionar mudanças relevantes nas leis que os favorecem em particular.
Há, porém, algo aparentemente decisivo que mudou: ninguém é preso por se manifestar contra o Governo. Pode, contudo, ter a certeza de que não sairá beneficiado se esse Governo se mantiver. Houve, também, notórias melhorias materiais: mais e melhores vias de comunicação; educação mais expandida, embora não necessariamente de nível mais elevado; cuidados de saúde mais abrangentes; lares de terceira idade e creches em maior número; segurança social mais inclusiva; passes sociais nos transportes das grandes cidades.
Todavia, são muitas as vezes que eu e tantos outros nos questionamos: por que razão não tem funcionado melhor a democracia em Portugal? Já foi há mais de 30 anos que a revolução de 74 ocorreu e sente-se que o país tem hoje não só a maior desigualdade social da Europa-dos-25 como possui uma economia débil e em mau estado. Porquê?
Parafraseando Almada Negreiros, dir-se-á que já foram feitos todos os diagnósticos para identificar a doença; só falta curar o doente. Portanto, mais um diagnóstico será apenas... um diagnóstico mais. Como cidadão, não me resigno no entanto a aceitar o facto e é por isso que procuro achar um conjunto de razões que me convença.
No papel, parecemos sem dúvida um país democrático. Temos eleições livres, podemos votar em quem quisermos ou deixar de votar se assim o entendermos, temos liberdade de expressão na rua, na Internet, na imprensa e nos outros media. Contudo, a nossa sensação geral é a de que o abismo entre ricos e pobres é cada vez maior: dados estatísticos colocam-nos em posição muito pouco favorável no cotejo com outros países da União Europeia. Por seu lado, a imagem do país em termos de produtividade é fraca, os problemas do sistema de segurança social agravam-se de dia para dia, a economia não arranca apesar das vultosas contribuições que continuamos a auferir dos nossos parceiros europeus mais desenvolvidos, a taxa de desemprego está a níveis elevados, o endividamento das famílias atingiu valores inimagináveis há duas dezenas de anos. Porque é que estamos assim? Por que é que a máquina não engrena?
Não me parece que o problema seja de pessoas individuais, mas de modelos de vida em sociedade, de organização social, de controlos e de confiança. Já há muito sabemos que o nosso passado não nos ajuda. Portugal e os seus governantes nunca tiveram que pensar muito em modelos de desenvolvimento. Tal como sucede com os países grandes produtores de petróleo que induzem uma vida fácil aos seus governantes, Portugal teve os seus três impérios coloniais, que o condicionaram igualmente para uma vida facilitada para uns tantos cidadãos, poucos, e árdua para os restantes. As riquezas que vieram primeiro das Índias, do Brasil depois, e de África por fim, levaram o país a depender do Estado. O Estado era rico, e quem queria ser rico arranjava cunhas para mamar da teta estatal. A Igreja católica não contestava a situação, porque de uma maneira geral também ela encontrou no Estado um aliado constante - aliança com vantagens mútuas, diga-se. Houve uma altura, no final do século XVII e depois durante o século XVIII, em que o parlamento português não foi convocado durante várias décadas. Não havia necessidade, porque as riquezas jorravam no país vindas das colónias e o parlamento normalmente reunia-se basicamente para autorizar empréstimos à coroa ou aprovar tratados. Por aqui se vê a falta de raízes democráticas do país. O QPM (quero, posso e mando) era a regra. O medo imperava. O resultado óbvio era o "Não vejas, não oiças, não fales, para que não te entales".
Devido ao afluxo de riqueza que era fácil para o país, com recurso a uma elevada taxa de trabalho escravo que imperou durante vários séculos, o período em que mais se pensou Portugal em termos organizativos e sociais terá sido no século XIX, desde a independência do Brasil na década de 1820 até ao início do século XX com a proclamação da República. Durante esse tempo, a África contou pouco relativamente - não foi de maneira nenhuma um substituto do Brasil perdido. Foi só mais tarde que os territórios africanos passaram a desempenhar um papel relevante, bem demonstrado pelo facto de Portugal se ter envolvido numa guerra colonial que durou treze longos anos, entre 1961 e 1974.
