Traz hoje o jornal Público uma notícia na sua primeira página - "Arquivo perdido de Salazar foi descoberto em Queluz" – que me chamou a atenção. Uma rápida leitura do texto transportou-me há quinze anos atrás, num dia completo que passei no Pendão, o local onde o referido arquivo foi descoberto. Devo dizer que passei lá apenas um dia, mas passaria muitos mais se tivesse tido tempo livre.
Estava eu então a escrever um livro juntamente com um colega. Tanto ele como eu estávamos interessados em descobrir alguma coisa de vulto sobre o passado do que constituía o nosso tema principal: os guias-intérpretes. Eu sabia por experiência própria que esses assuntos tinham em tempos sido tratados no antigo Secretariado Nacional de Informação (S.N.I.): fora lá que, durante o meu curso na Faculdade, tinha prestado provas para eventualmente trabalhar um dia como guia-intérprete. Ora, ninguém podia trabalhar oficialmente como guia-intérprete com turistas estrangeiros sem previamente possuir um diploma assinado pelo director do SNI. Como é óbvio, esse director - individualidade importante da máquina do regime - mandava previamente recolher toda a informação existente a fim de verificar se o candidato a guia-intérprete era um elemento referenciado como perigoso ou já possuía mesmo cadastro na PIDE. Seria agora interessante apanhar alguma dessa informação.
Foi o meu colega quem contactou o SNI, onde foi informado de que todos os arquivos desse tipo tinham sido transferidos para o Pendão, em Queluz. Após obtermos uma credencial para a visita ao Pendão, lá fomos numa primeira oportunidade. O que se nos deparou causou-nos estupefacção total. Tratava-se de um largo armazém, de tecto relativamente alto. Tudo era vigiado apenas por um funcionário. Franqueada a entrada mediante a apresentação da credencial, o funcionário deixou-nos à vontade. Havia duas cadeiras e uma pequena mesa. Ele não tinha uma ideia muito concreta de onde poderiam estar as pastas que pretendíamos, mas após uma breve busca chegou lá. Ou lá perto, pelo menos.
O material que se encontrava naquele armazém daria decerto notas importantes para variadíssimas consultas. As estantes que chegavam quase até ao tecto eram de pinho e tinham que suportar numerosíssimas pastas de arquivo, todas numeradas e com indicação do local de proveniência. Foi fácil entender que estava ali um repositório de múltiplos organismos do Estado, entre os quais aquele que nos interessava. Devo dizer que acabámos por não encontrar muito material que fosse aproveitável para o livro que estávamos a escrever, mas a riqueza daquele armazém era tal que decidimos ir almoçar rapidamente ali perto e voltar logo a seguir.
Quem tivesse dúvidas sobre a forma como funcionava a censura aos filmes a exibir em Portugal; quem quisesse ter em mão a cópia a papel químico dos originais enviados pelo SNI com recomendações, hoje interessantíssimas, aos proprietários de cinemas onde determinados documentários "deveriam" ser exibidos, tinha tudo ali à mão. Muitos documentos eram repetidos, porque se tratava de instruções tipo-circular que actualmente seriam possivelmente enviadas por e-mail, mas estava ali um espelho tremendamente apelativo do que se passara atrás das portas fechadas dos gabinetes onde se tomavam decisões importantes para a sanidade mental dos portugueses. Recordo-me bem da pena que senti ao ter que abandonar, ao fim da tarde, aquela caixa de surpresas mil.
Não me admiro muito que tenham lá encontrado há meses um arquivo directamente relacionado com Salazar. Nem que venham a encontrar outros. Só convém, ao chegar a casa tomar um bom duche: há muito pó por aqueles lados.
Sem comentários:
Enviar um comentário