Mouriz é uma terra que conheço desde a minha infância. Era lá que morava um tio meu, hoje já falecido, de quem sempre gostei. A casa dele ficava mesmo à beira da estrada, do lado esquerdo quando eu passava na camioneta da carreira para ir visitar os meus pais, que moravam uns quinze quilómetros mais à frente. Era um casarão grande, com rés-do-chão e primeiro andar, uma adega bem ampla e, na parte de trás, um pátio relativamente largo e fundo. A adega era a parte onde mais convivíamos, a comer uns petiscos bem regados com o bom vinho que o meu tio fazia das uvas das suas fazendas. Ele era um grande contador de histórias e um homem bem disposto. Ilustrava as suas aventuras com as mãos em gestos perfeitamente entendíveis e bastante cómicos. Tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga. O "rapaz", o Nando, é uns cinco anos mais novo que eu. Acidentalmente, em conversa de ora vê lá tu, contou-me há tempos a história do seu baptismo. Cedo-lhe a palavra, porque ele é que sabe o que se passou. Eu fui um mero ouvinte.
Conheces o café, claro. Qual café? perguntei-lhe. Aquele mesmo em frente da minha casa em Mouriz. Em frente da tua casa fica a rua que é também estrada, que desaparece lá para baixo até ao fundo da terra e depois ainda continua. Sim, mas em frente da porta da adega fica uma casa que tem um café. Nunca lá entrei, disse-lhe. Também não interessa para o caso. A porta do café é do lado da povoação, não dá para a estrada principal. Era esse o café que o meu pai frequentava. A partir de certa altura eu comecei a acompanhá-lo de vez em quando. A minha irmã não, não só porque era mais nova mas também porque naquele tempo os cafés eram só para homens. Juntavam-se lá pessoas que tu não conheces. Mas o teu pai com certeza que conhecia alguns deles. O António da Vila, o Serafim, o ferrador, o Malaquias filho do ourives, o ti Manel da Burra, o Zé Valente e outros. A maior parte já morreu. Gostava de lá ir porque era gente sã, que falava alto mas raramente se zangava. Estavam muitas vezes a jogar, e sabes como eu sempre fui perdido por jogos de cartas e de damas e, mais tarde, pelo xadrez. Depois de fazer os meus trabalhos da escola ia às vezes até lá, sempre com o devido cuidado de olhar para a direita e para a esquerda ao atravessar – estou a ouvir a minha mãe a fazer-me as recomendações da praxe - por causa da estrada principal que tinha muito movimento. Fui crescendo. Um dia, tinha os meus catorze anos – era um domingo, lembro-me bem – dei uma saltada até ao café depois de almoço. De manhã tinha ido com a minha mãe e também com a minha irmã à missa lá em baixo à igreja matriz. No café, pus-me, como habitualmente, de pé, neste caso a ver o velho Silva de barbas brancas a jogar às damas com o Serafim. Gostava de imaginar o que ia na cabeça de cada um deles e para onde é que a seguir iam mover as pedras. Estava eu nisso, quando o filho do ourives, homem de trinta e tal anos, me pôs a mão no ombro e me perguntou se eu era baptizado. Respondi-lhe que sim. Toda a gente era baptizada. Mas um baptismo que tu quisesses, sem ser de água benta. Não percebi logo onde ele queria chegar. O Malaquias voltou-se para os outros: vocês acham que o Vítor se vai chatear? O Vítor era o meu pai, como sabes. Por que razão haveria ele de se chatear? Até vai ficar contente! E orgulhoso! O Malaquias passou então a zona do balcão e levou-me lá ao fundo, abrindo uma porta por onde eu nunca tinha entrado. Tinha uma escada que vinha do sótão. Coisa nova para mim. Admiti que fosse recolhida depois de ser usada.
Nesse domingo a temperatura não estava nada meiga. Fazia aquele calor de Maio que às vezes sufoca. Subir ao sótão? Notei que os jogadores pararam um bocado as cartas e o seu jogo de damas a olharem para nós dois. Subida a escada, lá em cima vi um espaço grande, com grades de cervejas e de refrigerantes empilhadas num dos lados. Havia também outras coisas, mas o que me chamou a atenção foi uma parte que tinha só palha no chão. Em cima dessa palha estava uma mulher que eu já tinha visto duas ou três vezes apear-se da camioneta. À nossa chegada, ela levantou-se. Estava vestida só com uma saia e um soutien. O Malaquias deu-lhe umas palavras ao ouvido. Se eu já tinha calor, com mais fiquei. Ela foi muito simpática, tratou-me por filho, mas depois de me dizer o nome, Lena, e de saber o meu, passou a alternar o "filho" com Fernando. O Malaquias desceu entretanto. Fiquei mais à vontade. Com um sorriso um tanto maternal mas maroto também, ela despiu-me, o que até soube bem naquele calor todo. Despiu-se ela própria depois. Era a minha primeira vez, mas já tínhamos falado tanto disso na escola entre os colegas que o meu desejo era maior que a surpresa e o acanhamento. Acho ainda hoje que nunca terei suado tanto na vida como dentro daquele sótão e em cima daquela palha que já de si era quente. Mas ao mesmo tempo era toda uma sensação nova. Inigualável. A certa altura sucedeu aquilo que não devia acontecer: o Malaquias veio com mais dois cá acima ver como as coisas estavam a andar. Primeiro ainda olhei para trás, mas depois esqueci-os. O meu mundo era outro. Quando terminei e me deixei cair de braços abertos sobre a Helena, os malandros disseram "muito bem!" e desceram, devagarinho. Já podiam assinar o diploma para o meu pai saber. Até hoje não sei se alguma vez o fizeram. Depois de me vestir e de regressar, afogueado, cá abaixo ao café, o Malaquias subiu de novo e voltou uns minutos depois. Falou para os homens, mas é claro que eu o ouvi. Sabem, a Lena recusou-se a receber dinheiro. Eu ainda insisti, mas ela foi mais teimosa do que eu. Que há muito não tinha tido um prazer como aquele de poder estrear um borrachinho assim.
Quando agora passo em Mouriz, já não na carreira mas ainda utilizando a mesma estrada, mal olho para a casa do meu tio, que entretanto já foi vendida. Mas deito sempre uma mirada para a janela do sótão do café, que fica virada para a estrada e se mantém lá como há tantos anos. Teria piada se, passado este tempo todo, ainda houvesse uma cama de palha fofa lá em cima. Custa-me a acreditar. Mas, no fundo, quem sabe?
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