Curiosamente, e já o tenho defendido, a adesão à Europa foi um pau-de-dois-bicos para Portugal. Por um lado, o país teve de se submeter a regras disciplinadoras europeias, as quais no entanto esteve longe de cumprir sempre. Por outro, os fundos-quase-sem-fundo que foi recebendo da UE conduziram Portugal à preguiça habitual do tempo dos impérios. E como era o Estado a receber os vastos fundos europeus para depois os distribuir, logo se arranjou a habitual clientela que, com cunhas ou através de uma soi-disante linhagem dinástica de famílias, conseguiu arrecadar para si o sumo, deixando apenas a polpa para o resto da população. Só assim se entende que fundos que se destinavam a nivelar o país de uma maneira adequada tivessem, ao fim de décadas, levado ao actual despovoamento de grande parte do interior, ao eucaliptugal que todos vemos, ao abandono de aldeias, ao fecho de escolas e de hospitais. Salvaram-se as vias de comunicação e outras benfeitorias já atrás mencionadas.
Ao examinarmos a legislação, porém, parece que tudo corre sobre esferas. É a fachada a funcionar, o que não é muito diferente dos tempos do Estado Novo de Salazar. Os propósitos são bem enunciados nos preâmbulos legislativos, embora seja frequente que, mais à frente, o articulado das leis não coincida parcialmente com esses propósitos declarados nos intróitos. O aspecto primordial é, porém, outro: cumpre-se a lei? A justiça é rápida e igual para todos?
Entramos aqui num dos pontos fulcrais da vida portuguesa, à volta do qual muita coisa gira e faz emperrar a máquina. É algo que, em termos reduzidos se pode dizer que prolonga o espírito colonialista do passado: uns tantos privilegiados colonizam todos os restantes.
As sociedades que vivem em democracia, com liberdade de expressão e maior poder de iniciativa do que as que vivem sob regime ditatorial, são por natureza conflituosas. Daqui resulta uma condição sine qua non para que essas sociedades funcionem: os conflitos têm, necessariamente, de ser resolvidos com celeridade, com credibilidade e transparência.
Outra condição essencial é que exista uma real separação de poderes - entre o legislativo, o executivo e o judicial - e um modo expedito e eficaz de controlar os vários poderes.
O não-preenchimento destes aspectos fundamentais pela democracia portuguesa acarreta vastas consequências no andamento do país, seja em termos sociais, seja económicos. Abala a confiança entre as instituições e as pessoas, estabelece desigualdades gritantes no tratamento dos cidadãos, com uns a escaparem constantemente da alçada da justiça através de métodos ardilosos de adiamentos e consequentes prescrições, enquanto que os restantes têm que arcar com uma justiça que é não só lenta mas também dispendiosa. Desacredita os políticos que estão na base da formulação das leis e lança a desconfiança sobre eles no sentido de promoverem "arranjinhos" para si próprios, os seus pares e os seus compadres. Mostra uns governantes e gestores públicos irresponsáveis, na medida em que acabam por não ter que responder pelos seus actos, mesmo que estes tenham sido prejudiciais para o erário público. Passa a praticar-se a ética de favores em vez da ética de valores. A fidelocracia impera sobre a meritocracia. Tudo junto contribui para minar a democracia nas suas mais profundas raízes de tratamento igualitário, o que corrompe depois muito do tronco, dos ramos e das folhas da árvore democrática. Com isto nasce e desenvolve-se um óbvio descontentamento entre as pessoas, uma queixa constante, que os governantes tentam abafar através de palavras motivadoras e de resultados frequentemente manipulados. Se esta não fosse a verdade, no entanto, não estaríamos hoje na cauda de todos os países da UE15 e não teríamos sido já ultrapassados por alguns dos que constituem os actuais 25 membros da União Europeia.
Uma sociedade é um verdadeiro caldo de cultura. Como caldo, tem os seus condimentos próprios, de que o passado - que já passámos brevemente em revista - é um ingrediente relevante. A revolução de 1974 foi de facto uma revolução em muitos aspectos, mas noutros não conseguiu produzir mais do que uma interrupção temporária, a lembrar-nos uma frase que os anarcas postavam nas paredes durante o PREC: "Pedimos desculpa por esta democracia. A ditadura segue dentro de momentos." É neste sentido que muitos dos poderes-de-facto na sociedade portuguesa actual são aqueles que já dominavam no longo período anterior a 1974.
Porém, um condimento fundamental da sociedade portuguesa é a sua hipertolerância. O sabor do nosso caldinho democrático contém muito desta erva aromática. Esta hipertolerância revela-se através da falta de rigor ("podia estar pior"), ("eles não vão notar nada"), ("um pecado como este nem é pecado, e se for…"), da falta de pontualidade e de assiduidade ("se estamos a começar a reunião apenas quinze minutos depois da hora, podemos dar-nos por muito contentes"), ("Vá, vem embora connosco lá fora a um cafezinho! Não é por causa de dez minutinhos de paleio que o serviço deixa de se fazer!"), ("eu ia lá perder este joguinho na televisão! Não o pusessem durante as horas de serviço!"), ("então o meu filho não é mais importante do que o trabalho!?") e de milhentas outras coisas ("coitado, se roubou foi porque foi obrigado a isso; agora há os que roubam à descarada, todos os dias, e nunca vão presos!"), ("o homem não fez aquilo por mal, mas agora querem-no fazer pagar todo o dinheiro porque lesou o Estado!").
Esta hipertolerância, para além de ser conivente com o erro e com o desperdício, é anti-penalizadora. Dela resulta um notório rendimento menor no trabalho, uma produtividade assaz inferior à possível. Resulta também a impunidade das pessoas, especialmente dos mais poderosos. Tem sido assim, no entanto, o temperamento da maioria dos portugueses. Talvez um espírito religioso temeroso e latente leve as pessoas a serem tolerantes e a perdoarem em casos concretos, nomeadamente quando conhecem a pessoa e a vêem arrependida. E, admitindo que "há muitos ladrões", sai um provérbio bem luso - "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão" - que complica tudo.
Os mais astuciosos gostam de confundir legalidade com ética. Quando são apanhados a fazer algo de carácter duvidoso, escudam-se na lei: "É legal, ou não? Se não é ilegal, está correcto." Este é um argumento que faz o Estado perder rios de dinheiro. Casos concretos são os de governos que, a poucas semanas de passarem a pasta ao governo seguinte, firmam contratos para lugares da função pública com amigalhaços do partido, colocando-os em determinadas funções. Quando o governo seguinte entra em funções e quer fazer ocupar as suas cadeiras por homens ou mulheres que diz serem da sua confiança política, os recentemente colocados têm direito a chorudas indemnizações pagas pelos cofres do Estado. Se questionados relativamente a este assunto, os governantes substituídos retorquirão: "É ilegal? Se não estamos a ir contra a lei, é porque a lei consente. Logo…"
Não são apenas os governos que reagem deste modo. Também autarquias e, por exemplo, escolas de ensino superior poderão fazer o mesmo. Algumas destas últimas, antevendo embora que irão ter redução de alunos no ano seguinte, apressam-se a renovar os contratos com os docentes que mais lhes agradam. Se não houver muitas aulas para eles, tanto pior: os Conselhos Científicos já mostraram a sua amizade e solidariedade. É evidente que, com esta medida, os referidos Conselhos Científicos estão eventualmente a prejudicar o erário público, porque assim comprometem o Estado a pagar pelo menos um ano de ordenados aos professores em questão. Mas o que será mais importante: uma demonstração de poder corporativo ou os altos interesses da nação?
E com estas e outras, o défice estatal aumenta. Aumenta na administração pública central, na administração pública regional e local, nos ministérios da saúde e em tantos outros. Existe a sensação de que o Estado, como entidade sem rosto, é uma "pessoa" que se pode burlar à vontade. Entre prestar um favor a pessoas concretas e agradar a um Estado-sem-rosto que não agradece "e ainda nos chama tolos por fazermos o que fazemos", as pessoas que têm poder não hesitam.
E por que razão não hesitam? Porque não são verdadeiramente controladas. A noção de prestação de contas e responsabilização (accountability) passa ao lado de um grande número de pessoas. Há sempre o colega que fez muito pior. Há sempre a justiça que, quando vier e se vier, acaba por encanar a perna à rã e não resolver nada senão passados vários anos. Para quê ralarmo-nos se temos o fim-de-semana à porta?
Tudo isto representa um enorme défice democrático. Enquanto não se instaurar um sentimento de controlos tempestivos, em que todos sejam controlados no seu trabalho e produção - mas não na sua privacidade! -, nada verdadeiramente se endireita. Enquanto os gestores públicos demasiado gastadores não tiverem que desembolsar, após processos rápidos, quantias significativas por gestão danosa, a tendência é para que o mal continue a minar e se alastre. Que ao ministro seja instaurado um processo imediato por uso indevido de dinheiros, que ao autarca suceda o mesmo. Assim, moralizar-se-á a sociedade. Mas isso demorará bastante tempo, todos sabem. Aliás, diga-se, todos duvidam que esse objectivo seja alguma vez alcançado.

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